A menina que chorava lágrimas de ouro (EC)

A busca já chegava ao seu segundo dia. Por mais que a gente já tivesse cavalgado, a estrada parecia não ter fim. Ouviram-se boatos de que ela não estava tão longe, era só seguir em frente. Uma menina não podia escapar de um reino comandado por um rei obcecado. Não podia.

A única aldeia que encontramos no caminho pertencia á um casal de velhos. Era um lugar seco, cheio de folhas crocantes. A casinha que eles vivam era feita de palha. Nós a revistamos em questão de segundos, e não tivemos nem sinal da peste. Perguntamos se eles sabiam de alguma coisa ou se a tinham visto, mas eles desataram a negar. Ao verem nossas espadas, tremeram descontroladamente. Resolvemos deixá-los e seguir em frente, afinal, ela não poderia estar se escondendo por ali. Não havia florestas e nem mato alto para se esconder.

Eu queria achá-la logo e voltar á tempo para o grande banquete, que seria dado para a nova mulher do rei. A antiga havia sucumbido á uma doença desconhecida, que agora tomava conta do resto do reino. Pessoas caíam mortas todos os dias. Ficou conhecida como a ‘’praga da rainha’’. Mesmo contra as regras religiosas do nosso povo, o rei escolheu uma garotinha cheirando á leite, ainda donzela. Eles se casariam em breve. O banquete seria realizado para oficializar essa união.

Eu prometera voltar com um trio de javalis e com a menina, mas a promessa parecia um pouco vaga. Nunca havia viajado tão longe. Na verdade eu nunca saíra da cidade. Foram dispostos á mim, quatro homens. Dois deles haviam lutado em batalhas, e discordavam da minha liderança. Pelo menos acatavam as minhas tímidas ordens. Eles seguiam na linha de trás, protegendo o príncipe, que ia logo atrás de mim e do meu filho mais velho, que também me acompanhava nessa missão. Era um garoto bem disposto. Treinava com os melhores mestres de armas, mas não passava de um menino. Era grande amigo do príncipe, e por isso cavalgava com a gente. Ele sorria á todo momento quando eu o olhava, mas não parecia nada convincente.

- Vamos parar por hoje. – anunciei, percebendo que já era quase noite.

- Não podemos parar. – afrontou-me o príncipe. Era um garoto rosado, um ano mais velho que o meu filho. Corriam boatos de que era um molenga, mas por ser filho do rei isso estava fora de cogitação. Oferecera-se para nos acompanhar na busca, certamente para tentar demonstrar alguma garra. Não estava convencendo. – Você prometeu ao meu pai que iria voltar antes do banquete. Vai ser amanhã á noite.

Ele falava sem parar e isso me irritava. Com certeza não seria uma pessoa que eu escolheria para me acompanhar por tanto tempo. Eu deveria dar um corretivo nele, mas o garoto era o príncipe. Os dois homens mais velhos me olhavam com um sorriso de escárnio, esperando que eu o desafiasse.

- Meu filho já não aguenta mais cavalgar.

- Pai...

- Seu filho que se dane! – rosnou um dos homens. O mais velho. Braço direito do rei e principal protetor do príncipe. O desgraçado tinha uma pericia estrondosa em batalhas.

Eu não bateria de frente com ele tão abertamente.

- Se o senhor tiver um pouco de compaixão, vai perceber que ele tem andando muito branco. Mais um pouco e é capaz de ele desfalecer e cair do cavalo.

- Você fez uma promessa para o rei. – resmungou o príncipe. – Sabe o que ele faz com homens que não cumprem promessas?

- Eu não sei, vossa alteza. Espero não saber.

- Então é melhor continuarmos. – desafiou o garoto, me olhando como se eu fosse um capacho.

Olhei para o meu filho. Ele acenou timidamente com a cabeça, aceitando mais um pouco de cavalgada.

- Então vamos. – cedi nada animado.

Cavalgamos por mais duas horas, e já era noite avançada quando encontramos outra aldeia. Essa parecia ser mais habitada, afinal de contas, um grande número de casinhas estava disposta em grupos de quatro. Olhei para os dois cavalheiros, que apenas assentiram. Descemos do cavalo e pedi para que meu filho ficasse. Nunca se sabe o que pode acontecer no desconhecido. E depois de muita insistência, o príncipe também consentiu em ficar.

Não demorou muito e um grupo formado por homens velhos veio á nosso encontro. Nós dissemos o que queríamos. Carregávamos o estandarte do rei, por isso eles consentiram. Me senti procurando uma agulha no palheiro. Tudo bem que ela não devia estar tão longe, mas procurar por uma menina que a gente não conhece não é uma das tarefas mais digestivas.

Ela havia desaparecido há alguns dias. Quem percebeu seu desaparecimento foi o próprio príncipe, pois á ele estava prometida. Era a forma que o rei havia encontrado de fixá-la na corte. Era o seu pupilo. A menina chorava lágrimas de ouro, e corriam boatos de que a vossa majestade maltratava a mãe da garota em sua frente, fazendo com que ela chorasse e, assim, o deixasse mais rico. Não se sabia se isso era verdade, ninguém nunca tinha visto, mas o boato tornara-se mais forte depois que ela sumira e o rei desembestara para consegui-la de volta. Se fosse apenas uma prometida do príncipe, eles encontrariam outra em questão de segundos. O que não faltava no nosso reino eram velhas ricas querendo embarrigar suas netas com sementes reais.

Eu me sentia um intruso. O rei dera a liderança pra mim porque considerara a missão de pouca periculosidade. Em sua cabeça, encontrar uma simples menina não poderia ser considerada uma missão real. Acabei aceitando, mas sem nenhuma vontade. Para que aquele momento em que ele me indicara não ficasse vago, prometi três javalis gigantes para o banquete. O rei riu, abanou a mão e virou ás costas. Estava prometido.

Não foi preciso garimpar muito para encontrarmos uma garota encolhida num canto e enrolada em trapos. Ela parecia estar dormindo. Eu nunca a vira antes, e olhar pra ela causou um choque em mim. Ela tinha a presença poderosa, era como se pudesse nos controlar apenas com seus sonhos. Olhei para os dois cavaleiros, que também a encaravam sem reação. Eles, certamente, já haviam tido algum contato com ela, e por isso pareciam mais assustados do que eu. Ela suspirava com leveza enquanto dormia. Seria uma covardia do tamanho do nosso reino acordá-la. Parecia uma figura tão delicada, mas ao mesmo tempo intensa. Desejei que ela não acordasse. Não queria receber seu olhar interrogativo.

E foi necessário o menor barulho para fazê-la abrir os olhos, o que o fez lentamente. Olhou para nós, estudando cada expressão. Não sei se eu estava maravilhado demais com a força que ela emanava, mas por um momento, antes que ela piscasse pela primeira vez, seus olhos pareciam ser da cor dourada. Ela acariciou os cabelos que eram de um louro reluzente. Tão lisos quando bunda de bebê. E depois de um longo silêncio, ela sorriu. Aquele sorriso teve um efeito anestesiante em mim. Percebi que concordaria com tudo que ela falasse. Parecia mágica; uma forte mágica.

Quando ela falou, sua voz era doce e aveludada:

- Sei porque estão aqui. Querem me levar de volta para o reino. De volta para o rei.

- Sim, futura rainha. – engasgou o outro cavaleiro. Claro que eles teriam um comportamento diferente com a garota, afinal, ela era prometida do príncipe. – Temos ordens para leva-la de volta.

Ela sorriu.

- Será que vocês são tão cegos assim? Não percebem que o rei faz uso de vocês para obter seus prazeres?

- Nós servimos á ele. – resmungou o cavaleiro experiente.

- Servem porque tem medo.

Silêncio. Eu não ousava falar nada. Queria saber onde ela ia chegar.

- Eu posso fazer de vocês homens livres. – ela parecia estar gostando de fazer aquele jogo. – Aceitam?

Os dois engasgaram e olharam pra mim. Pela primeira vez pareciam querer a minha opinião.

Tentei parecer firme:

- O que sugere, futura rainha?

- Sugiro que vocês não me levem de volta para o rei.

- Isso é impossível...

- Me deixem aqui e vão buscar a minha mãe. – ela completou sem dar atenção para a interrupção feita por mim. – Eu posso fazer de vocês homens ricos.

Ela apontou para o outro canto e só então eu percebi a quantidade de cebolas jogadas ali. Entendi prontamente o que estava acontecendo.

- Pegue uma cebola pra mim.

Assenti e assim o fiz. Ela segurou a cebola e a ficou encarando, como se estivesse numa conversa intima mental. Rapidamente, tirou a casca e a partiu em duas partes com a mão. Com uma espécie de selvageria, enfiou o nariz e respirou fundo. Diversas vezes.

- Futura rainha, o que está...

E então eu vi. Um líquido grosso e dourado escorria de seus dois olhos.

- Vamos, pegue aquele cálice. – ela ordenou.

Peguei o cálice e o pressionei no rosto da garota, fazendo com que o filete de ouro se desviasse para dentro do recipiente. Repeti com o outro olho. Era uma pequena quantidade, mas era ouro.

- Posso deixar vocês ricos. – ela sorria novamente. – Se voltarem para o castelo e trazerem a minha mãe. Tragam a maior carga de cebolas que conseguirem. Vamos para o povo livre do outro lado do mundo. Lá eles não podem nos achar.

Ficamos em silêncio, nos encarando. Eu sabia que os dois cavaleiros estavam pensando o mesmo que eu. Era uma oferta tentadora. Eu não sabia se devia confiar muito naquela menina, mas ela parecera tão verdadeira e... apavorada. Certamente ela não estava fazendo por nós, mas sim, por sua mãe. Nunca me dei bem com dilemas. Agarrá-la, levá-la de volta para o rei e acabar com aquilo tudo ou fazer o que ela estava pedindo e me tornar um homem rico lá no outro lado do mundo?

Os cavaleiros me encararam, assentindo. Tinham chegado á uma conclusão.

E eu também...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Lágrimas de Ouro

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Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 11/11/2013
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