O LIVRO DOS ARREPENDIMENTOS
 

Surendra disse, então:
- Não gosto de pretos, Kindsu.
- Como? Então gosta de quem? Dos brancos?
- Também não.
- Já sei: gosta de indianos, gosta da tua raça.
- Não. Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de ti, Kindsu.
 
Mia Couto - Terra Sonâmbula.
 
 


 
Luna era uma menina exemplar: filha excelente, estudiosa e meiga. Orgulho da família, nunca deu motivos para preocupação, tinha as respostas certas para os momentos adequados, sabia se portar à mesa, comia salada, não sujava a roupa, fazia toda a lição de casa e ajudava a mãe nos afazeres domésticos.
 
Porem, Luna não tinha amigos. Na escola não conversava com ninguém e no recreio permanecia na sala de aula para evitar contato com outras crianças. Não gostava de ser vista, sentia-se objeto de piedade e culpada por ser quem era, e como era. Queria ser igual a todo mundo, num mundo sem cor.
 
Sabia que meu pai é chefe do seu pai? Você tem cor de barro, você é suja! Ai não, professora, não quero sentar com ela! Foi você que pegou meu lápis! Minha mãe disse que sua avó era benzedeira! Você é uma bruxa, negra como as trevas!
 
Luna suportava essas ofensas todos os dias, e todas as noites, em forma de pesadelos. Atividades sociais passaram a ser seu martírio: não gostava quando a olhavam, sentia-se perseguida e alvo de julgamentos o tempo todo.  
 
A menina só tinha paz quando se refugiava no porão de casa, onde encontrara livros antigos de sua falecida avó. A leitura era sua carta de alforria, tirava-a daquele mundo de horror em que vivia. No porão estava longe da escola, protegida, submersa num mundo mágico de fantasias. Eram muitos livros, de todos tipos e assuntos, mas um deles chamou-lhe a atenção por ser mais antigo que os outros. Na capa estava escrito O Livro dos Arrependimentos. Ficou curiosa com o titulo e, ao tirá-lo da prateleira, sentiu uma repulsa inexplicável, jogou-o no chão e correu para seu quarto.
 
A manhã seguinte na escola não foi diferente das outras. Luna era um animal desprotegido numa selva de monstros gigantes. A cada ofensa sentia um aperto no peito; parecia que todos eram cegos por não verem suas lágrimas, nem sua solidão. Nem mesmo sabiam o que era o peso da rejeição. Nesse dia, a manhã tardava para acabar e o ponteiro do relógio corria lentamente. Para esquecer tudo aquilo, Luna debruçou-se sobre a carteira e fechou os olhos para poder viajar no tempo.
 
De repente sentiu-se muito pesada, presa à cadeira, como se estivesse acorrentada a ela. Parecia que estava sofrendo por muito tempo, mais tempo que sua própria existência: estava sentindo a dor de pessoas que ela não conhecia, mas que de certa forma estavam ligadas a ela, acorrentadas pelo mesmo tronco. Viu marcas, sangue, cicatrizes, lágrimas, orações, sensação de abandono, perda, ódio e vingança. Viajou meses por mares desconhecidos para um lugar incerto, viu um navio negreiro transformar-se em navio fantasma, celeiro de corpos que não aguentaram uma jornada cruel e desumana. Suas costas ardiam em brasa, ouviu o som do chicote, os gritos de dor, sentiu o sol queimando sua pele, o sal das lágrimas e do suor ardendo-lhe os olhos, a sede, a fome, a noite escondendo seus piores medos. Fugiu em busca de liberdade e foi caçada como animal. Viveu a morte e morreu pela vida de seus filhos.
 
- Luna, acorde. Acabou a aula. - disse a professora, tocando suas costas.
 
Assustada, juntou seu material e correu para casa. A única coisa - ou lugar - que pensou foi no porão, pois somente ali poderia estar segura. Viu o Livro dos Arrependimentos no mesmo local onde deixou, tomou coragem e abriu, dessa vez, sem sentir medo. As páginas estavam amareladas, muitas delas rasgadas. Pelo pouco que leu, parecia ser um livro de receitas e feitiçarias. Pensou se esse era mesmo seu destino, como os outros diziam. 'Se for, posso mudar esse mundo que e tão cruel comigo', refletiu. Procurou avidamente por um feitiço que pudesse ajudá-la, mas tudo que encontrava eram receitas de bolo e feitiços para reatar namoro, conseguir dinheiro ou curar doenças. Estava perdendo as esperanças quando, na última pagina, encontrou um feitiço chamado o mundo sem cor. Segundo ele, o mundo inteiro ficaria branco. Sem pensar duas vezes, seguiu a receita à risca. E tudo funcionou como ela queria.
 
Pela primeira vez depois de muito tempo foi à escola eufórica. Ao chegar na sala de aula, percebeu que ninguém a via como uma pessoa diferente, pelo contrário, trataram-na como qualquer colega de classe. Luna conseguiu até sair para o recreio e fazer novos amigos. Finalmente não se sentiria mais diferente e todos a amariam, pensou. Porém, ao voltar para a sala, viu que os colegas estavam tristes e queixavam-se do novo mundo:
 
- Eu não sei porque tudo mudou de repente, mas não gosto disso. Pintar era minha maior alegria, e tudo que consigo fazer agora é pintar quadros em branco - Reclamou Lúcia.
 
- Não consigo mais comer direito, tudo é branco e sem gosto. Sinto falta até do verde da salada. - Queixou-se Pedro.
 
- Do que adianta arco-íris sem cor? - Perguntou Iara.
 
As reclamações pareciam não ter fim e Luna estava cheia delas. Nada era perfeito para eles, constatou. Ao menos, agora ela era aceita e ainda tinha os livros do porão para entretê-la. Mas ao abrir um deles, encontrou as páginas em branco. Abriu outro, e mais outro, mas a realidade branca com que sempre sonhara tornou-se um pesadelo e invadiu seu lugar mais precioso.
 
E não era só isso: os livros do mundo inteiro estavam assim. As pessoas, analfabetas, não conseguiam ler porque escreviam em branco. Tudo que tinham era uma montanha de livros sem nada a dizer.
 
Arrependida, Luna pensou em reverter o feitiço, mesmo que aquilo trouxesse de volta todo o seu sofrimento. Em desespero, correu para o Livro dos Arrependimentos, mas ele também estava em branco. Então teve a ideia de escrever, no próprio livro, uma receita para que o mundo fosse colorido outra vez. Sabia que escreveria em branco, mas se lembraria de cada passo. Fez tudo naquela noite.
 
Exausta, foi dormir. Durante toda a noite teve um sonho estranho e acordou desconfiada. Olhou ao redor e o quarto estava todo branco, mas lembrou-se que ele foi sempre assim. Foi até a penteadeira, porém ficou com medo de se olhar no espelho. Pela primeira vez, queria que ele refletisse a imagem de uma menina negra. Distraída, abriu a gaveta e pôs a mão sobre uma tolha branca e felpuda.
 
Uma pantera correndo na neve; o pelo escuro reluzindo como diamante, os olhos azuis mirando aonde queria chegar: a montanha de cume mais alto; o porte imponente e magistral herdado de seus ancestrais - foi esse o sonho que Luna tivera e finalmente ela entendia.
 
As mãos negras deslizavam agilmente sobre a toalha. A menina ficou admirada com o contraste do preto com o branco, da forma como eles se complementavam, da mão negra protegida e embalada pelo manto branco. Sabia que era assim que deveria ser, e era assim que as pessoas deveriam ver.
 
 


 
 
Conto com você, um mais um é sempre dois
E depois, mesmo, bom mesmo, é amar e cantar junto
Você deve ter muito amor pra oferecer
Então pra que não dar o que é melhor em você?
Venha e me dê sua mão
Porque sou seu irmão na vida e na poesia
Deixa a reserva de lado
Eu não estou interessado em sua guerra fria
Nós ainda havemos de ver
Uma aurora nascer
Um mundo em harmonia
Onde é que está a sua fé
Com amor é melhor, ora se é

 
Mundo Melhor - Pixinguinha e Vinícius de Moraes
 

 

 
Este texto faz parte do Exercício Criativo "Uma receita"
Saiba mais e conheça os outros textos acessando: http://encantodasletras.50webs.com/umareceita.htm


 
Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 10/06/2013
Reeditado em 18/03/2014
Código do texto: T4334003
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