Ela mesma não sabe por quanto tempo se encontrava naquele estado e naquela posição. O cântaro que carregava para apanhar a água na fonte, estava despedaçado aos seus pés enquanto, olhos esbugalhados, face lívida porejando suor, têmporas latejantes, não deixava de fitá-lo como se esperasse dele obter a resposta para os seus questionamentos.

Que teria mesmo acontecido naquele lapso de tempo para que ela estivesse tão apavorada?!

Ergueu os olhos e fitou a distância que a separava, desde o beiral da fonte até a entrada do vilarejo. 

Uma nuvem espessa de poeira tomava quase todo o trajeto como se fora um tapete esmaecido e esgarçado a cobrí-lo. Aves de rapina voejavam em vôos rasantes na busca incessante de corpos mortos e deteriorados para aplacar a fome que roía as suas entranhas. As nuvens, densas, escuras e pesadas se aglomeravam no alto do firmamento como se desejassem encobrir o mundo para que,as coisas que viriam a seguir,não fossem vistas.

Toda a Natureza reclamava.!! 

O piado contínuo das corujas noctívagas, que estavam a confundir o dia com a noite, ouvia-se como um lamúrio de dor e tristeza. 

Mas ela não reagia!

Subitamente, como se uma mola a tivesse impulsionado para cima e para o alto, ela pulou por sobre a fonte caindo desastradamente ao solo com a face enterrada na terra poeirenta que o cobria.
Respirou com dificuldade ao sentir que, ao menor movimento para levar o ar aos pulmões, uma lufada de poeira despertava-lhe uma tosse rouquenha e abusada. 

Virou a face para o lado, pôs as mãos espalmadas sobre o solo e ergueu-se abruptamente. Seus olhos alongaram-se mirando em círculos e semi-círculos como se esquadrejassem toda a dimensão do espaço que a continha, esperando desvendar o mistério que tinha se abatido sobre si mesma.

Ao longo, vozes entoavam um canto tristonho, lamurioso e pálido.

Seria alguma data festiva sendo comemorada e ela teria se esquecido de ver o calendário de festas?
    -Não!  Definitivamente não.
Lembrava-se muito bem que ao sair pela manhã, antes de tomar o desjejum, tinha verificado a data e a fase da lua no calendário que tinha dependurado num prego atrás da porta do seu quarto. Não era dia de festas; pelo menos, não festas de calendário.

Acalmou-se, limpou a face com o dorso das mãos e a barra da saia que se encontrava bastante amarrotada; suspirou profundamente e decidiu-se.
Teria que vencer aquela misteriosa distância, retornar ao vilarejo e certificar-se de que tudo estava bem ou não.

Esta segunda hipótese fez com que um leve arrepio perpassasse todo o seu corpo eriçando os seus pelos.

Como temia estar sozinha naquele momento! Por que não aceitou a companhia da sua enteada que ofereceu-se para ir com ela até a fonte?
Nem mesmo sabia o porquê?!
A garota era dócil,serena e afável mas ela sempre sentia um certo constrangimento na sua presença.
Não havia tempo para arrependimentos, tinha que enfrentar a realidade.

Sobraçou a saia rodada que quase tocava o solo e, a passos largos, reiniciou o retorno ao vilarejo.

Todos os sentidos em alerta, assim era ela.

Caminhando com segurança, em velocidade cadenciada, respiração quase em suspenso, conseguiu vencer o caminho que tanto a apavorava.
Vez por outra, uma ave mais afoita quase tocava a sua face fazendo-a esgueirar-se para o lado oposto evitando sofrer algum ferimento.

Num dado momento cruzou com uma coral que rastejava lentamente em busca da sua toca. Estugou o passo e fez-se espera.

De surpresa em surpresa conseguiu chegar ao seu amado vilarejo.

Surpreendeu-se quando viu uma multidão colorida que bailava ao som de bandolins no meio da praça.Crianças brincavam de roda, outras empinavam pipas; namorados abraçavam-se e beijavam-se com ternura indiferentes ao vozerio e às criaturas presentes.

Que significava tudo aquilo?!  O que representava tanta festividade e alegria??

Abeirou-se de um casal que estava a recitar uma poesia e escutou-os com paciência e admiração. Falavam do amor,da paz e da vida.

Há quanto tempo ela não lia nem ouvia uma poesia....

Havia um tempão!  

Quando aconteciam os recitais na praça pública ou no coreto, ela nunca tinha tempo ou disposição para assistí-los. Arrependeu-se.  Considerou que tinha perdido muita coisa boa e bonita ao longo da sua vida. Iria tentar recuperar....

Viu um velhinho um pouco afastado que assistia aos festejos com um sorriso brincando nos lábios.
Aproximou-se com cautela e perguntou:
      -O que festejam, podeis me dizer?

Ele olhou-a no fundo dos olhos e respondeu-lhe com outra pergunta?

      - Como, então não sabes?? Não és daqui?

Ao que ela respondeu: - sou sim; nasci e me criei neste vilarejo, mas não me atino para o que está acontecendo.

O velhinho olhou-a no fundo dos olhos e respondeu num murmúrio:

- Se nasceste aqui e não conheces o teu próprio rincão e os seus costumes, que queres que te responda?!

Falando isto ele virou-lhe as costas e saiu lentamente para o outro extremo da rua.

Surpresa monologou: 
      - Hei de descobrir!

Indignada com a atitude do velhinho, que considerou mal educada, virou-se lentamente dirigando-se à sua casa.

Após alguns minutos, depara-se com o seu lar. A porta de entrada estava entreaberta e o silêncio imperava no seu interior.
Entrou com cautela. Passos deslizando como se flutuasse, dirigiu-se ao quarto da sua enteada. Empurrou delicadamente a porta que não estava trancada.

Viu-a deitada sobre o seu leito. Tinha nas mãos um livro aberto que repousava sobre o seu busto enquanto ela ressonava.

        Pensou: - deve ter adormecido lendo!

Entrou, pé ante pé, retirou com suavidade o livro das mãos da garota, cobriu-a com uma manta leve, apagou a lamparina e saiu fechando a porta atrás de si.

Que teria acontecido?! pensou...

Em cima da velha mesa coberta com uma toalha rendada, vislumbrou o cântaro. Intacto,cheio d'água cristalina e leve.

Foi ao seu quarto e, quase correndo, dirigiu-se ao calendário que estava dependurado atrás da porta, em um prego velho ,meio enferrujado.

Olhou com cuidado. Aquele dia, estava circulado com tinta vermelha.

Quem teria feito isto?!  murmurou consigo mesma.

Esquadrinhou o calendário mas não encontrou nenhuma ressalva de estar, aquela data,daquele dia, relacionada com algum dia santo ou mesmo feriado.

Coçou a cabeça, agitou as mãos, suspirou fundo e dirigiu-se para a porta de entrada.Esperaria o seu amado ali e, por certo, ele lhe daria explicações do que havia acontecido.

Sentou-se no batente da porta de entrada e pos-se a esperar.O som dos festejos, trazidos pelo vento a embalaram. Suas pálpebras cerraram-se e ela mergulhou num mundo só seu.

Um sorriso bailava nos seus lábios quando o seu amado chegou. Tomou-a nos braços com muita ternura, conduziu-a ao leito compartilhado por ambos, depositou-a como se deposita uma jóia rara no seu relicário, cobriu-a com os beijos apaixonados, apagou a lamparina e a penumbra invadiu toda a sua morada...

 

 



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