Posteriori

Tinha o telefone grudado em meu ouvido, ecoando o som da espera. Já havia esperado por tanto tempo. Estava no telhado do meu prédio. Não era tão alto. Medíocre. Mas o suficiente. Pendurando-me de forma arriscada por entre as beiradas, via a rua Guajajaras, que se misturava com a Amazonas logo ali. O telefone mandava eu esperar.

- Alô?... Eulália? - Perguntou Aurélio, meio surpreendido e sem esconder da voz o seu desejo de desligar a chamada ali mesmo.

- Oi.

Sabia que ele não estava tão distante dali. Talvez em uma roda de bar no Mercado Central. Eu ouvia a música que ele escutava, que compartilhava com as outras pessoas que o rodeavam. Eu as ouvia, era ensurdecedor. Aquele zunido. Talvez eu devesse desistir ali mesmo. Aquele barulho iria continuar enquanto eu continuasse.

O cigarro queimava. Cerrando e se misturando com a gritaria das pessoas. Como ele suportava aquilo? Como Aurélio preferiria dar um basta naquela ligação apenas para se juntar a eles de novo? Minha mente se tornava claustrofóbica só de pensar.

- Que é que foi? - Perguntou, soprando a fumaça para fora.

Ele odiava fazer as coisas sem um motivo aparente. Com aquela ligação não seria diferente. Não, ele não via o antes. Para ele, estava tudo bem comigo. Por que eu o incomodava? Só poderia ser besteira. Ele cria nisso. Eu própria estava passando a crer. Já tinha acreditado nisso antes, acreditava e desacreditava. Arrependia-me e não me arrependia, para no fim fazer tudo de novo e voltar a me castigar.

- Quando estaremos prontos? - Perguntei.

Silêncio.

Aquele silêncio não era de ponderação. Eu o conhecia bem. Dominava-o de uma forma que conseguia tê-lo em minha frente como em uma conversa pessoal. Ele estava olhando para qualquer lugar, sem prestar atenção no que eu dizia. Daí o silêncio. Não se pode responder ao que não se escutou. Ouvir é fácil. Faz-se com qualquer um. Aurélio é mestre nisso. Mas ele não escuta.

- Do que cê tá falando? - Perguntou.

Aquele riso irônico no final da pergunta. Ele completava o ciclo de não importância. Por que eu ainda tentava? Perguntava a mim mesma e soltava o mesmo riso irônico. Era uma pergunta boba, tão quanto a que eu tinha feito para ele. Perguntas idiotas se respondem com um riso irônico no final. Está dito.

- A gente nunca tá pronto. - Respondi. - Lembra quando eu dizia que queria minha casinha no interior?

- Cheio de quadros e ícones na parede.

Falou aquilo de modo meio perdido, quase como se estivesse prestando atenção na curva de alguém ali próximo. Falou sem dizer. Falou porque ainda se sentia na obrigação de se mostrar solicito.

- Com meus quadros e meus ícones. - Eu concordei. - Dizia que a teria depois da escola. Mas depois da escola eu tinha que ir pra faculdade, não tinha de pensar em casas. Depois de uns bons anos, tinha emprego, vim parar aqui. Só concreto. Nem quadro tenho, Aurélio. Meu apartamento é só uma extensão do resto dessa cidade. Paredes cinzas. Não há nada meu lá. Mas dizem que ganhei a vida porque ele é meu, comprado, não alugado. Também dizem que no futuro comparei uma casa. Grande. Na Pampulha.

- Hum. - Parecia entediado. - Amanhã saio para comprar quadros com você.

- Meu problema não são os quadros.

- Você tem algum problema? - Perguntou.

Daquela vez ele parecia mais centrado na conversa. Mas essa impressão se dava unicamente porque ele havia encontrado uma forma de terminar aquele diálogo. Queria me fazer enxergar que minha vida estava ótima e desligar depois. Seu repentino modo atento se concentrava em dar um fim em mim naquele instante.

- Quero dizer que a gente nunca tá pronto. Ou fazem pensar que a gente nunca tá. Estava pronta para minha casa no interior desde aqueles tempos, sei lá há quanto, há uns anos. Nunca lutei pelo que eu sabia que estava pronta. Hoje tô assim.

Silêncio. Aurélio havia percebido que eu terminara a fala, mas não tinha ouvido uma única palavra. Sua atenção estava no placar. Tinha virado sua atenção para ele logo após sua frustração de não ter conseguido pôr um fim na conversa com o seu “e você tem algum problema?”. Agora ele precisava de um instante para caçar no seu cérebro alguma coisa que havia entrado da minha fala. Ele sabia que estavam frescas em alguma parte da sua mente; as palavras vãs e ignoradas que haviam acabado de serem ditas.

- Assim? - Perguntou, pois só havia gravado a última palavra da minha fala.

- Assim. - Repeti. - Tenho tanta inspiração, cê nem imagina. Tenho coisas ao meu alcance, mas tantas que não sei por onde começar. Então fico só aqui. Fico olhando a parede em branco. Ela olha para mim e me desafia, diz que está mais cheia do que eu própria. Ela tem tinta. Está toda preenchida. Por mais que esteja lotada do mesmo, do que há em todo o resto dessa cidade. Ainda há vários algos nela. Enquanto que em mim, nem do mesmo eu tenho. Não lutei pelos meus quadros, nem por mim. Mas quem lutou por todo esse concreto, todo esse cinza. Até pela mesmice alguém lutou. O que sou no meio disso tudo?

- O que quer dizer, Eulália? - Ele não queria realmente saber. - Olha, tô no mercado central. Tá tendo final. Quando acabar, vou aí, certo? Depois a gente se fala.

Eu disse que Aurélio costumava ouvir, mas nunca escutar. Se tivesse escutado, aquele bobo teria sabido que o problema era justamente esse depois.

Essa posterioridade. Ela ditou que eu não estava pronta. Ela nos deixa passar uma vida inertes. Vivemos no logo. Meu problema era com o depois.

Olhei para a Guajajaras e ela também me olhou. Cinza demais. Alguém colocou todo aquele concreto ali. Estava na hora de alguém lutar para pôr algo mais.

Pintei-a de vermelho vivo naquela tarde.