Meus 15 anos

Meus pés cansados já não acompanham mais meus pensamentos e meus sonhos. Cheguei onde eu não queria, levei um tempo, nadei contra a maré por anos, tudo deu errado.

- Rita, não esqueça que amanhã você entra às 6h.

- Eu sei! Até amanhã.

Nasci em uma família pobre, estudei em escola pública. Morava em um bairro que não era dos melhores da cidade, na minha rua tinha uma viela e era por ela que eu passava todos os dias para ir à escola. Às 6h30 eu saia de casa, entrava na viela e já chegava na rua da escola, os portões abertos para receber a criançada, o pátio já estava cheio de gente, às 7h éramos obrigados a rezar ao Pai Nosso e depois o Hino Nacional. Com dez anos de idade nenhum dos dois fazia sentido para mim, ninguém me explicava o porquê e sim que tínhamos que fazer, do contrário iriamos direto para diretoria.

- Olá! Boa noite, esse ônibus para perto do supermercado Coral?

- Sim.

-Obrigada.

Quando adolescente fui motivada pelos meus pais a imaginar que tudo daria certo, só dependeria de mim, do meu esforço e estudos. Acreditava muito nisso, eu estudava bastante, adorava ler e era uma das melhores alunas da minha sala. Quando meus 15 anos chegaram, tive uma mini festinha feita com muito carinho pelos meus pais, era apenas um bolo e alguns salgadinhos, algumas das minhas amigas da escola aparecerem na festa, foi um dia muito gostoso.

-Hoje esse ônibus está cheio demais e para ajudar essa chuva não para.

-Pois é, já não bastasse meu cansaço de trabalhar em pé o dia todo, para ir embora não é diferente. Amanhã tenho que estar às 6h no trabalho e já são 22h, só chegarei lá pelas 23h30 em casa, é o tempo de banho e cama. Disse Rita.

- Vida dura essa nossa...

Dias depois, eu percebi que estava apaixonada, que o que eu sentia era um frio na barriga e uma ansiedade muito grande. Falei sobre esses sentimentos com a minha mãe e ela me disse: - Filha, isso é paixão! Ela me explicou que era um dos melhores sentimentos da vida, aquele friozinho na barriga, não havia nada que pagasse.

Não disse a ela quem era o rapaz.

Me apaixonei perdidamente por ele, porém eu achava estranho ele passar o dia todo ali naquela viela que, mais tarde, descobri ser uma boca de fumo. Como eu passava por ali todas as manhãs, eu o observava e gostava muito de como ele sorria, nunca desconfiei de nada até porque quando eu o via, sentia as “borboletas” invadirem meu estômago. Como era gostoso sentir aquilo... foi a minha primeira paixão... na época ele tinha vinte anos e eu quinze. Sempre fui muito tímida, mas um dia tive a coragem de conversar com ele, perguntei seu nome e se ele estudava na mesma escola que eu. Ele se chamava Fábio e não estudava. Respondeu as minhas perguntas com desdém, mesmo assim eu insisti se gostaria de sair comigo um dia e ele me disse:

- De graça?

- Como assim de graça? Perguntei e, ele riu.

- Menina, o que você vai me dar em troca da minha companhia?

Mais uma vez a minha inocência não permitiu que eu compreendesse o que ele estava falando.

- Ué, podemos ir ao shopping, eu pago um sorvete.

Ele gargalhou e falou:

- Está certo, que horas?

- Vamos às 19h? Passo aqui na viela para te chamar.

Não contei a verdade para meus pais, só disse que ia à casa de uma amiga, à noite para fazermos um trabalho da escola e minha mãe nem desconfiou, era uma sexta-feira.

- Mãe, se ficar muito tarde posso dormir na casa da Estela?

- Sim, mas te quero amanhã cedo aqui em casa.

Minha mãe sempre confiou em mim e me ensinou a ser honesta, por isso nunca tive problemas com ela, havia confiança entre a gente. Porém, nesse dia eu não queria contar a verdade, não sei porque, mas algo me dizia que tudo daria certo e que quando eu chegasse, eu falaria tudo para ela. Meu pai também sempre confiava em mim e era muito carinhoso comigo. Apesar de trabalhar demais o dia todo, em seu tempo livre ele queria saber se eu estava bem e se as notas na escola estavam boas.

A medida que ia escurecendo eu ia ficando mais animada, porque sabia que iria encontrá-lo. Arrumei minha mochila, coloquei uns cadernos e meu estojo dentro, o dinheiro que tinha foi o que eu ganhei de presente de aniversário do meu pai, era pouquinho, mas para um sorvete dava sossegado. Dei um abraço e um beijo na minha mãe e outro em meu pai e sai com a tranquilidade e a inocência de uma menina que sempre foi muito bem cuidada dentro de casa, que não via maldade nem malicias em ninguém, em casa sempre tive do bom e do melhor que meus pais consigam me dar trabalhando muito, minha mãe como doméstica e meu pai como porteiro.

Encontrei ele na viela, descemos o morro juntos, ele mal falou comigo, mas achei que isso era normal, ele devia ser caladão mesmo.

- Chegou a hora de descer desse ônibus e seguir pra casa debaixo dessa chuva. Disse Rita

- É.… amanhã é outro dia de luta. Tchau.

-Tchau.

Há quantos anos não faço esse mesmo caminho? Desço essa escadaria todos os dias às 4h da madrugada e subo às 23h.

- Oi minha bebê, como você passou o dia? Se comportou?

- Aline, você lavou as roupas que estavam no tanque? Limpou o banheiro?

- Sim mãe, fiz tudo o que a senhora pediu.

- Já fez suas tarefas da escola? Como sua irmã se comportou hoje?

- Ainda não fiz! Fiquei o dia todo com a Camilinha no colo, ela teve um pouco de febre de manhã, mas passou na hora do almoço.

- Que bom, vá estudar e não durma muito tarde.

Como havia combinado de ir com ele ao shopping, nós tínhamos que descer o morro até chegar ao ponto de ônibus. Ele me disse que precisava passar em casa para poder pegar sua carteira, acreditei. O caminho era estranho, nunca havia passado por ali antes, era um beco muito escuro.

A única coisa que eu penso e sinto raiva é daquela fatídica noite em que menti para os meus pais e tive o pior momento da minha vida. Aquele cara tirou de mim toda a inocência que existia em meu coração, me levou em um beco e me estuprou até o momento que ele julgou necessário e a única coisa que vinha na minha cabeça eram meus pais. Por que fiz o que fiz?

- Minha bebê, vamos dormir com a mamãe? Amanhã o dia será cheio de novo.

Era madrugada quando cheguei em casa. Estava desesperada e muito dolorida. Quem abriu a porta foi minha mãe, e quando ela viu meu estado, começou a chorar, a gritar e perguntar repetidamente, o que havia acontecido. Meu pai acordou assustado com os gritos da minha mãe e quando me viu entrou em desespero. Eu não conseguia dizer uma única palavra e só chorava. Minha mãe começou a tirar minha roupa e me colocou debaixo do chuveiro, eu estava suja, aquele cara havia me jogado no chão várias vezes enquanto eu tentava me defender e me livrar das garras dele. Fiquei cheia de hematomas e cada um que a minha mãe via, não conseguia conter os gritos e as lágrimas. Era difícil para ela compreender o que havia acontecido comigo. Depois do banho e do leite quente que meu pai me deu eu comecei a me acalmar, ainda soluçava muito de dor e desespero.

- Aline, são 4h, tenho que sair para ir ao trabalho, sua irmã está na minha cama, vá ficar com ela. Cuide dela! Quando for à escola, deixe a Camilinha com a dona Ana e a avise da febre de ontem. Até mais tarde.

De novo essas escadarias... e ainda continuo com as mesmas lembranças de ontem, quase nem dormi lembrando daquela noite. Só sei que foi a pior que eu já vivi. Minha mãe sem entender direito, começou a me vestir e me levou ao médico. Eu nem sei como cheguei lá, só sei que fui escorada pela minha mãe. Ainda não havia dito uma palavra. Sentei na cadeira da recepção e por lá fiquei por muito tempo. De repente ouvi meu nome. Entrei no consultório. O médico me olhou, me fez algumas perguntas e eu continuava muda. Foi então que me pediu para fazer alguns exames, e pelos hematomas, pediu também o exame ginecológico. Fiz. Deu positivo para abuso sexual. Minha mãe empalideceu.

- Bom dia seu Jorge! Olha nós aqui de novo, nesse ponto de ônibus.

- E não é Rita? A vida parece que demora a passar, mas quando a gente vê já está com idade e entrevado em uma cama, por ter levado uma vida tão pesada como a nossa.

- Pois é...

Parece que posso encontrar quem for na minha frente, se eu não remoer essa história de novo, não ficarei em paz!

Assim que minha mãe soube que eu fui estuprada ela começou a chorar muito, meu pai também. Naquele dia fiquei internada no hospital, recebi muitos remédios na veia e adormeci por horas. Quando acordei, recebi alta. O médico aconselhou a fazer o boletim de ocorrência, porém naquele momento eu não tinha condições de relatar a ninguém o que eu estava sentido e muito menos como tudo aconteceu. Meus pais perderam o dia de trabalho e isso me matou por dentro. Eu tinha plena consciência do quanto eles poderiam ser prejudicados por isso, mas mesmo assim não me abandonaram nem um minuto sequer. Quando chegamos em casa, minha mãe queria conversar. Eu não queria. Ela me respeitou. Me levou para o quarto, e lá, passei o dia. Por conta dos remédios muito fortes em meu organismo, a sonolência era inevitável, dormi mais um pouco e quando acordei já era outro dia. Recebi da minha mãe um bom dia e uma bandeja de café da manhã, ela disse que não sairia do meu lado se eu não falasse como tudo aconteceu.

Decidi contar. Sentia-me muito suja relatando tudo aquilo, e a cada palavra que eu dizia para minha mãe, eu me machucava mais um pouco e ainda por cima machucava minha mãe. Ela já tinha visto esse cara na viela. Sabia de quem eu estava falando e sabia mais, sabia que ele não prestava e além disso fazia parte do grupo de traficantes que “comandavam” o bairro. Minha mãe tinha consciência que mexer com um deles era morte na certa. Ela sabia, eu não. Me envolvi com o pior homem que poderia ter escolhido. Foi minha primeira paixão e foi a que arrancou tudo o que eu possuía de mais puro. Depois do acontecido, nossa família nunca mais foi a mesma. Meu pai entrou em depressão, era como se estivesse com as mãos atadas. Pobre, numa casa humilde, morando em um local comandado pelo tráfico sabendo o que tinha acontecido com a sua filha e nada podia fazer. Não porque ele não quisesse ou não tivesse vontade, e sim, porque sabia que se fizesse algo, a vida de todos da família estaria em perigo de morte. Minha mãe sempre foi muito forte, para mim ela era minha fortaleza. Quando meu pai entrou em depressão, começou a não querer mais trabalhar, era um martírio fazer com que ele levantasse da cama pela manhã, a consequência foi a perda do emprego. Minha mãe começou a fazer o dobro de faxinas. Tinha dia que chegava em casa e só dava conta de tomar um banho e dormir, mais nada, e eu vendo tudo aquilo. Parei de ir à escola. Não cheguei a terminar meus estudos e com dezesseis anos comecei a ser doméstica igual a minha mãe. Em um ano parecia que eu tinha envelhecido dez. Me sentia acabada, suja, incapaz e sabia que a decadência da minha família era culpa única e exclusivamente minha.

Meu pai faleceu quando eu estava dezoito anos. A depressão corroeu todo seu ser. Minha mãe ficou viúva, e eu, órfã de pai. Sabia que a morte dele era minha culpa. Dias depois, descobrimos que minha mãe estava com pneumonia. Ela, teimosa, não parou de trabalhar, não cuidou da doença e acabou falecendo meses depois. E eu? Que destino eu tracei para minha vida e a de minha família? Matei meus pais; eu também me matei. Hoje eu sobrevivo, não sou feliz, trabalho para sustentar duas filhas que tive ao longo do tempo com um homem que está preso há cinco anos por tráfico de drogas. Sou reincidente na morte, na insanidade, não aprendi com o erro do passado e cometi o mesmo anos depois. A diferença é que o pai das minhas filhas nunca me agrediu fisicamente, só verbalmente. Aceitei e o aceito ainda hoje. Mantenho minha casa sozinha, trabalhando o dia todo em um açougue, lugar onde comecei como faxineira e me tornei caixa. Sempre fui muito boa em matemática e subi de cargo por causa disso. Passo o dia em pé e aos domingos preciso chegar mais cedo para abrir o comércio.

-Bom dia dona Maria! O que a senhora deseja levar hoje? O açougueiro ainda não chegou.

Cintia L Santos
Enviado por Cintia L Santos em 15/10/2017
Código do texto: T6143534
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