A FOME DE BELINHA
OU O MILAGRE DE SÃO CIPRIANO
 
“A fome é o maior martírio
Que pode haver neste mundo
Ela provoca delírio e sofrimento profundo,
tira o prazer e a razão
quem quiser ver a feição
da cara da mãe da peste
na pobreza permaneça
seja agregado e padeça
uma seca no Nordeste."
Patativa do Assaré
         
      Sobre o colchão de palha envolto em uma velha manta bege puída, gemia a pobre mãe cujos ossos marcavam os trapos que a cobriam. Força já não tinha para falar, sentar-se já não podia mais. Os pequenos choravam abraçados pelo medo de perder aquela mãe que vivia morta.      Eram doze filhos, dentre os quais, um bebê de seis meses. O marido desnorteado andava de um lado para o outro, mastigando um cigarro de palha. Não tinha ideia do que fazer sem dinheiro, sem ajuda, sem prestígio, sem nada. Restava-lhe a fé. Aproximou-se da cama, beijou a fronte lívida da mulher e tentou animá-la com a voz embargada:
     — Fique assim não, Belinha... Deus nunca abandonou nós!
     O desengano escorria pelo rosto pálido da pobre enferma. Olhava para os filhos como se lhes pedisse desculpas e depois para o marido como se o acusasse.
     Aos berros, os filhos mais velhos pediam ajuda às pessoas que passavam na estrada. Ninguém podia ajudá-los, porque compartilhavam a mesma miséria. Ali não havia carro e o médico ficava muito distante, na cidade. A avó materna chegou afastando todas as pessoas e gritando autoritária para o genro:
     — Sele o cavalo e vá chamar o velho Santiaaaaaago!!! Pra mim, ela tá enfeitiçada. Ele reza de ventre caído a quebranto e desfaz qualquer tipo de feitiço.
     — Oxente! Quer feitiço maior do que nascer nesse lugar, vó? Indagou o menino mais velho.
     — Saia já daqui, moleque enxerido! Menino não dá palpite em conversa de adulto!
     A pequena sala enchia-se de olhos impotentes que apenas olhavam, mais nada. Cada um via refletido no rosto daquela mulher a sua própria desgraça.
     Finalmente chega o curandeiro. Um velho corcunda e pálido cujos cabelos grisalhos até os ombros e a barba enorme, encardida pela nicotina, davam-lhe o aspecto de uma figura antiga. Manda que todos se retirem e dá início àquele sinistro ritual: Acende sete velas em torno da doente, bebe uma dose de cachaça, bate palmas, sacode a mulher no leito e começa a bater-lhe fortemente com folhas de peregum , entoando uma espécie de mantra numa língua estranha, enquanto puxava a pobrezinha pelos braços e as pernas, unia-lhe os pés, apertava-lhe a cabeça e emitia suspiros enigmáticos. Finalmente, chama o dono da casa e exige que proíba todas as visitas, alertando-o:
     — Você não tem maldade, Zezinho. Não vê que cada pessoa que aqui chega traz consigo a dor e a descrença.... Sua mulher está muito fraca e não pode se defender. Por isso, atrai para ela o mal que não lhe pertence. Durante nove noites, faça com sua família a novena de São Cipriano.
     O homem recebeu as instruções do rezador, obedeceu-lhe às ordens e, durante nove noites consecutivas, a família se reuniu em oração ao Santo indicado. Entretanto, aquele corpo esquálido desaparecia um pouco a cada dia e a melhora não vinha. Após a novena, o desespero tomou conta de todos e as portas da casa foram novamente abertas às visitas.
     Certa manhã, a madrinha da menina caçula chegou trazendo em uma das mãos uma panela amarrada num pano de prato branquinho e na outra, uma caneca de alumínio brilhante, embora toda amassada.      A comadre Cristina não era rica, mas tinha um coração que mal lhe cabia no peito. Além do mais, nutria um sentimento fraterno por aquela família. Sempre que podia trazia-lhe uma ajuda:
     — Compadre Zezinho, trouxe aqui um pouco de comida para vocês e um caldo para a comadre Belinha. Tenho certeza que ela vai se sentir mais forte.
     O cheiro de comida boa — arroz, galinha, feijão e farofa — invadia as narinas e  alma daquelas crianças famintas que mal aguentavam esperar para saciar a fome acumulada de tantos dias. A mulher desfez o embrulho, pediu que as crianças se sentassem no chão da cozinha, enquanto sorridente ia servindo o delicioso maná nos pratinhos velhos de barro. Depois, forrou a mesa com o mesmo pano que envolvia a panela, fez o prato e chamou o dono da casa:
     — Venha jantar, compadre! As crianças já estão comendo!
     Envergonhado, a única reação dele foi permitir que as lágrimas lhe escorressem pelo rosto tão castigado precoceente.
     Em seguida, a bondosa senhora dirigiu-se ao quarto da doente, acordou-a e insistiu:
     —Comadre, eu trouxe um caldinho para você. Pense nas crianças! Beba, nem que seja um pouquinho! Você precisa viver para criar os seus filhos. Beba!
     Assim,  com um canudo feito de talo de mamoeiro, ela fez com que a doente sugasse um pouco. Parecia que aquela senhora sabia o diagnóstico da doença misteriosa. Portanto, insistiu naquele tratamento durante uma semana.
     Lentamente, a doente foi abrindo os olhos, recuperando as forças e uma lágrima agradecida desceu-lhe na face que já se fazia iluminada pela esperança de vida! Estendeu a mão à comadre e sentou-se na cama.
     O marido entrou no quarto e, ao ver aquela cena, saiu gritando pela casa:
     — Foi milaaaaaaaaagre! São Cipriano ouviu nossa prece!
        As crianças e a avó juntaram-se a ele e gritaram em uníssono:
     — Milaaaaaaaaaaagre! Milagre de São Cipriano!
     Entretanto, em sua inocência, a menina caçula abraçou a madrinha, reconhecendo nela a verdadeira santa milagrosa que salvara sua mãezinha com um gesto tão simples...
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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 25/06/2017
Reeditado em 25/06/2017
Código do texto: T6036633
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