Espoliados

O desembargador irritou-se com a pergunta do repórter. Regalias não. Conquistas! Fosse mais macho aquele merda de jornalista teria sustentado a afirmação. Fosse com ele, Geraldo, no mínimo teria retrucado: regalias conquistadas. Bobagem! Raiva de pobre não passa mesmo de mera falta de educação, mas a do desembargador poderia provocar ecos. O drama daquele seu dia tinha começado pela manhã, quando saía de casa, bem na hora daquela chuva. Que coisa! Uma seca braba, meses sem chuva, quando cisma de chover tem que ser na hora em que os pobres viventes estão saindo para o trabalho? Aí foi só cada qual chegar ao seu posto de serviço, abrigado pelos galpões das fábricas e o sol abriu de novo o carão. Botara uma muda de roupa dentro da sacola de plástico junto da marmita e prendera na garupeira, que era para trocar quando chegasse ensopado ao emprego. Escaparam a primeira vez, os macaquinhos, quando aprumou no pedal para ganhar impulso no pé da subida. Por pouco não meteu o saco no cano, graças a Deus! Porque pobre é assim mesmo, num desmantelo agradece por não haver caído em arruíno maior. Regalias não. Conquistas! Puts! Aí seguiu assim, vez pegava, vez escapava. Catraca quando dá de escapar macaquinho é uma praga de mãe. Conquista! É isso mesmo. O desembargador também tem suas razões. Os conquistadores não recolhem os espólios? Antigamente quando isso acontecia, a gente tirava a roda, abria a catraca e podia verificar que as duas pequenas travas, que tem o nome de macaquinhos, estavam um pouco rombudas, era só dar uma limada nas extremidades delas, aliviar toda a engrenagem do excesso de graxa, encaixá-las novamente na posição e fechar a catraca que ainda tinha uma meia vida. Parece que o fabricante percebeu a artimanha e passou a lacrar a peça. Agora, com os modelos atuais, só comprando outra nova.

O sol, ainda alto de horário de verão, castigava-lhe o torso nu, reluzente de suor, enquanto empurrava a bicicleta a caminho de casa, a camisa de malha, uniforme da fábrica, que tremulava amarrada ao guidom era a bandeira da penúria. Lembrava-lhe que o pagamento estava longe, que em casa a mulher e os filhos esperavam com suas pequenas necessidades. Suas maiores alegrias custavam-lhe tão pouco! Que estranho paradoxo! Aquele pouco lhe custava tanto! Espoliado. Isso sim é o que ele era. Tinha uma nota de cinquenta, bem dobradinha no mais recôndito escaninho da carteira. Todo mês quando recebia o pagamento separava uma cédula guardava ali e procurava esquecê-la, o que era praticamente impossível porque havia sempre uma premência gritando por ela. Como agora. Podia comprar uma catraca nova e continuar indo de bicicleta para o trabalho, mas... Se ocorresse qualquer outra urgência mais urgente? Os filhos do desembargador certamente tinham necessidades bem maiores. Escola particular, faculdade no exterior, outras conquistas. Os futuros conquistadores se farão em cima dos espoliados. Estava louco para tirar aquelas botinas que se molharam na enxurrada pela manhã e conservavam ainda uma umidade quente e malcheirosa. Já antegozava o momento em que tiraria as meias encharcadas e descansaria os pés enrugados nas chinelas de borracha. Gente sem regalias, sem conquistas, os espoliados que não tem grandes prazeres na vida, contentam-se com ínfimos refrigérios daquele feitio.

Na reta final para casa montou novamente e aproveitou a força da gravidade, os filhos dos espoliados terão que aprender a viver do que de favorável as circunstâncias lhes oferecem, ele, Geraldo, procurava ensinar isso a seus filhos, o declive da rua o levaria até em casa onde uma urgência o esperava no portão: — o gás acabou.

Adeus cinquenta reais. Ufa! Por sorte não comprara aquela catraca.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 21/09/2017
Código do texto: T6120411
Classificação de conteúdo: seguro