Clones - Parte 4

(continuação de Clones - Parte 3)

Sentada em uma poltrona, a anfitriã da casa conversava.

- Aposto que faz bastante tempo que você não fala, e não ouve tanto, não é mesmo - dizia. Tratava-se de uma bela mulher, aparentando ter trinta e poucos anos...

Sentado à sua frente, em outra poltrona, o policial apenas aquiesceu com um aceno de cabeça.

Já fazia algum tempo que aquelas duas pessoas conversavam, ou que uma delas tentava fazer a outra conversar.

- Bem se vê que os policiais de hoje em dia são de poucas palavras. Isso se deve a algum tipo de treinamento, suponho... - disse a mulher.

O policial, mão esquerda sobre a arma pequena, não fez menção de confirmar ou negar a suposição da mulher. Com o rosto coberto pelo visor do capacete, procurava examinar os movimentos da mulher que segurava uma xícara de chá fumegante acompanhada de um pires, sentada bem à sua frente.

A Raiz.

Era uma bela mulher, sem dúvida. Cabelos castanhos avermelhados, escuros, escorridos pela cabeça, em um corte curto, feito de mechas pontudas e desgrenhadas. Brincos metálicos, cravejados de pequenas pedras irregulares, que também poderiam ser madeira, pendiam de suas orelhas e, compridos, quase batiam nos ombros. Um vestido simples, alaranjado, quase transparente, lhe servia como única indumentária. Um par de chinelos de pano bordados ou tricotados lhe ornamentavam os pés.

Mas, o que o policial observava mais atentamente era aquele rosto. A fisionomia estranhamente familiar de sua interlocutora - uma criminosa enquadrada em um código único do Sistema Penal.

Uma criminosa perigosa.

- Nos velhos tempos, os rigores não eram tantos. Havia mais liberdade tanto para policiais quanto para os civis. E eu tenho certeza de que os policiais falavam bem mais do que hoje em dia...

A mulher riu. Sua voz também era estranhamente familiar... Uma voz um tanto fina, mas não tanto quanto devia ser uma voz de mulher.

A mão do policial agarrou com mais firmeza a arma pequena, pronto para o saque. A ambidestria, tanto com armas de fogo quanto com armas brancas, era uma de suas mais notáveis habilidades, juntamente com a pontaria precisa e a incrível rapidez de seus reflexos.

A mulher sorveu de um gole o chá fumegante.

- A cortesia manda que eu lhe ofereça chá outra vez, mas creio que você não irá querer, não estou certa?

Uma mesinha de madeira, retangular, lembrando um caixote oco e envernizado, com uma placa de vidro sustentada em seu centro, separava os dois interloculores daquele monólogo.

Sobre o vidro da mesa, um grande bule semelhante à xícara e ao pires, cheio de chá, e expelindo muito vapor. E uma outra xícara, um outro pires, intocados.

Os procedimentos de ação da polícia eram claros e específicos, e evitar a ingestão de um líquido qualquer oferecido por um provável criminoso já fazia parte desta conduta muito antes dos novos policiais terem assumido a manutenção da segurança do país.

- Dizem que um bom chá pode fazer milagres com a saúde das pessoas... - falou a mulher, enchendo outra vez a pequena xícara com a infusão levemente amarga. Era a terceira vez que enchia a própria xícara. - Este é feito de ervas especiais, cujas raízes eu obtive durante uma de minhas viagens pelo mundo, e cuja planta agora floresce em meu quintal, atrás da casa. É uma planta de nome difícil. Dizem que é uma espécie de estimulante natural, mas aposto que você não tem nenhum interesse no assunto, não é verdade?

Sorrindo, a mulher tomou mais um gole.

Por todos os meios possíveis, ela lembrava uma mulher comum. Algo como uma dona de casa, alguém que cultivava plantas em seu jardim e alimentava-se de cozidos feitos com hortaliças de produção própria, talvez sobrevivendo com o dinheiro vindo de uma aposentadoria precoce e irregular.

A Raiz, que cultivava raízes no quintal, e parecia ser a pessoa mais comum do mundo era, no entanto, uma das criminosas mais procuradas daquele país.

Uma criminosa sagaz, que devia conhecer muito bem as leis.

O código MMP-042958 era único, e antigo, e ainda era amparado por arcaicos dispositivos legais. Dispositivos estes que tinham permitido àquela doce mulher fazer um único telefonema, a um advogado à sua escolha, que exerceria o papel de defensor particular.

"Meu advogado chegará aqui em duas horas", dissera ela, reaparecendo, dez minutos depois de ter sumido dentro de um cubículo qualquer, invisível em sua pequena casa, que parecia, contudo, ser maior por dentro do que por fora.

Era praxe no comportamento dos policiais... era dada a voz de prisão, e ditava-se em alta voz os deveres e direitos dos envolvidos. E lá estava, amparada entre os direitos, a chamada ao advogado particular, profissão cada vez mais rara no mundo moderno, uma vez que a imensa maioria de defensores e procuradores, no advento do novo Sistema Penal, havia passado a figurar em meio à própria força policial. E o direito de espera pelo advogado particular no local da captura ou em outro local escolhido em comum acordo, sob custódia, durante um período máximo de oito horas se constituía, segundo muitos dos juristas atuais, em uma das mais retrógradas formas de se atrasar o cumprimento da lei.

Como era de se esperar de uma criminosa sagaz, procurada pelo país inteiro, ela fez a ligação e agora aguardava o advogado particular.

Como era de se esperar de uma criminosa procurada pelo país inteiro, ela não tinha entrado em pânico, desde o princípio.

Como era de se esperar de uma simples dona de casa, ela servia chá ao policial, e tentava entabular uma conversa com ele, apenas para o tempo passar.

- Mudando de assunto, dizem que houve uma época em que a clonagem passou a ser encarada com mais seriedade, e menos temor.

O cheiro leve, agridoce, de flores preenchia o ambiente escassamente iluminado pelo lustre esverdeado que pendia do teto. A única janela que havia estava fechada.

- No princípio - dizia ela, procurando atrair a atenção do policial, que ficava olhando em volta, examinando o local, - a clonagem foi um grande tabu, como tantas outras peripécias genéticas do final do milênio. Era tudo tratado como se fosse ficção científica, rejeitado por puristas e cultos religiosos. "Seres humanos criados em laboratório?", perguntavam as pessoas. "É o fim dos tempos, o apocalipse!"

Ela riu. E suspirou. Olhava para longe, e parecia um tanto ou quanto desanimada, sonolenta...

Por fim, piscou uma ou duas vezes, e sorveu mais um gole de chá.

- É o que dizem os livros, os velhos videotapes. Enfim, é o que a história nos conta...

"Mas eu conheço a verdade. Sei muito do que realmente aconteceu. Sei que o meu nome está intimamente ligado a todos os acontecimentos que tiveram alguma relação com a clonagem em si.

"Afinal, eu sou a Raiz, não é mesmo? Não é assim que vocês policiais me chamam?"

A Raiz... A RAIZ!!!

O policial girou a cabeça de volta para a mulher. Tinha ficado olhando em torno, observando os arredores da sala. Sentia-se levemente entorpecido, tendo de ficar parado por tanto tempo, esperando... aguardando... Era um soldado, e ação era a sua especialidade.

E ela era uma criminosa...

Ela sabia que ela própria era a Raiz!

Ela era astuta. Conhecia a verdade que apenas os membros da polícia deveriam conhecer.

O que estaria planejando? Por que não parava de falar um minuto sequer? Por que não agia logo de uma vez?

Quanto tempo ainda teria de esperar pelo advogado?

E a mulher continuava falando. Sua voz era sinônimo de placidez.

- ... existiram muitas tentativas foras-da-lei de clonagem no início do milênio. O fato é que as primeiras duas décadas foram infestadas por experimentos científicos clandestinos. Houve muitas prisões, e muitos geneticistas desapareceram sem deixar rastro. Houve também muitos boatos, e as tantas histórias, verídicas ou não, passaram a ser uma constante nas colunas dos jornais.

Uma pausa para mais um gole de chá.

"O tempo passou, e, houve a Revolução, e o novo Sistema Penal foi implantado. O crime e o terror, que amedrontavam o mundo, deviam ser extintos, e o nosso país seria aquele que iria dar ao mundo o exemplo de como isso poderia ser feito. Ocorreu então aquela sucessão de fatos que marcaram para sempre a nossa história. Colocou-se em prática a Quarentena, e a seguir foram iniciados os estudos de parte dos juristas e políticos para criar as novas leis que fariam parte de um glossário legal único, que passaria a ser cumprido à risca por uma instituição especial, que também vinha sendo preparada em segredo. Estava lançada a semente para a criação do novo Sistema Penal... e também para a nova força policial.

Interessante, pensou o policial, o modo correto como falava aquela mulher de traços tão insuspeitos... tão familiares...

Sua oratória era realmente fascinante. Sua voz era calma sem ser monótona e as palavras eram escolhidas e pronunciadas com primazia. E como era de se esperar, tal dom não estava descrito no perfil do criminoso apresentado pelo velho código MMP-042958.

Nada estava escrito no perfil da Raiz, e o policial tinha consciência de que qualquer comportamento que este criminoso viesse a apresentar ao ser confrontado pela primeira vez devia ser minuciosamente relatado depois, no quartel general.

Oratória impressionante, feições... familiares... e uma necessidade um tanto ou quanto exagerada de ingerir líquidos. Estes seriam os primeiros dados comprovados a serem introduzidos no relatório do código MMP-042958.

Era um verdadeiro marco histórico.

Não que o policial estivesse pensando em ver sua fotografia estampada em uma enciclopédia.

Na verdade, o policial não pensava em mais nada que não fosse em sua missão.

E ouvir aquela mulher que não se cansava de falar fazia parte de sua missão.

"As fronteiras foram fechadas pelos dois primeiros anos da Quarentena", prosseguia em sua implacável narrativa a mulher que se autodenominara a Raiz. "Os estrangeiros passaram a ter suas entradas no país sistematicamente barradas. Mercadorias importadas foram boicotadas com severidade, e conseqüentemente houve um revés tremendo também na área de exportação. Empresas de capital estrangeiro, em parte ou no todo, foram desativadas, ou abdicadas pelo governo, sob os auspícios da lei e das medidas rigorosas contra o poder paralelo - o crime. Exportadores e importadores foram incentivados a remanejarem seus negócios, passando a ter o mercado interno como único alvo.

"O que parecia absurdo tendo em vista a arbitrariedade das medidas acabou acontecendo: o país afinal prosperou, apresentando superávits sucessivos e abundância de recursos... e o crime retrocedia.

"A princípio receoso, o restante do mundo acabou aplaudindo a idéia, e outros países chegaram até a implantar regimes anticriminais semelhantes. Enquanto isso, já distantes do assédio das outras nações, e benquistos tanto dentro quanto fora do país, os membros da alta cúpula seguiram em frente com seus planos...

"Não era suficiente que o crime diminuísse... Era necessário que fosse extinto! Criminosos jurados e reincidentes, assassinos múltiplos confessos, doidos varridos, degenerados sexuais, estes e muitos outros receberam sentenças de execução idênticas, que foram cumpridas tão imediatamente que eles sequer tiveram tempo de perceber que estavam mortos. Dos encarcerados que restaram, e de seus destinos, muito pouco se ficou sabendo... Ora, era necessário separar de uma vez o joio do trigo, e dar o exemplo ao restante da população. O resultado desta limpeza foi uma pilha gigantesca de cadáveres de supostos bandidos incorrigíveis, e muito mais espaço livre nas cadeias. Cerca de dez por cento da população do país foi varrida das estatísticas, em um golpe só. Ah, e como não poderia deixar de ser, vieram os protestos.

"Houve protestos de religiosos, defensores dos direitos humanos, oposicionistas e de outros tantos samaritanos de ocasião que nem vale a pena mencionar. Mas já era tarde. O que estava feito, estava feito. Longe de se comoverem, os juristas e políticos já se encontravam cientes do que iria acontecer, e tinham o remédio certo para combaterem as manifestações...

A mulher soltou um demorado bocejo. Depois tomou fôlego, e emborcou o chá da xícara de um só gole.

E encheu-a novamente, sem parar de falar.

"AS LEIS. O novo código de leis penais, que distribuía penalidades rigorosas para todos os casos, parecia ter sido especialmente elaborado de forma a dissuadir as manifestações daquele tipo. Isso sem contar que houve uma porção de campanhas e projetos políticos, ditos nacionalistas, patriotas, que trataram de fechar o país por completo ao longo dos anos e das décadas. A Quarentena, que era uma medida que acabou sendo bem vista, apesar de seu autoritarismo, e que tinha sido aplicada de súbito pelo poder público, acabou sendo extinta ao final de dois anos a partir de sua implantação, como fora prometido. Mas dois anos de uma quase completa e obrigatória reclusão serviram muito bem para tolher a liberdade da população, e os efeitos da Quarentena se mantiveram mesmo depois de sua extinção oficial. O cerco planejado a princípio se fechava...

Uma pausa.

- Meu Deus. Eu devo estar falando demais, como sempre - a mulher teve um leve sobressalto, e sacudiu a cabeça negativamente. - É uma das muitas manias que eu acabei adquirindo durante essa vida. Já me serviu de sustento, e agora vem servindo para combater a ansiedade, e muitas vezes serve também para entreter os amigos. Mas tenho certeza que você não se importa, não é mesmo, oficial?

Nenhuma resposta veio do policial, que continuava sentado impassível, imóvel, inerte, intocável, em sua poltrona.

- Tenho certeza que esta atitude assim tão... reclusa tem a ver com seu treinamento. Cada pessoa aprende a ser como é com a vida que leva, não é mesmo?

A mulher deu uma risadinha curta. E sorveu mais um gole de chá.

O oficial da lei não se manifestou.

- Isso me faz lembrar de outras coisas que aconteceram ao longo destes tantos anos em que tenho vivido, se me permite...

Nenhuma reação, ainda, de parte do policial.

- Eu lembro muito bem, como se fosse hoje... Após a implantação das leis, o novo Sistema Penal foi consolidado, e o poder do governo tornou-se quase absoluto. Faltava apenas uma coisa.

"Muitos cientistas, geneticistas, anatomistas, químicos, fisiologistas, terapeutas, técnicos em telecomunicações e informática... a maior parte dos grandes estudiosos do país, e até alguns estrangeiros, todos os que não sumiam iam sendo sistematicamente absorvidos pelo governo, durante e mesmo depois do período da Quarentena. Na verdade, a Quarentena parece ter sido muito mais dura para com certas empresas do que para o público em geral... Quem quiser consultar os registros antigos vai ver que a quantidade de empresas falidas quase quadruplicou durante aquele período. E a maior parte destas empresas lidava com produtos ou serviços que envolvessem algum tipo de conhecimento técnico, ou científico, ou ambos. Ao que parece, os obstáculos que o novo regime governamental colocava no caminho das empresas técnicas eram propositadamente intransponíveis, e as empresas eram obrigadas a fecharem suas portas... ou então eram adquiridas pelo governo, tornando-se estatais públicas, e passando a gozar de um certo anonimato, e de regalias que deviam ter sido bastante atraentes... Ah, e estas novas empresas governamentais acabavam levando os cientistas e técnicos com elas. As regalias concedidas aos gênios também deviam ter sido bem atraentes...

Mais um longo gole de chá.

Mais um longo suspiro, como se a mulher estivesse buscando forças para continuar.

Nenhuma reação, ainda, de parte do policial.

"Houve protestos de algumas minorias, como sempre havia... Mas o governo daquela época, assim como o governo de nossa época, não deu ouvidos. Parece que, se rechaçar protestos faz com que um governo seja chamado de intransigente e repressivo, ignorar tais protestos é um dos atributos que faz com que um governo seja considerado excelente... Eu sei que isto não é verdade, mas foi algo assim que acabou ocorrendo. Os protestos eram ignorados pelos homens que estavam no poder, pelos homens que após cem anos ainda estão no poder, e a população em geral acabava aplaudindo cada nova medida, lobotomizada e feita inconsciente desde o final do século passado por uma pseudo-cultura romântica e dançante que ainda é propagada aos quatro ventos pelos meios de comunicação em massa, mandato após mandato.

"Ignorar protestos de minorias é excelente para mostrar autoridade por parte de um governo em relação a uma população ignorante. Rechaçar protestos na calada da noite, sem dar na vista, é ainda mais prático, e evita que tais manifestações, focos de consciência pública, venham a se repetir. Muita gente desapareceu... acho até que eu já disse isso antes, não é mesmo?

A mulher ergueu o braço magro, e olhou para o velho relógio de pulso.

- Mais meia hora e meu... advogado... irá chegar - disse, esvaziando outra vez a xícara de chá.

Seu olhar, antes alegre, tornou-se grave.

- Acho que podemos conversar mais um pouco, não é mesmo?

Ela encheu a xícara de novo, como se fosse rotina.

Nenhuma reação, ainda, de parte do policial.

- As pessoas desapareciam, mas isso não importa. O que importa é que novas pessoas surgiram para tomar o lugar das primeiras. Você, policial, conhece muito bem estas novas pessoas, não é mesmo?

Nenhuma reação, ainda, de parte do policial.

- Os cientistas e técnicos absorvidos pelo governo trabalhavam, e como nunca. Naturalmente corrompidos por generosos financiamentos e equipamentos avançados concedidos pelo governo, e pela ingenuidade típica dos especialistas, os sábios desenvolveram ao longo dos anos os estudos que resultariam na engrenagem que hoje move o Sistema Penal: a Força Policial... que há vinte anos vem combatendo o crime pelas ruas das cidades de nosso país. Você, policial, faz parte desta engrenagem - uma engrenagem concebida a partir de clones de uma única pessoa.

"Desenvolvidos e aperfeiçoados continuamente, junto com os próprios equipamentos que utilizavam, os novos policiais, clones como você, passaram a tomar conta das ruas. Assumindo pouco a pouco as tarefas delegadas aos antigos policiais, o novo grupamento demonstrou uma eficiência ímpar, que só poderia ser comparada ao segredo ímpar que era mantido quanto à procedência de indivíduos tão absolutamente capazes. O crime no país era punido com rapidez, severidade e justiça inigualáveis. Surgiram os julgamentos-relâmpago, e sentenças imediatas passaram a ser promulgadas por juízes-policiais. A antiga, ineficiente e inescrupulosa classe policial deixou de existir, e levou consigo a ainda mais antiga, mais ineficiente e muito mais inescrupulosa classe judiciária. O povo, como não podia deixar de ser, aplaudiu mais este novo passo na cruzada do poder público contra o já quase inexistente poder paralelo exercido pelo crime.

"Não levou muito tempo para que o rigor da nova força policial batesse de frente com as poucas instituições que ainda ofereciam alguma resistência ao governo. Religiões e cultos foram os próximos a cair, junto com os meios de comunicação privados, mesmo os que parecessem ter um posicionamento favorável ao governo. A palavra pública, tanto quanto a palavra de Deus, eram armas que poderiam vir a ser perigosas para a sociedade...

A mulher parou de falar.

Parecia que as forças lhe faltavam, e ela respirou fundo mais uma vez, e olhou para o alto.

- Religiões inteiras, milenares, reduzidas à meros grupelhos de oração, em que seqüências de palavras decoradas, sem significado, são balbuciadas repetitivamente... monotonamente. Todo um sistema de entretenimento e comunicação contraído pelo poder público de uns poucos, e transformado em umas poucas vozes, melodias, programas e jogos sem sentido. Uma nação inteira, um povo inteiro... quase três gerações de pessoas, quase três gerações sem cultura e sem memória, sem passado, sem futuro... tudo em nome da paz...

Uma lágrima rolou de um dos olhos da mulher, que fechou-os em seguida, e tornou a baixar o rosto, abrindo-os, e dando de cara com o policial.

- A-acho que... eu não preciso entrar em detalhes sobre o que está acontecendo no resto do mundo, por causa dessa tão almejada paz que nossa nação conquistou.

A mulher levantou-se, um pouco desequilibrada, e caminhou devagar, dando a volta em torno da mesinha que separava as duas poltronas.

Aproximando-se do policial, ela agachou-se e pegou a mão esquerda deste, ainda posicionada sobre a arma pequena no coldre. Removeu a luva negra de couro sintético, e apoiou os dedos sobre a pele macia do pulso inerte, enquanto olhava o relógio pendurado em seu próprio pulso.

Nenhuma pressão arterial.

Duas horas em ponto. O advogado logo chegaria.

A pasta havia funcionado.

Assim como o chá.

- O resto do mundo está em guerra contra a nação mais poderosa que já existiu na face da terra - nossa nação. Uma nação que fabrica clones de supersoldados - seres humanos sem mente - em linhas de montagem, e os envia para a guerra. Uma nação dominada por políticos saídos de tubos de ensaio, cujos planos, cuja vida não passa de uma duplicata da vida dos que iniciaram tudo isso, a Quarentena, o Sistema Penal... tudo. Uma nação temida pelo resto do mundo, e que vem tomando posse do resto do mundo, destruindo outras tantas civilizações e culturas... em nome da paz.

"Uma nação doente de tantas curas, corrompida por ambições desumanas...

"Uma nação que deve sucumbir."

A mulher conhecida como Raiz passou a tatear o capacete negro do policial inerte. Dedos finos e compridos vasculharam as orlas internas, até que um clique se fez ouvir, e a presilha que prendia o capacete na cabeça do soldado se abriu.

Fazendo força, ela puxou o capacete, fazendo surgir um rosto.

- Eu sabia...

Um rosto de mulher.

Um rosto igual ao seu.

- Desativar todas as comunicações - disse a mulher ao capacete. O tom de voz idêntico ao da policial morta foi imediatamente captado pelos mecanismos internos de reconhecimento vocal, fazendo luzes piscarem no visor... - desligar sistemas.

Depois de fazer alguns zumbidos que só podiam ser ouvidos devido ao silêncio que emudecia o ambiente, o capacete finalmente deixou de funcionar.

A mulher conhecida como Raiz levantou-se e deu alguns passos, largando o capacete negro sobre a poltrona onde antes estivera sentada.

Virou-se para observar novamente a policial morta.

A pasta branca, inocente feito um creme dental, feita a partir de essências aromáticas extraídas de plantas e flores geneticamente modificadas - clones de plantas - tornava-se um sonífero extremamente eficaz quando em contato com o ar, com efeitos relaxantes que podiam ser sentidos em segundos.

A exposição contínua aos vapores exalados pelo composto induzia ao sono. Mais tarde, os efeitos passariam a incluir perda de reação corporal a estímulos externos, bloqueio dos sentidos, tato, audição, paladar, etc., algo semelhante ao que ocorria quando sedativos fortes eram usados. Gradativamente, após uma superexposição ao produto, ocorreriam falhas nos estímulos nervosos internos, que em casos extremos poderiam gerar paradas respiratórias ou cardíacas, e mesmo induzir ao coma cerebral.

Duas horas de exposição aos aromas oriundos de dez daquelas pastas, escondidas há mais de quatro horas em pontos estratégicos debaixo das velhas tábuas do assoalho, cheias de frestas e passagens de ar aleatoriamente criadas e distribuídas pelo decurso dos anos... Bem, uma única hora de exposição aos aromas oriundos de dez daquelas pastas seria mais do que suficiente para matar um boi adulto.

Duas horas talvez fossem suficientes para matar um elefante.

Estranhamente, entretanto, a ingestão da tal pasta por via oral não causava mal algum ao organismo...

A mulher, atenta aos efeitos nocivos dos vapores, pegou a xícara vazia e encheu-a mais uma vez com o chá ainda quente do grande bule de cerâmica, decorado com desenhos de plantas.

O antídoto.

Ela, a Raiz, também estaria morta, caso não tivesse passado a tarde inteira ingerindo aquele outro composto. Uma infusão revigorante, feita também de uma mistura de tantas outras plantas e ervas geneticamente modificadas - clones de plantas - apresentando, contudo, efeitos diametralmente opostos aos da pasta sonífera.

O chá, de aparência ainda mais inocente do que a pasta, servia não apenas como um estimulante. Muitas das substâncias que o líquido produzia, ao ser preparado, serviam justamente para combater os efeitos da pasta, destruindo a nível molecular algumas das toxinas que esta gerava.

O que restava era uma sonolência leve, quase como um desânimo. E um certo mal estar... Uma aparente necessidade de se respirar ar puro.

Curtas madeixas de cabelo dourado, claríssimo, escorriam desgrenhadas da cabeça da policial. Era uma bela mulher, de rosto bastante atraente, olhos fechados afastados um do outro, sobrancelhas finas, nariz arrebitado e fino, boca carnuda, tez pálida em decorrência ao rigor mortis...

Uma bela mulher, assim como era a mulher que a observava, a criminosa, que agora se olhava em um espelho que pendia de uma das paredes, e via também ali um rosto bastante atraente, olhos abertos afastados um do outro, sobrancelhas finas e arqueadas em um tom de tristeza, nariz arrebitado e fino, boca carnuda, tez pálida devido aos efeitos do chá somados aos da pasta... e ao desânimo de ver a si mesma, uma parte de si mesma, morta sobre a poltrona.

A única diferença que havia entre as duas mulheres, a viva e a morta, parecia ser o cabelo, que na primeira era liso e curto, e tinha cor de cobre.

(continua...)

Fabian Balbinot
Enviado por Fabian Balbinot em 03/04/2006
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