Um balde de areia

- Martina, você enlouqueceu?

Eu estava com o jornal do dia na mão, e havia uma foto de Tina na página policial... sendo entrevistada em seu escritório de Brasília. Do outro lado da linha, a voz dela soou surpresa.

- Renato? É sobre a matéria do jornal?

- Sobre o que mais seria, Martina? - Indaguei, irritado.

- Mas Renato... - defendeu-se ela. - Você sabe que muito antes dessa história rolar, eu estava negociando com ele a produção do meu livro, "O Assédio Mora ao Lado"... eu não queria pegar o caso, não tem o meu perfil... mas ele foi, digamos, muito insistente.

Engoli um palavrão.

- Francisco Sandoval ser insistente é justamente o problema aqui, Martina! Você não leu as denúncias horríveis que foram feitas contra ele na imprensa?

- Pare de me chamar de Martina! - Explodiu ela.

- Desculpe, Tina - contemporizei.

- Certo, eu li... mas, bem... quando ele me pediu que o defendesse, achei que havia sido apenas uma acusação de assédio por uma ex-funcionária rancorosa. Eu conheço... ou achei que conhecia... Sandoval há anos, nunca imaginei que as histórias que contavam sobre ele eram mais do que fofocas de estúdio.

- Que ele é um predador sexual? Que submetia atrizes jovens ao "teste do sofá"? Pode crer, é tudo verdade. Se você se deixou enganar pela cara de gordo boa gente do Sandoval, é que nunca ficou trancada com ele num quarto de hotel.

Tina hesitou.

- E você... conhece pessoalmente alguma das atrizes que passou por essa situação?

- Um nome: Maria Luíza.

* * *

Maria Luíza ouviu em silêncio enquanto eu falava.

- Tenho nojo só de lembrar - disse finalmente.

Havia acontecido na escalação do elenco para "O Paciente Polonês", meu primeiro trabalho com Maria Luíza Marques. Como fazia regularmente, Sandoval marcara um encontro com ela, supostamente de trabalho, em seu quarto de hotel, já que residia em Campinas.

- Ele disse que queria me conhecer. Eu, inocente, 22 aninhos, fui até o tal hotel, toda boba, achando que o produtor queria ouvir as minhas ideias para o desenvolvimento da personagem. Que nada! Quando cheguei lá, ele estava só de roupão de banho... achei esquisito, mas me sentei com ele no sofá para conversar.

- E conversaram... sobre o quê?

- Bom, ele me perguntou sobre os meus trabalhos anteriores... que não eram muitos... e sobre o comercial da pasta de dentes... então, lá pelas tantas, encaixou uma história sobre a Clara Castanho...

Clara Castanho havia desistido em cima da hora do papel em "O Paciente Polonês", e agora eu entendia o porquê.

- Ele me disse que a Clara Castanho havia feito jogo duro com ele. Que ele era um produtor muito poderoso e que podia fazer decolar ou capotar a carreira de qualquer atriz... depois, começou a elogiar meu corpo... e me perguntou se eu queria ver o dele.

- Como é?

- Acho que ele ia fazer um strip-tease para mim... me deu taquicardia, me levantei, e disse que tinha hora marcada no dentista.

- E ele?

- Me agarrou pela cintura... quando percebi que a coisa era séria, não pensei duas vezes: dei uma joelhada com toda força bem no meio das pernas dele!

- E aí você fugiu do quarto...

- E aí, eu fugi do quarto e liguei para o Marcos Junqueira.

Na época, Maria Luíza havia me dito que houvera uma tentativa de assédio por parte do produtor, mas não entrara em detalhes. Só me perguntara se isso poderia colocar o seu papel no filme em risco.

Poderia, mas não colocou por uma única razão: a interferência direta de Marcos Junqueira, o ator veterano que iria contracenar com ela na produção. Junqueira ficara realmente impressionado com a interpretação da menina e foi falar com Sandoval. Avisou-lhe que se Maria Luíza saísse do filme, ele também estaria fora. Sandoval foi obrigado a aceitar a imposição, mas deste dia em diante, Maria Luíza Marques entrou para sua lista negra.

* * *

E um dia após haver falado com Maria Luíza, que repetira a história que havia me contado, tive a grata surpresa de ver Tina dando uma entrevista à TV, confirmando que havia desistido de pegar o caso de Sandoval.

- Tenho que admitir publicamente que me equivoquei ao assumir este caso. Como sabem, eu costumo representar mulheres vítimas de assédio ou abuso sexual, não homens acusados destes crimes.

- E porque então aceitou representar o produtor Sandoval? - Indagou uma repórter.

- Francisco Sandoval trabalha com meu irmão caçula, Renato, há vários anos. Portanto, não era um desconhecido para mim. Foi esta a única razão pela qual aceitei defendê-lo... ao menos até que denúncias mais graves surgissem através da imprensa.

Obviamente, nenhuma palavra sobre o livro dela que Sandoval ficara de produzir para TV ou cinema.

- Acredita que este engano possa manchar a sua reputação de defensora de mulheres assediadas? - Quis saber outro repórter.

- Já admiti meu erro no início desta entrevista e as razões que me levaram a assumir o caso - insistiu Tina. - Foi uma excepcionalidade. Francisco Sandoval terá que constituir um novo advogado, pois não mais o represento. Houve uma quebra de confiança entre nós, visto que não me explicitou a gravidade das acusações que sobre ele recaem. Tomei conhecimento delas através da imprensa, como toda a população.

Mais tarde, nos encontramos para jantar, e Tina complementou o que dissera à mídia contando uma historinha:

- Sabe porque não se deve usar água para apagar um incêndio em fiação elétrica?

- Não.

- Porque a água conduz eletricidade. Você corre o risco de não apagar o fogo, e ainda morrer eletrocutado.

- Imagino que, nesta história, a sua reputação é que corria o risco de sair chamuscada.

- Exatamente. O que Sandoval precisa, neste caso, é de um bom balde de areia.

Tomou um gole de vinho e concluiu:

- E eu lhe dei um. Indiquei um colega para assumir o caso.

- [14-10-2017]