A Montanha e as Fadas

Nós a chamamos simplesmente de “Serra”. Trata-se de um morro bem mais alto que os demais a sua volta, visto de sua face norte encanta pela cobertura vegetal em sua parte mais alta e mostra seus dois cumes, um mais baixo a oeste, que se funde a paisagem ao redor e outro voltado para leste. Essa face oriental é a mais bela, a montanha, acho que não há mal em chama-la assim, destaca-se por ser um cone perfeito, lembrando muito o formado de um vulcão, novamente aqui a cobertura vegetal está somente em seu topo, onde há também uma pequena capela construída por gerações passadas. Para se ter acesso a esta capela é utilizada uma trilha na face sul da montanha, embora de fácil acesso é bem cansativa, nos primeiros metros de subida o terreno é composto por areias brancas, uma areia de granulação bem grossa proveniente da erosão do quartzo que forma parte das rochas desse lugar. Ali também está a mais feia cicatriz humana neste pedaço da natureza: uma saibrera, um grande buraco utilizado para retirar areia da Serra. Temo que no futuro este buraco crescerá tanto que não haverá muito mais de belo neste lugar. Outra ameaça é o avanço de pastos para o gado que de tempos em tempos são “limpos” por queimadas, como o pequeno resíduo de mata escapou ileso até agora de um incêndio chega a ser um mistério.

Essa pequena mata abriga o restante da trilha, antes de chegar a sua margem já se tem um belo vislumbre da paisagem em volta: mares de morros a perder de vista. Uma vez no topo a vista é mais bela ainda, podemos ver tão longe que as montanhas distantes adquirem uma coloração tão azul quanto a do céu sobre nossas cabeças e lá embaixo as sombras das nuvens flutuam soltas sobre um mar verde de morros e colinas.

É um belo lugar.

Quando mais jovem gostava de passear na encosta dessa montanha. Há uma água cristalina e saborosa que desce sempre gelada em meio a areia. Também aproveitava para explorar, sempre tive uma fascinação especial por rochas e minerais e lá já encontrei pedras muito bonitas, como cristais de quartzo, madeira fossilizada e estranhas pedras metálicas (não sei ao certo o que eram, mas acredito serem cristais de silício de alta pureza, pois é, imagine um cristal feito de metal, eram muito belos, mas bem raros, e os que eu tinha se perderam). Como naturalista amador também me encantava pelas plantas, já que uma boa parte da encosta era formada por areias brancas em certos momentos tinha-se a impressão de estar num deserto ou savana, algumas áreas eram dominadas apenas por cactus, alguns de porte bem grande, outras por pequenas e retorcidas arvores, muito parecidas com as encontradas no cerrado e na caatinga, mais acima começava a mata, verde o ano todo, apesar de não ser uma floresta de grande porte ali pode-se encontrar muito da Mata Atlântica como belas bromélias e samambaias.

Há muitos bichos lá também, quando mais novo saía para caçar com meu pai e meu irmão (felizmente meu pai nunca mais se envolveu com essa prática e hoje respeita muito a natureza a ponto de se arrepender do que fez, entretanto naquela época muitas das vezes a carne de caça era a única disponível e confesso, com pesar, que já experimentei pratos de um ou outro pássaro silvestre). Macacos, papagaios, tucanos, quatis, gambás, lobos guarás e muitos outros são vistos por lá, há algum tempo atrás correu o boato de que onças também frequentavam aquelas bandas, boato confirmado por meu pai que se deparou com uma bela onça parda bebendo água no riacho que desce a montanha. Infelizmente eu não tive a sorte de ver este belo animal, ainda.

Foi com o desejo de tentar encontrar pistas desse animal e de mais uma vez respirar o ar arbóreo da serra e provar de sua doce água cristalina que aproveitei o último dia de minhas férias para fazer uma caminhada até seu topo. Me preparei colocando uma roupa folgada e um tênis surrado, mas resistente, uma velha mochila serviu para guardar uma garrafa de água, algumas laranjas e uns biscoitos, não precisava de mais.

Chegado o grande dia logo pela manhã vejo que a Serra está tomada por outra coisa que a caracteriza: neblina. Nuvens baixas adornam o topo da montanha. Entretanto todo céu em volta está se limpando, deixando a mostra um azul de pintura.

Certo de que não choveria e teria tempo limpo o dia todo peguei a estrada no meio da manhã, até a base do morro eram apenas cerca de trinta minutos de caminhada e era o único trecho onde não encontraria nenhuma sombra de verdade para me proteger. Uma vez abandonada a estrada era hora de pular um velho córrego, visto que a ponte sobre ele permanecia fechada a maior parte do tempo para conter o gado. Por alguns instantes parei e observei algumas vacas e bois ao longe, quando criança nossos pais nos desencorajavam a ir até lá contando histórias de “vacas pegadoras”, os ruminantes dali apenas me olhavam com curiosidade e voltavam a pastar, podia ficar tranquilo. Me chamou a atenção a presença de algo inusitado, como aquela era uma região de pasto não era incomum a presença de cogumelos (nos os chamávamos simplesmente de “sombrinhas de cobra”), entretanto o que mais me surpreendeu foram algumas formações raras de círculos de cogumelos, havia algumas bem grandes sim. Os cogumelos são fungos, formam pequenas colônias subterrâneas e crescem de dentro para fora a medida que vão consumindo os nutrientes da região em volta, a linda sombrinha que vemos é o órgão reprodutor do fungo. Imediatamente me lembrei de uma amiga da internet que sempre gostou de seres místicos, ela adora pintar fadas e elfos e com certeza acharia interessante uma formação daquelas, já ouvi dizer que fadas habitam cogumelos. Infelizmente não vi nenhuma fada dentro ou fora daquele círculo, talvez fadas não gostassem de céticos. De qualquer forma aquele pensamento permaneceu dormente dentro de mim e me acompanhou em minha pequena exploração, eu não sabia, mas aquilo teria profundas consequências.

Iniciei a subida por uma estrada aberta para o tráfego de caminhões caçamba, ela não levava diretamente ao topo e eu a utilizei apenas para chegar a uma área onde antigamente encontrava os curiosos minerais. E não demorou muito achei o primeiro: um fragmento de madeira fossilizada, um pedacinho do tamanho de uma pedra pequena, era negro, duro e brilhante, apresentava um aspecto vítreo, o mais interessante é que num olhar mais atento podia-se ver os detalhes tais como os sulcos de uma antiga casca e as linhas dos anéis marcando a idade da planta, deduzi que aquilo pertenceu a um pedaço de galho ou pequeno tronco de uma arvore de eras remotas. Gostaria de ter encontrado também outros daqueles cristais metálicos de silício, mas não tive sorte.

Retornei a trilha, abaixo de mim uma multidão de cactus apontava seus braços finos para o céu, acima eles cediam espaço para pequenas arvores retorcidas. Aproveitei para olhar a paisagem e vi algo que não gostei: nuvens se aproximavam. Era dezembro e dezembro sempre chove.

“E agora, será melhor voltar?” – pensei.

Por alguns instantes permaneci parado no mesmo lugar. A subida seria bem rápida se eu apertasse o passo, mas ficaria muito pouco tempo lá em cima antes de chover, poderia ser também que não chovesse nada e o tempo ficasse apenas nublado, apesar disso significar uma vista não muito clara era melhor do que nada.

Decidi continuar a subir. Em breve minhas férias terminariam e não teria outra oportunidade assim tão cedo.

Acelerei o passo e com isso me cansei o dobro. O que era para ser uma caminhada de lazer tornou-se um exercício de muito esforço físico, mas enfim cheguei a parte da trilha onde a mata começava, agora pelo menos estaria protegido pela sombra das arvores e o ar a minha volta seria um pouco mais fresco.

A atmosfera diferente escondia o barulho das aves silvestres, aqui e ali uma ou outra borboleta colorida batia suas asas e, como nada é perfeito, alguns pernilongos aproximavam-se para me dar as boas vindas.

O caminho era muito sinuoso e acidentado, as únicas marcas que via eram de pneus de motos, os trilheiros adoravam subir aquele trecho com suas motos. Infelizmente mesmo ali eu via lixo, eram sacolas plásticas, garrafas pet, embalagens de doces e latas vazias, o ser humano corrompia até aquele pedaço de chão com sua imundície.

Quando estava quase na metade do caminho ouvi um barulho que me assustou, um trovão. A chuva viria.

Não havia como voltar, se chovesse forte a enxurrada escorreria pela trilha tornando o caminho perigoso. O melhor seria tentar chegar ao topo antes que começasse a chover, talvez eu conseguisse abrir a pequena capela e me abrigar lá dentro. Pensando assim acelerei ainda mais a caminhada. Mal pude parar para apreciar o caminho, formado apenas por uma trilha estreita coberta por arvores que, embora de pequeno porte, me impediam de ver o céu. Escorreguei muitas vezes e arranhei as pernas em alguns espinhos. Naquela pressa toda algo mais uma vez chamou minha atenção: cogumelos.

Os cogumelos pareciam se proliferar pela trilha, além das pequenas sombrinhas alguns galhos e troncos caídos a margem do caminho exibiam belas e coloridas “orelhas-de-pau”. O curioso é que a medida que subia os cogumelos pareciam se tornar maiores.

Deixei os cogumelos de lado, algo realmente preocupante acontecia: a neblina. Aquele era o ponto mais alto da região e não era incomum estar envolto em nuvens e, pelo que eu conhecia do clima da área, as vezes elas demoravam a se dissipar. O caminho a minha frente foi se tornando todo branco, a visibilidade caiu muito e senti as primeiras gotas de chuva em minha face.

“Que enrascada eu fui me meter! Subir a serra logo na época das chuvas!” – falei comigo mesmo.

Subi a trilha quase correndo, os tropeções e arranhões se multiplicaram por conta da baixa visibilidade. Só então compreendi que já deveria ter alcançado o topo da Serra. Era impossível estar perdido, sabia que a trilha não se ramificava, além disso eu continuava a subir, chegar ao ponto mais alto era obvio, se eu passasse dele estaria descendo e não subindo!

Outra coisa que senti foi a queda da temperatura. Se lá embaixo estava na casa dos trinta graus debaixo do Sol, aqui no meio da mata e da neblina não parecia fazer nem vinte. Fiquei com muito medo da chuva que não vinha, por enquanto só pingos esparsos aqui e ali. Muito cansado decidi parar um pouco. Podia ser que a capela estivesse a apenas três metros de distancia, podia ser também que estivesse a trinta, de qualquer forma não sentia mais vontade de chegar ao topo, senti que algo estranho acontecia ali e seria melhor enfrentar a chuva.

Assim, envolto pelo manto branco da neblina, me sentei na trilha e esperei.

Tomei um pouco de água e comi uns biscoitos para repor as energias. Aos poucos meu folego foi se recompondo. Tentei olhar em volta, era impossível ver com nitidez além de poucos metros. Além da falta de visibilidade outra coisa inquietante era o silêncio, era como se a mata estivesse toda em um sono profundo.

É curioso, mas acho que nunca me senti tão sozinho em toda a minha vida como naquele momento, o mundo a minha a volta parecia simplesmente não existir.

“Bem, é hora de voltar.” – decidi.

Me levantei e me preparei para a descida quando meus ouvidos captaram o primeiro ruído em muito tempo. E não era um ruído qualquer, era uma espécie de riso.

Me assustei! Então não estava sozinho.

“Deve haver crianças por perto” – pensei.

Por um momento acreditei realmente ter desviado da trilha, havia algumas fazendas próximas e de repente eu tinha ido parar nas cercanias de alguma, o mais intrigante é que essas fazendas se encontravam no pé da Serra e eu tinha certeza de estar bem alto.

O riso não se repetiu e eu achei melhor me mandar dali. Comecei a descer a trilha quase correndo. E outra vez parei, outra vez ouvi o riso, agora muito mais próximo.

Sabe aquele pressentimento que se tem quando achamos que estamos sendo observados? Pois é, eu o senti naquele momento. Meu coração bateu um pouco mais forte e me sentindo um pouco acuado gritei:

- Alô! Tem alguém aí?

Escutei apenas mais um risinho escondido na neblina.

- É alguma brincadeira? Eu conheço você? - falei mais uma vez, seria possível que alguma criança houvesse me seguido e agora tentava me pregar uma peça?

Tentava visualizar o ponto de onde ouvia os risos, mas nada via.

- Se tem alguém aí pode se revelar , logo deve chover e é perigoso ficar aqui.

Nada, só risinhos, e eles pareciam mudar rapidamente de direção. Seriam várias, e não apenas uma criança?

Cansado daquilo comecei a correr, confesso que por dentro fiquei com medo, nunca acreditei muito em histórias de assombração, mas sabe como é, como bom mineiro sempre temos nosso lado supersticioso. O problema é que correr não foi uma boa ideia, não com o que vi logo a seguir.

Primeiro pensei ter sido um relâmpago, depois um lampejo da luz do sol. Mas não era nenhum nem outro, algo passou em minha frente e brilhou como um flash. O que aconteceu depois foi uma ação das mais desastradas, tropecei e comecei a rolar ladeira abaixo e devo dizer que rolei como uma abobora madura como dizemos por aqui. Não sei por quanto tempo cai, a trilha parecia ser tão interminável para baixo quanto era para cima. Mas finalmente parei, parei de cara no chão.

Se não bastasse, a minha volta ainda ouvia risinhos.

Me levantei, o corpo doía todo, bati a poeira de minha roupa e ajeitei minha mochila. Só então olhei ao redor.

O que vi é quase indescritível, por isso peço desculpas se não conseguir transmitir tudo. Eu estava no meio da mata, mas não parecia ser a mesma mata de antes, ali as arvores eram maiores e mais frondosas, com troncos tão espessos quanto colunas de mármore. A neblina ainda se mantinha, mas bem menos espessa, por isso consegui divisar vários detalhes, vi um riacho ao longe, não poderia ser o mesmo riacho que descia da Serra, este era bem mais largo e caudaloso, borboletas multicoloridas e lindas libélulas voavam por toda parte, os galhos das arvores eram adornados por lindas bromélias e cipós iam do chão até suas copas, o solo estava coalhado dos mais incríveis cogumelos que já vi, aqui e ali pequenos cristais brilhavam a distância, alguns eram daqueles de silício que eu tanto queria. Esfreguei os olhos uma, duas, três vezes e a cena continuava a mesma.

- Não acredito no que vejo! – falei.

Deixei minha posição estática e comecei a caminhar sem tirar os olhos das maravilhas que me cercavam.

Foi aí que os flashes surgiram de novo. Passavam em minha frente velozmente, tentei afugenta-los com as mãos, mas cada vez mais apareciam. E de novo os risinhos.

- Está bem, vamos parar com isso já! – gritei e todos os flashes sumiram.

- Assim está bem melhor – falei.

A sensação que tinha era um misto de deslumbramento e medo. Não sabia onde estava e também não sabia quem me observava. Só que não demoraria muito eu responderia a essa segunda questão.

Pensei ter visto movimento em um arbusto próximo e, não sem um pouco de receio, corri até lá, me aproximei devagar e já pude ouvir o risinho novamente.

“Agora pego você!”

Sorrateiramente me abaixei e em seguida pulei sobre o arbusto o mais depressa que pude. Vi apenas várias libélulas e alguns flashes de luz escapando por todos os lados, risos preenchiam o ar em todas as direções enquanto eu mais uma vez dava com a cara no chão.

Enquanto cuspia pequenos tufos de mato percebi que um dos risinhos estava muito perto, parecia vir de um grupo de cogumelos logo a minha frente, me arrastei até ele. Eram cogumelos bem grandes e detrás deles emanava uma luz fraca e esverdeada. Também era possível ver a silhueta de uma pequena asa de inseto.

“Este lugar está cheio de libélulas!” – pensei mais uma vez.

Estiquei as duas mãos para enlaçar o que quer que estivesse atrás dos cogumelos e dei o bote:

- Peguei! – gritei.

Não foi daquela vez, minhas mãos só alcançaram uma a outra. Mas então eu a vi.

Subiu voando, batia as pequenas asas com perfeição, olhava para mim com seu rostinho mágico e parecia rir uma vez mais de minha cara de bobo.

- Meu Deus, eu não acredito!

Ali estava na minha frente aquilo para o que eu só encontrava um nome: uma fada.

Me afastei rapidamente e fiquei sentado no chão observando o pequeno ser. Ela voou em minha direção de forma bela e acrobática, vez ou outra seu corpinho brilhava e eu entendi de onde vinham os flashes de luz.

Quando chegou mais perto de meu rosto a examinei mais atentamente, era do tamanho de meu polegar e era linda, sua pele era de um belo dourado, seus cabelos eram longos e verdes e desciam até a cintura cobrindo em seu caminho os mais diminutos seios que já vi, não usava nenhuma espécie de vestimenta, mas sua cabeça, pulsos e tornozelos eram adornados por belas coroas de ervas tal como joias. Seus olhos pareciam mudar de cor a todo tempo, ora verdes, ora castanhos, ora azuis e suas pequenas asas faziam o mesmo exibindo todas as cores do arco-íris como um prisma de cristal.

- Você é linda! – disse eu encantado.

Ela sorriu, o sorriso mais inocente que já vi. E logo apareceram a seu lado outros como ela. Eram mais fadas e “fados” todos dotados de uma beleza singular.

- Isso não é possível! – exclamei.

A pequena fada continuava sorrindo até esticar sua mãozinha em minha direção. Eu fiquei sem saber o que fazer até entender que ela parecia querer tocar minha mão. Meio sem jeito estiquei minha mão também e, como esperado, ela a tocou.

Foi o momento mais fascinante de toda a minha vida e creio que até minha morte nunca passarei por nada igual.

A seu toque o mundo todo mudou. Senti meu corpo cada vez mais leve e vi quando a fada começou a crescer em tamanho, uma espécie de música “invisível” tomou conta do ambiente. Ao mesmo tempo um comichão estranho tomava conta de minhas costas e senti que algo ali parecia crescer e se esticar. A minha volta as arvores, já grandes, pareciam ficar cada vez maiores e os cogumelos se expandiam rumo ao céu.

Logo entendi tudo, não era a fada quem crescia e sim eu quem encolhia. E assim foi, minha mão se aproximando cada vez mais do tamanho das mãos da bela de cabelos verdes a minha frente, até que chegou num ponto onde ela pôde me dar sua mão.

- Isso não é possível! –repetia eu.

Mas era. Estava acontecendo. Olhei para baixo e vi minhas roupas no chão, pareciam as vestes de um gigante, pelos meus cálculos eu flutuava a cerca de um metro do solo. Por um momento fiquei tonto e me desequilibrei um pouco. Senti medo de cair.

- Não tema – disse a fada pela primeira vez e aquela vozinha tocou fundo em meu coração – você pode voar.

Voar? Como poderia?

Só então percebi que tinha asas tal como todos ali. Eu agora era uma fada?

- Não, você não é – disse ela como se pudesse ler meus pensamentos – concentre-se em suas asas, bata-as.

Desajeitadamente fiz o que ela pediu, ainda de mãos dadas com ela começamos a ganhar altura e logo estávamos no nível dos demais de seu povo. Em pouco tempo todos me cercaram e senti quando um a um me tocavam com suas mãos, a sensação de leveza foi se aprofundando até que minha amiga soltou suas mãos de mim e eu finalmente pude flutuar sozinho.

- Agora venha comigo – disse ela.

- Aonde vamos? – eu quis saber.

Mas ela não respondeu, bateu suas asas e subiu.

Eu, ainda me acostumando a minha nova habilidade, subi também, mas era um pouco difícil acompanha-la.

- Me espere por favor! –implorei.

Ela parou um pouco, esticou sua mão novamente e agarrou a minha, assim voamos juntos sempre subindo, olhei para baixo e vi que todos os outros faziam o mesmo até nos alcançarem e seguirem juntos conosco.

A medida que subíamos adentrávamos mais a neblina que ainda cobria tudo, foi só aí que percebi algo inquietante, o Sol já havia se posto, a noite chegou sem que eu percebesse. Aquilo significava que muitas horas haviam passado desde que sai de casa.

- Não tenha medo – disse a fada novamente e então tive certeza que ela realmente lia meus pensamentos.

Como dito, a neblina ficava mais e mais espessa, entendi que estávamos no coração das nuvens e ainda continuávamos subindo, então o céu se abriu. Vi estrelas, estrelas por toda parte, o céu mais limpo e mais brilhante que jamais contemplei. E abaixo um piso de algodão tamanha a brancura das nuvens.

E mesmo assim não parávamos de subir, subimos até eu ver lá de cima as luzes das cidades humanas brilhando em meio ao cobertor de nuvens. Então todos pararam e me cercaram.

- Por que me trouxeram aqui? – perguntei.

- Você nos pediu. – disse ela.

- Pedi?

- Sim, nos seus sonhos, em seus pensamentos, você sempre acreditou. Sempre soube que faltava algo ao mundo lá embaixo.

Olhei para baixo, depois olhei para cima, para o infinito do Universo.

- Eu sempre choro quando vejo as estrelas. – disse eu já com lágrimas nos olhos.

- É bom chorar pelo que é belo.

A olhei novamente, para aquela dama de cabelos verdes, e meu coração bateu descompassado.

- Vocês são realmente reais?

- Somos tão reais quanto você – disse ela sorrindo.

E aquele sorriso me cativou, não havia mais nada, nem os outros a nossa volta, nem a Terra abaixo de nós ou o céu acima de nossas cabeças. Somente aquele sorriso.

Então a neblina voltou e cobriu tudo, o branco sorriso da fada confundia-se com o branco das nuvens. Senti meu corpo ficar pesado novamente e me vi caindo. Não senti mais as pequenas mãos segurando as minhas, desabei no espaço e o desespero me dominava.

Até que senti um grande impacto, meu corpo atingiu o solo. Mal consegui me mover, a minha volta era tudo um nevoeiro em meio a escuridão.

- Olá! – tentei gritar fracamente.

Não ouvia mais o risinhos, não ouvia nada.

Descobri que estava vestido novamente e tentei me levantar, mal sabia onde estava. Com esforço me ergui e tentei caminhar, todo o corpo doía.

Então chorei, não pela dor, mas por ter perdido algo mais profundo. E chorando eu ouvi aquela voz novamente.

- Você chora pelo que é belo.

Era ela, apareceu entre a neblina, mas agora não possuía mais suas asas e estava do meu tamanho. Se aproximou, me deu mais uma vez as mãos e disse:

- Um dia nos veremos de novo.

Então desapareceu, e a neblina ficou cada vez mais densa e escura, até todo o mundo desaparecer também.

Quando meus olhos se abriram novamente descobri estar em meu quarto. Desorientado olhei para o relógio, já era tarde. Me levantei vagarosamente. Minhas malas já estavam todas arrumadas e lembrei ser meu último dia de férias, era preciso partir, sai do quarto, meus pais e irmãos já estavam acordados, a vida parecia seguir com sua normalidade, sem nada diferente. Tomei um banho, depois me servi de um pouco de café e fui até o quintal, como é comum em dezembro chovia um pouco. Lá fora olhei para o alto da Serra, a montanha em forma de cone mantinha seu topo oculto pelas nuvens.

- Foi só um sonho muito estranho – disse eu.

Abaixei a cabeça e voltei para dentro, me fechei no quarto e tomei meus remédios, conclui que tudo tinha sido efeito das medicações para ansiedade e depressão que vinha fazendo uso já há algum tempo, nunca havia dito sonhos tão vívidos assim e não via outra explicação possível.

O dia passou, chegou a hora de ir embora. Uma vez na rodoviária me ajeitei no ônibus e peguei a estrada. Em certo momento da viagem senti sede, busquei minha garrafa de água dentro da mochila, mas ao invés dela encontro uma pequena pedra preta, curioso eu a retiro e a examino, reconheço os sulcos e pequenos anéis concêntricos em sua superfície. Por um momento me lembrei de tudo, então olhei pela janela, atravessávamos uma região da estrada cheia de serras tomadas por neblina. Meu coração se alegra e eu me lembro de uma única frase:

“Um dia nos veremos de novo.”

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 08/01/2014
Reeditado em 08/01/2014
Código do texto: T4640764
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