Ampulheta

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O Sol me parte a pele outra vez. Olho para trás e vejo a Areia. Vejo seu amarelo convertido em branco a força pelo Sol intenso (o mesmo sol que me resseca). Mas, para a Areia, este Sol é vida. Para ela e todos os vermes, insetos e bichos que nos querem mortos. Para todo esse mundo o calor e radiação é vida. Exceto para eles e para mim.

A frente já podemos ver três, quatro Cúpulas de diferentes tamanhos. São transparentes:

- “Forjadas em safira!” - diz nosso guia..

Elas refratam a luz num tom azul, sóbrio. O tom da sobrevivência daqueles que não puderam evoluir junto com o mundo que os abriga.

- Dizem que nos polos as florestas voltaram a crescer! - exclama meu companheiro de viagem e amigo ao reconhecer minha desaprovação. Lhe sorrio:

- Seria bom.... - não quis tirar a ilusão do pobre rapaz..

As Cúpulas estão cada vez maiores a nossa frente. Então chegamos a uma delas. A passagem para dentro é subterrânea e feita por trem. Faz pelo menos duas vidas que não entro num trem e mesmo assim o aviso de fechamento das portas ainda é o mesmo estridente zunido de sempre.

- Cinco minutos para chegarmos! - exclama o guia (agora outro, mais novo e, por incrível que pareça, mais animado).

Cinco longos minutos foram estes... Mas proveitosos. Pude me atualizar um pouco quanto ao design e arte humana. Aparentemente todas as réguas foram destruídas na última grande catástrofe genérica qualquer (provavelmente causada por eles mesmos) e só restaram compassos no mundo. Mas é ainda belo.

Arte é realmente o forte dos humanos.

Esta minha impressão se reforça quando vejo a Cúpula por dentro e toda a Cidadela. Círculos e ogivas por toda parte, além de limpo e funcional. Sinto-me num filme futurista do inicio do século XXI (há umas três ou quatro vidas atrás)..

No trem, o ar já estava diferente mas na Cúpula era incrível! Enquanto do lado de fora deviam ser quase 50°C, aqui não passava dos 22°C (sem contar a umidade relativa bem agradável). Além disto o Sol também está diferente: Olhando para cima posso ver a Cúpula filtrando a radiação solar e deixando passar apenas pouco mais do que a luz visível para os habitantes. O que me causa estranheza: é a primeira vez em vidas que dispenso os óculos polarizados (e por necessidade!).

Meu companheiro me guia à prefeitura, nosso primeiro destino ali.

Nossas roupas, cheias de panos dobrados uns sobre os outros e bolsos de várias utilidades, não nos destacam dentre à multidão vestida hermeticamente em tons claros e cinzas.

O que nos destaca na verdade é nossa postura, nosso olhar, nosso andar e nossa certeza de quem somos opondo-se constantemente a expor-se. Certeza sempre se destaca em meio a duvida.

Na prefeitura, nenhum guarda nos para (mesmo sem saber o que somos). Contarão mais tarde a suas famílias: "Dois estrangeiros estranhos foram na prefeitura hoje. Mas nem me atrevi a pará-los!" ou coisa do tipo.

Meu amigo conhece o prédio e chegamos rápido ao gabinete. O Prefeito chama os guardas mas nenhum se atreve a levantar as armas ou mesmo nos tocar. Nós nos sentamos de frente ao magistrado (um senhor gordo e forte porém baixo e qualquer impressão de fraqueza que a falta de cabelo pudesse trazer sua longa e bem cuidada barba compensa com sobras. Não foi difícil perceber seu poder e personalidade):

- Uma pena ter que quebrá-lo... Confesso em uma expressão.

Ele, vendo a inutilidade dos guardas, os dispensa. Fechados apenas os três na sala, ele nos questiona ríspido:

- ok.. O que querem?

Nossa demanda é urgente demais para explicações como esta. Distorço minha expressão para um equivalente a resposta somada a algo, digamos, 'bem intimidador'. Demora apenas o suficiente para se recompor do choque antes de indicar o centro de uma das paredes para nós. Uma parede limpa e sem quadros, emendas ou colunas. Lisa. Esta se desfaz ante nossa aproximação revelando os mapas e documentos necessários. Pegamos todos e saímos.

O prefeito foi deposto meses depois sem nunca esquecer este dia.

As letras nos pergaminhos cintilam ao toque de nossas mãos, letras que somente nós podemos ver. Elas nos revelam onde se deve ir e o que fazer. Mesmo assim o conhecimento local de meu amigo é de grande valia:

- A Prefeitura é formada de cinco cidadelas sob cinco cúpulas distribuídas em cruz com a que estamos no centro. As quatro que vimos no deserto são mais próximas e equidistantes. Nosso objetivo está na quinta. - explica - São conectadas apenas por trens autômatos de carga, portanto não podemos usá-los. Precisaremos de um veículo para andar até lá.

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Não gosto de nenhum tipo de transporte não animal. Não repudio o uso de trens e navios para carga e compreendo o amor humano a automóveis. Mas não me faz detestar menos. Mesmo assim pegamos um Jeep para a outra cidadela.

O dono do Jeep é um contrabandista qualquer que não vale mais que uma citação. E ainda sim é interessante: jovem apesar de experiente, magro apesar de forte, e belo como a juventude deve ser. Ele me faz lembrar das vidas pelas quais passei e das que atravessei. Das minhas primeiras, quando um carro velho e veloz valia muito (e valia o dobro com alguém no banco do lado). Eu não gosto de carros, mas sei que um dia gostei.

A quinta cidadela fica realmente longe:

- É assim por que as usinas de energia ficam todas nela - explica nosso contrabandista-condutor.

O medo humano do que cria só é menor que o de seus deuses.

E mesmo assim nunca aprendem.

Chegando a quinta cúpula - maior que as anteriores e a única com uma abertura no topo - vemos diferenças; não é como as outras cidadelas. Existem plantações em estufas em volta (pequenas bolhas refratando um verde no interior) e aberturas para trens nas laterais levemente cavadas (mas não o suficiente para serem chamadas de subterrâneas.

O jovem contrabandista, some assim que desembarcamos.

Nos dirigimos às instalações principais:

- Sentes?

Não sei se devo responder "sim" ou "não". Não sinto vida nenhuma no local, mas entendo que o complexo é todo automatizado (dentro e fora). Creio que ele tenha entendido meu silêncio apropriadamente.

Não existe nada a fazer com autômatos ininteligentes, eles simplesmente não nos vêem. E os inteligentes não ajudaram também, não por incapacidade mas por negligencia. Não somos seus mestres/deuses nem nossos assuntos lhes importam... Teremos que aguardar.

Os escritos sugerem sinais aos pacientes. Isso pode significar tanta coisa que optamos pelo mais óbvio: sentamos e esperamos.

O vento aumenta, as maquinas externas se recolhem e o Sol começa a baixar. Em seu limiar de brilho ocidental, eu vejo uma sombra. Uma silhueta humana (e familiar) caminha em minha direção. Meu velho coração bate como o que tinha na época. Uma parte de mim desperta e, quando estou prestes a me levantar, meu companheiro me indica o escuro leste: como uma estrela ao nível do horizonte.

Não é uma estrela. É um brilho na terra, bem incomum. Me viro a oeste e já se foi o por do Sol (e junto a silhueta). Vamos ao ponto brilhante.

Brilham também as letras nos pergaminhos. Este é o ponto!

Sentimos na pele a proximidade do portal. Ele nos chama com seu brilho azul e laranja.

A dois metros dele preciso por meus óculos de volta. Não vejo mais meu companheiro, mas sei para onde foi. Ele esta bem.

Abro todos os pergaminho e mapas e o vento para ante ao conhecimento neles contido. Os organizo num circulo em volta do ponto brilhante. O brilho do circulo e do portal quebra a noite.

Começo a cerimônia. Meu manto se rompe e minha roupa se desfaz em moléculas. A Areia deixa de existir. A Cúpula e a Prefeitura são memórias apenas. O azul e laranja se dissipam e mesclam ao branco do nada. Só há branco agora. Não. Existe ao longe uma silhueta. A Silhueta. Ela se aproxima: um mulher negra, de cabelos cacheados na altura dos ombros, olhos escuros grandes e bonitos (de "egípcios" já os chamei tempos antes). Meu coração bate forte, como o que tinha na vida que a conheci. Ela me abraça forte.

Pontos brilhantes nos circulam e envolvem. Olho no fundo de seus olhos castanhos. Nossos rostos se aproximam. Meus olhos se fecham. E num beijo eu volto a respirar.

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Eu me lembro dela.

Abro meus olhos com dificuldade. A luz me machuca. Me mexer me machuca. Pouco a pouco me acostumo com a luz e posso ver alguém a meu lado, dormindo numa poltrona ao lado da cama. A cama, confortável, mantém suportes na cabeceira para os remédios que me continham. O quarto é de um design funcional, mas confortável. Vejo, numa TV sob uma ampulheta, uma data. Uma data quase um mês depois do primeiro fim.

- Uma vida por dia.

Ela acorda com minha voz. Atropela a poltrona ao se levantar. Me beija a boca e me abraça. Seus cabelos longos e lisas caem sobre mim. As lagrimas em seus olhos verdes me alegram.

Também lembro dela.

Também lembro de tudo agora.

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