297-O MUNDO VIRTUAL DE ANOR MALTA

Perdeu a conta das horas vividas em frente do computador. Quanto mais tempo estivesse à frente da tela, obcecado pelas imagens ou pelos sons, mais queria ficar. E ficava.

De início, adotara a atividade apenas para passar seus infindáveis dias. A aquisição do computador foi uma forma de preencher seu tempo de recém-aposentado. Metódico, organizado, logo-logo estava senhor da manipulação das teclas, dos comandos, do mauser, da impressora dos programas diversos, do sistema de multimídia e, naturalmente, da Internet. Passou pelo maravilhamento inicial, o deslumbre pela facilidade em digitar, em conhecer os procedimentos. Quando chegou a internet, mergulhou fundo.

— Maravilhoso! A Internet é a materialização do inconsciente coletivo! Está tudo lá. Tudinho. O que a gente quer saber, em qualquer parte do planeta — e do Universo!

Virou mania, obsessão. Não tinha mais horário para nada. Varava a noite, entrava madrugada adentro. Passou a dormir ao clarear do dia, vencido pelo cansaço. Acordava tarde e ia direto para o computador. O grande cômodo da casa, que tinha sido uma biblioteca de centenas de livros, foi ocupado pela parafernália eletrônica.

— Anor, deixa um pouco esse escritório. — A mulher pedia, na vã tentativa de afastá-lo, por alguns minutos que fossem, da escravidão do marido ao aparelho sedutor. — Vá fazer uma caminhada, encontrar com seus amigos, bater um papo aí fora.

Anor Malta, conhecido na cidade como seu Maltinha (alguns pronunciavam Mautinha) , era um homem curioso em tudo. Houve época em que se dedicou ao estudo do espiritismo, depois passou para a numerologia e quis enfronhar-se nos mistérios do tarô. Por alguns anos, foi membro da Rosacruz. Pouco antes de adquirir o absorvente computador, esteve profundamente interessado em energia e nas suas misteriosas e maravilhosas formas de manifestação. Atualizado nas idéias, agora tinha em mãos um instrumento que o colocava em contato com os cientistas, pesquisadores e teóricos em todo o mundo. Começou a trocar e-mails com alguns professores de física e a freqüentar sites sobre o assunto.

Cada vez mais integrado, cada vez mais viajante, cada vez mais internauta, cada vez mais dentro da rede, acabou por elaborar uma teoria.

— Ainda vamos, os usuários da internet, nos integrar completamente — fisicamente, por assim dizer — à rede. — Afirmava textualmente, e já estava provocando algumas respostas iradas e outras afáveis à sua idéia.

Com o passar dos anos e aumentado sempre seu contato com a Internet, seu Maltinha começou a ter lances de interação física com o computador, e, através dele, com a rede eletrônica que circunda o planeta. Por momentos, átimos imensuráveis, sentia que entrava com sua energia mental, na rede, e viajava independente de comandos e ordens para o computador. Sentia-se, então, num mundo virtual, extra-sensorial, mais do que um sonho, uma quase-realidade, um mundo de luz, sons e bites, navegando em ondas eletromagnéticas e outras ainda por serem classificadas pela ciência. Experiência viva e intensa, que o conduzia a outros terminais, a grandes centros de computação, com acesso ilimitado a qualquer ponto do planeta e até aos satélites artificiais e aos artefatos humanos navegando pelo Universo.

Assustou-se a princípio. Ao voltar do primeiro insight, teve sensação de estar voltando de um outro mundo, onde se defrontara com a realidade virtual, numa experiência quase tangível.

Quanto tentou repartir essas experiências com seus amigos da Internet, foi ridicularizado e jamais recebeu um e-mail que levasse a sério suas experiências. Como bom mineiro, não fez alarde de suas experiências, nem insistiu na divulgação. Acreditem ou não, estou na iminência de descobrir algo muitoimportante, pensou.

A mulher observava o marido. Notava que havia momentos nos quais Anor parecia estar desligado deste mundo: sentado defronte ao computador, os olhos intensamente fixos na tela, os braços estendidos e as mãos repousadas no teclado ou no mouse. Nesses momentos, o marido estava fisicamente ali; mas a mente — quem poderia dizer onde estava?

Gradualmente, esses lapsos foram aumentando. Seu Maltinha sentia-se cada vez mais integrado, mais à vontade. Passou a controlar os momentos em que decidia entrar na rede e a dominar os meandros pelos quais desejava passar. Descobriu que podia interferir nos programas, alterar arquivos e documentos arquivados em qualquer computador do mundo que estivesse ligado à Internet.

Suas incursões se tornavam cada vez mais constantes, cada vez mais agradáveis e cada vez mais reveladoras. Virou vício. Quase não dormia. Quando se sentava à mesa, com a mulher, para alguma refeição, agia como um autômato: os olhos fixos no espaço, os movimentos mecânicos, a voz cadenciada em ritmo eletrônico.

— Pára com isso, Maltinha! — A esposa o admoestava. — Você vai endoidecer, se continuar assim.

Ele parecia não ouvir. Aliás, nem se dava mais conta da presença da mulher, ali na sua frente ou em qualquer outra situação doméstica. Longe do computador, mostrava ansiedade constante e parecia estressado.

Entre descobrir que podia interferir nos programas e arquivos eletrônicos, e realizar efetivamente alterações, foi questão de pouco tempo. Começou como brincadeira. Alterou de tal forma os textos de uma edição inteira de um grande jornal, que a edição do dia, totalmente empastelada, não pôde ser impressa. Entrou nas emissoras de TV e confundiu as falas de atores e atrizes, provocando estranheza nos tele-espectadores, ira dos diretores e cancelamento de contratos de grandes patrocinadores. Numa fábrica de alimentos industrializados do Canadá provocou tal confusão na comunicação interna que a produção de uma semana de aveia em pacotes foi enviada, automaticamente, para um estabelecimento hospitalar. O que lhe proporcionou maior frisson foi um colapso nas linhas de comunicação do exército americano quando invadiu o Iraque: jatos caíram no deserto, helicópteros metralharam os próprios soldados ianques e tanques explodiram inexplicavelmente. De outra feita, sua interferência causou um apagão na região de Hong-Kong: as bolsas do mundo inteiro foram abaladas pelas horas em que, devido à sua malévola intervenção, o centro financeiro asiático entrou em colapso.

Tudo esteve bem para Anor Malta até o dia em que entrou na Rede e não voltou. A mulher o encontrou hirto, na posição habitual, sentado defronte ao aparelho de TV, cuja tela acesa nada indicava de anormal.

O diagnóstico foi fácil, para o médico da família: parada cardíaca.

— Ele andava muito esquisito, ultimamente — explicou a esposa. — Não saía um minuto da frente do computador.

A morte de Anor Malta constituiu a liberação de sua mente do casulo físico, integrando-a totalmente na rede da Internet: um êxtase pleno, infinito, um navegar eterno pelas ondas da rede, por todos os computadores, em viagens terrenas ou em saltos entre satélites, sondas espaciais e observatórios cósmicos.

A mente de Anor Malta se transformara em vírus da Internet.

ANTONIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 7 DE AGOSTO DE 2004-

Conto # 294 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/07/2014
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