As safiras negras

Como em tantas outras vezes, já o sono faz-se vivo nessa carne, fazendo pesar-me os olhos, malear o corpo, a boca a bocejar... E tudo aquilo que sabemos sobre o sono desde que criamos discernimento.

Antes que queiras deixa que eu mesma questione: e o fundamento disso? Quem sabe?! Talvez somente esta vontade nítida de, mais uma vez, jogar com as palavras, como criança que com uns blocos tenta construir sua cidade. Talvez seja isso: “sua cidade”. Por mais que esteja duvidando que essas minhas sentenças vomitadas estejam replicando algo bom desta mente vazia, de uma coisa sei: são minhas! E minhas sem que mais ninguém tenha aqui dito por si mesmo.

Esta última frase... Considere-a não como regra, mas relativa, pois cada coração que em peito bate nessa imensa esfera azul é feita de um misto de infinitas partes de infinitos seres. Claro! Não somos réplicas... Nunca! Mas somos os outros à nossa maneira. E nada mais, ou pouco menos que isso... E ainda não aqueles que ousam falar de sua tão terrível e “xerocada” originalidade, seja lá em que segmento for:

__ Dá-me outra dose de gin!

Ordenei à pobre taberneira... E me dei conta de toda aquela miséria em que me encontrava: os olhos pestanejando em excessos, a dependência momentânea mas tão urgente da taberneira (para que ela me trouxesse o gin) fora o próprio gin, que naquele instante, sem ele estaria apagada como o brilho do sol àquelas horas da madrugada.

Dependência! Eis aí algo que amedronta desde o mendigo mais sujo ao dono de todo aquele lugar em que me encontrava. E pensar que todos se vêem livres... É de praxe, já que seus olhos além de estrábicos já estão quase cegos. Dependência me lembra de imediato àqueles que se mantêm sagazes e felizes por causo d’alguma substância. Acho que tenho pena destes... Mas quem é esta que lhe fala de vício para dizer tal asneira?

(Me vi novamente fitando a taberneira que cantarolava tão alegremente enquanto servia meu gin)

Ali estava... Salivando ao ver meu gin na garrafa. Mas não tinha pena de mim mesma, se estava naquela situação de vício é porque quis, e dali podia sair quando quisesse:

__ Obrigada!

Disse à taberneira que ainda cantarolava alguma canção sulista. Eia! Saudades infinitas...

Como aquela bebida descia pela minha garganta e queimava ligeiramente o estômago me dando tanto prazer... Se pudesse tudo pararia ali! O gin possibilitando a saciedade deste corpo franzino e pálido. Seria aquilo o paraíso? Não... Aquilo era sim o vício, mostrando-se em sua face mais bela:

__Com licença!

Ouvi meio que de cima uma voz tanto rouca. Era um senhor de cãs compridas, alto. Parecia cansado.

__ Posso me sentar?

__Pois não...

Respondi tão amigável quanto ele. Seus olhos lembravam-me algo como um morno anoitecer, era confortante:

__ O que faz uma... Senhorita?

__ Sim

__ Senhorita das faces tão gentis, neste âmbito sujo?

A entonação de sua voz era tão protetora... Quase como se estivesse ouvindo meu próprio avô, já falecido:

__ Vim saciar-me desta bebida barata

Mostrei-lhe o copo de gin pela metade

__ És tão jovem... livra-te deste augúrio

__ Augúrio?!

Ri-me

__ Se a saciedade da carne que é alcançada com algo tão pouco e tão barato é augúrio, de viver não mais preciso.

O senhor ficou demasiado surpreso com minha má criação não proposital. Permanecemos um instante ali, calados, enquanto podíamos ouvir a taberneira cantarolando, desta vez, algo que parecia ser uma nênia:

__Embora jovem, tu sabes o preço desta saciedade...

__Que me disponho a pagar

Interrompi-lhe. Simplesmente foi mais forte do que eu. O senhor calou-se novamente:

_Mas enfim...

Ele sorriu

__ Não estou aqui como sendo responsável por ti para dizer o que deves fazer ou não. Fiquei apenas curioso, claro, pois não é sempre que se encontra dentre essas mesas uma figura como a tua.

Agora o senhor estava sério e eu me arrependia profundamente da grosseria para com o senhor:

__Então... satisfez a curiosidade?

Disse-lhe brincando, tentando me redimir. O senhor esboçou um leve sorriso e baixou a cabeça:

__Creio que sim! És daquelas que tem o mundo ganho.

Confesso que até hoje não entendi o que ele quisera dizer com aquilo. Como minhas pálpebras já roxas teimavam em fechar, preferi não saber mesmo. Não seria aquela frase que em mim despertaria, naquela circunstância, um de meus lados mais inconvenientes: o da curiosidade:

__ Procuras algo...

Disse o senhor de cabeça ‘inda baixa, os olhos me fitando. Como não sentia há muito, meu estômago que ainda queimava confortavelmente pareceu conter gelo. Senti uma leve pressão na cabeça e meu coração pareceu querer saltar pela boca. Tremia:

__ Porque estes olhos tão sagazes?

Disse ele

__ Como tu sabes o que vim fazer aqui?

Ele me seguira! Ah como tenho certeza... Bastardo!

__Não... não te segui.

Eu não havia lhe perguntado nada àquele homem! Senti ainda mais calafrios, mais do que senti em toda minha vida. E finalmente veio á tona em minha mente aquilo que já deveria ter vindo há muito:

__Quem é você?

__Apenas o senhor de voz rouca que lhe fala.

Aquele sorriso depois desta frase me fez arrepender de ter me arrependido em ser bruta:

__ E o que você sabe sobre as safiras negras?

Perguntei fingindo estar calma

__ Muito mais do que esta infanta imagina

Aquele sorriso não saía da face. E era tão terno...

__Outro gin!

Gritei para a taberneira cantora ou cantora taberneira. A pobre chegou a assustar-se, desafinando ao cantar outra música do sul. Céus! Eu que sempre fui tão cuidadosa e discreta quanto à minha procura pelas safiras negras... De repente, como num pesadelo, um senhor das cãs compridas arranca da minha face esta máscara. Aqui e agora, como criminoso que se arrepende e confessa ao padre, entrego da maneira mais desesperadora a razão de ter feito os dias de minha vida tão misérrimos: a obsessão.

Não pense que saberei descrever como o que descrevi até agora, pois quem sabe, em verdade, dizer numas folhas de modo mais fiel e claro o que é a paixão que enlouquece? Não digo da paixão pela carne, daquelas que acometem dois seres que se tornam dependentes um do outro, mas daquela que endoidece e empobrece a lucidez d’um cristão.

Aquela que tira as noites de sono, o apetite (mas não a fome), a simples vontade de sorrir e tira, enfim, a paz. Pior que a lepra ou o cancro... Sem cura, resta apenas entregar-se à maldição. O vício, a loucura, a obsessão... Absolutamente tudo, a busca pelo prazer. E eu que desde o início de minha existência fui entregue como em oferta à luxúria e que sou fruto verdadeiro dessa busca pelo prazer, entreguei-me! Sem que sofresse restrições, e o pior: sem ter culpa.

As safiras negras... Há quem diga que não passa de conto, lenda, mito... Enfim, alguma dessas coisas que não sei diferenciar. Outros dizem que há muito tempo atrás, certo Conde de Marselha as encontrara e logo depois desaparecera. Mas em verdade... O que acontecera em verdade, foi que o homem que encontrara tais pedras as escondera em algum lugar por aqui (creio que pelos vales, onde hão recantos incontáveis em que se possa tê-las escondido). Dizem que as safiras negras tem uma beleza incomparável a qualquer outra dessas pedras de que se tem notícia, que são como raios, ciclones, tempestades. E seu valor... Não se sabe...

E mesmo que nenhum valor tivessem eu as encontraria! Se eu estava ali, embriagando-me numa taverna a conversar com um senhor que me dava calafrios é porque ainda não poderia morrer, por mais misérrima, “longínqua” e fadada minha vida estivesse, não poderia morrer antes que encontrasse as safiras:

__Dose dupla dessa vez!

Era aquela voz que outrora cantava, falando. Não a enxergava bem, estava um tanto pálida, perdendo as cores. Assim como o senhor que verificava tranquilamente os bolsos, com aquela maldita mansidão que tanto me confortava e dava medo.

Sentia novamente o gin descer pela garganta, outro momento solene... Os sons daquele âmbito ficavam mais etéreos, as cores mais homogêneas e minha cabeça pesava um tanto... A qualquer momento poderia cair de cabeça à mesa.

Vi fumaça. Tinha um cheiro agradável. Segui-a com os olhos até sua origem: um cigarro aceso do senhor das cãs compridas:

__ Sei aonde estão

Ainda podia perceber a maneira de descaso com que ele falava:

__Me diga!

Tive que fazer um belo esforço para pronunciar aquelas duas simples palavras. Claro! Era difícil me concentrar enquanto a taverna girava á minha volta ao mesmo tempo em que os vapores do cigarro davam piruetas ao redor da minha cabeça:

__ Diz!

Gritei sem querer. O senhor assustou-se. Sorriu novamente... Ao menos parecia ter esboçado um sorriso, não enxergava bem, tudo escurecia:

__Andarilho dessas terras

Ou de tantas outras tamanhas

Queira uma vez escutar meus versos

Sobre segredos no poeta imersos

Um camponês dessa língua não dizia

Um xingamento sequer, ou insulto

Mas com ajuda de sua Maria

Guardou as safiras deste imenso tumulto

Que voz baixa! Talvez porque o senhor não quisesse que outros ouvissem seus versos, que te então, não faziam sentido algum. No estado em que estava era difícil absorver aquelas palavras, quanto mais ouvir aquilo que tanto almejava:

__ Pelos vales esguios...

Junto ao sol poente

Fragas... Esverdeadas

Eram nada mais do que palavras soltas. Os versos ocupavam demais a minha cabeça já tão alterada. Lembrei-me de meu discurso tão empolgado do início dessa narrativa. Algo a respeito do vício, da vontade momentânea de saciedade.

Mais uma vez a maldita taberneira cantarolava algo que parecia serem os versos do senhor, que agora dizia algo com “frutíferas” e “repousantes”. Tudo isso ao som de uma canção que tocava apenas na minha cabeça, fazendo minhas vísceras dançarem e minha consciência girar e girar ao ritmo da taverna:

__ Sob a guarda das serpentes lá estão

As safiras negras num profundo alçapão

Caí.

O que sei? Que talvez as safiras negras estejam pelos vales, onde hão recantos incontáveis onde um homem possa tê-las escondido.