O juramento de Hipócrates

Quando era criança lembro bem de sempre ganhar de minha família kits de química e livros sobre ciência, não por que eles não soubessem o que dar a uma criança de dez anos, mas por que eu mesmo pedia. Eu sempre fui muito curioso, a toda hora perguntava sobre a origem do Universo e as coisas a nossa volta, gostava de investigar o quintal com uma lupa para descobrir os mistérios que havia sob a grama verde. Mas de tudo o que mais me fascinava era o corpo humano. Esse interesse durou anos, nas reuniões de pais e mestres eu era sempre alvo de elogios do meu professor de ciências. Foi ele que me aconselhou, alguns anos depois, a cursar Biologia na faculdade. Fui o primeiro da turma na matéria, dava aulas particulares aos alunos menos atenciosos as explicações do nosso professor. Formei-me, comecei como médico de um hospital da região. Um tempo depois recebi a proposta de trabalhar como chefe cirurgião do maior hospital da capital com um salário nada mal. Salvei muitas vidas, ajudei pessoas com problemas considerados incuráveis pelos outros médicos. Eu me orgulhava imensamente da minha profissão e das pessoas que ajudei com meus esforços. E para ajudar mais pessoas ao redor do planeta me aprofundei em meus estudos sobre o corpo humano.

Mas eu fui egoísta e me esqueci que um médico sempre deve auxiliar os necessitados.

Nos últimos tempos a mente humana e seus segredos haviam ganhado meu fascínio exatamente por ser uma área do ser humano pouco estudada. Não havia muitos livros sobre o assunto e poucos médicos e cientistas eram capazes de responder minhas dúvidas. Comecei em primeiro lugar a coletar amostras do cérebro em cadáveres que me eram permitidos o acesso. Mas não era possível fazer testes em cobaias vivas e isso era de grande importância para o avanço de meus estudos. Mas um dia um homem veio me procurar na saída do hospital, queria oferecer uma proposta. Disse que se eu desenvolvesse um vírus ele me daria todo o material que eu necessitava para as minhas pesquisas, um laboratório próprio, dinheiro para financiar meus estudos, e arranjaria as cobaias. De início me assustei, argumentei que era contra a lei fazer testes em humanos, questionei o que aconteceria caso alguém descobrisse. O homem disse para não me preocupar com isso, ele iria garantir que o sumiço dessas pessoas não iria virar notícia nem prejudicar meu trabalho. Então perguntei que tipo de vírus ele queria.

Ele me contou que o país pretendia declarar guerra contra um inimigo que agora não me recordo o nome. Me disse que o vírus era a sua principal arma e que se eu aceitasse criá-lo me tornaria rico e famoso por honrar a pátria. Ele queria algo poderoso, capaz de derrubar uma nação inteira. Eu teria um prazo de até dois anos para desenvolver essa arma. E é claro que a parte do rico e famoso me ajudou a tomar a decisão de criar esse vírus.

No dia seguinte já comecei minhas pesquisas, ainda não sabia que tipo de vírus iria criar então fui pesquisar doenças raras ao longo da humanidade para, quem sabe, iluminar minhas idéias. Um documento antigo caiu em minhas mãos, datava do século 16. O manuscrito descrevia uma crise raríssima que atingiu uma aldeia, uma mulher havia começado a dançar na praça e não parou até morrer seis dias depois. E o mais curioso é que as pessoas que passavam e a viam dançar começavam a dançar junto. No final da semana metade da aldeia estava dançando sem motivo algum, e não conseguiam parar. Tive então a idéia de criar um vírus que destruísse a parte do cérebro responsável pelas ações conscientes, um vírus que impedisse a pessoa de agir por conta própria. Seria a arma perfeita. Eu ficaria rico e famoso, todos saberão meu nome. Se eu soubesse o que viria depois...

Fiz uma viagem até a área onde era a antiga vila, fiz pesquisas durante um mês e descobri que o que causou a epidemia de dança nas pessoas foi um fungo presente no solo daquela região. Voltei para casa com algumas amostras, realizei testes nas cobaias humanas, mas para minha infelicidade o vírus não surtia mais o mesmo efeito de antes, o ser humano havia se tornado imune a ele. Então tive que eu mesmo aperfeiçoá-lo. E dessa vez ele seria muito mais poderoso.

E depois de um ano de testes, pesquisas e noites em claro, consegui finalizar o vírus que me daria a fama e traria a vitória para o país. E logo ele foi posto em ativa no campo de batalha. Os soldados inimigos infectados, ao verem os nossos próprios soldados atacando as cidades, passavam a imitar seu comportamento. Eles perdiam completamente a capacidade de agir por conta própria. O povo do país inimigo também não foi poupado, os infectados agiam como soldados e atacavam uns aos outros. Foi um massacre. Ganhamos a guerra em pouco tempo, o inimigo se rendeu ao ver a extensão do poder assassino do meu vírus. O presidente ficou muito contente comigo, fui condecorado por honrar a pátria, me tornei um médico famoso e enriqueci. Não desenvolvi um soro contra o vírus por achar que ele não sairia daquele país, a população estava segura. Passaram-se anos, fui ficando velho, as lembranças da guerra ficaram para trás e nunca mais vi sintomas que mostrassem a atividade da doença.

Até semana passada.

Eu gosto de fazer a manutenção do meu jardim sozinho mas precisava de uma nova tesoura de poda e por isso fui até a loja de ferragens na rua de cima, não imaginei que aconteceria algo diferente aquele dia, ninguém pensa nessas coisas quando sai de casa. Chegando lá lembrei de tantas outras coisas que necessitava em minha casa que acabei ficando mais tempo do que devia, e como estava entretido escolhendo vasos de planta não percebi a chegada de um carro preto e seus ocupantes mal-encarados. Quando percebi já estava ajoelhado com as mãos para cima e uma arma apontada para minha cabeça. As lembranças dos momentos que passei na loja são confusas por conta do medo, mas me lembro bem que eram dois ladrões. Enquanto um tratava de pegar o dinheiro do caixa o outro cuidava para que todos que estavam ali presentes sentissem o máximo de temor possível.

E as coisas realmente ficaram apavorantes.

O homem que estava ao meu lado se levantou com um olhar vago, como se estivesse em seu próprio mundo (a mesma expressão que os drogados possuem) e simplesmente ficou ali, olhando a cena.

- Eu mandei você levantar da porcaria do chão? É melhor se ajoelhar de novo se não quiser uma bala bem no meio da sua cabeça!

O homem ficou imóvel

- Você é surdo ou só é retardado mesmo? Eu mandei voltar pro chão!

O homem ficou imóvel

- Foi você quem pediu!

Eu fechei os olhos na hora que a arma disparou e a bala se encravou em sua testa, o sangue escorrendo bem lentamente até mim.

- Acho melhor ninguém mais tentar outra gracinha dessas! O cara ali tá de prova do que acontece quando não me obedecem!

A balconista se levanta e grita no mesmo tom:

- Acho melhor ninguém mais tentar outra gracinha dessas! O cara ali tá de prova do que acontece quando não me obedecem!

- A mocinha ta querendo conhecer o papai do céu mais cedo? Como você é mulher vou dar uma chance pra pensar na vida!- e atirou no pé da moça, mas isso não foi suficiente para parar o vírus.

- A mocinha ta querendo conhecer o papai do céu mais cedo? Como você é mulher vou dar uma chance pra pensar na vida- ela pegou um machado que estava na prateleira ao lado e partiu para cima do bandido, atacando o seu pé.

- Filha da puta! Você é louca! Eu vou acab...

Com outra machadada ela separou a cabeça do corpo e pareceu se acalmar com isso, mas não os outros infectados. Quatro ou cinco pessoas se levantaram com o mesmo olhar vago, tomaram posse de tesouras ou foices e partiram a luta, matando quem achassem na frente. E quando o segundo bandido saiu dos fundos da loja com uma mochila cheia de dinheiro, não teve tempo de emitir nem uma exclamação sem ter a cabeça aberta ao meio por uma picareta.

Quanto a mim, tratei de correr o mais rápido possível para a saída, e na rua continuei correndo até chegar em casa, e foi lá que desmaiei em silêncio no tapete da sala.

Mas isso era impossível! O vírus não podia ter chegado até aqui, os dois países são muito separados! E como eu pude ser tão burro a ponto de não ter criado uma vacina? Como eu fui estúpido! E o maior perigo é que já faz mais de trinta anos que o vírus está ativo, então a essa altura vai ser muito mais difícil criar um antídoto!

*Toc toc toc

Quem será?

- Boa tarde Dr. José, poderíamos lhe fazer algumas perguntas? – era Bill e Miguel, dois policiais amigos meus.

- É claro, por favor, entrem.

Eu estava terrivelmente assustado ainda, mas eles eram conhecidos meus há quase dez anos, não tinha que ter medo de nada. Até por que a culpa não era minha daquilo ter acontecido.

[meu deus a culpa é toda minha eu sou um monstro como pude criar uma coisa dessas as pessoas vão morrer aos montes por minha causa]

- Nós demos uma olhada na gravação das câmeras e vimos que o senhor esteve hoje de manhã na loja de ferragens.

- Acho que nunca vou conseguir me esquecer daquilo, e eu só ia comprar uma tesoura de poda.

- Poderia nos descrever o que aconteceu exatamente?

Contei tudo do jeito que aconteceu, com os mínimos detalhes, parecia que se não falasse naquela hora explodiria.

- Foi realmente uma coisa um tanto incomum o que aconteceu, né Bill?

- É sim, e o senhor tem alguma idéia do que pode ter levado as pessoas a fazerem isso que fizeram?

E toda a guerra de trinta anos atrás passou pela minha cabeça, os soldados atacando seu próprio povo, as noites em claro que passei fazendo testes em minhas cobaias, e todo o dinheiro que ganhei por isso. Não havia saído um artigo sequer no jornal que atribuísse meu nome à criação daquele vírus mortal. Na verdade ninguém sabia da existência dele, sabiam apenas que o nosso governo havia ganhado a guerra, e mais nada.

- Não tenho a menor idéia.

- Então muito obrigado Dr. José, até mais.

- Até.

E novamente eu estava sozinho com a minha culpa.

Depois disso passei cinco dias inteiro trancado em meu laboratório, saindo apenas para comer e ir ao banheiro. Não ia desistir de encontrar uma cura para o que eu tinha feito, mas devo confessar que também estava morrendo de medo de sair e me contaminar. Mas também não podia passar o restante da minha vida lá dentro, e resolvi que dar uma volta pela cidade seria um ótimo jeito de acalmar a minha mente, e fui até o parque.

- O senhor poderia me disser que horas são?

- Três e meia – respondi para um sorveteiro

- Muito obrigado

E continuei andando.

- O senhor poderia me disser que horas são?

-Três....e meia- respondi um tanto apreensivo a pergunta de uma simpática senhorinha.

-Muito obrigado.

- O senhor poderia me disser que horas são?

Mas isso já era demais! Não havia se passado nem um minuto que o sorveteiro havia me feito a mesma pergunta! E eu tinha que dar um jeito de sair daquele lugar, se bem me lembro o vírus é transmitido através do ar.

- É a hora de ir para casa arranjar uma pistola calibre 38.

- Muito obrigado.

As balas deviam estar guardadas em algum lugar no porão, minha mira não é mais a mesma mas em uma emergência é melhor que nada.

Ouvi um barulho de pneu derrapando e me virei a tempo de ver um carro atropelar a senhora que havia falado comigo a poucos instantes.

- Meu Deus! A senhora está bem? Não tive tempo de frear e ela estava parada bem no meio da rua! Ah meu Deus, ah meu Deus, eu matei ela!

E realmente a cena não estava muito bonita de se ver. Os braços estavam virados em uma posição estranha e a cabeça não parava de sangrar, mas não era isso que me preocupava. Logo aquele motorista ia descobrir que fizera uma coisa pior do que matar uma senhora idosa, ele ia provocar a morte de muitas outras pessoas.

E a rua se encheu de pessoas gritando:

- Meu Deus! A senhora está bem? Não tive tempo de frear e ela estava parada bem no meio da rua! Ah meu Deus, ah meu Deus, eu matei ela!

- Mas que porra....?

E então doze ou treze motoristas começaram a dirigir loucamente, atropelando quem estivesse na frente e gritando sem parar:

- Meu Deus! A senhora está bem? Não tive tempo de frear e ela estava parada bem no meio da rua! Ah meu Deus, ah meu Deus, eu matei ela!

E as pessoas na calçada corriam desesperadas sem entender o que estava acontecendo, mas sem sucesso algum. E eu estava tão absorto em contemplar aquela cena digna de Stephen King que não vi um carro subir na calçada a 90km por hora.

Só ouvi alguém gritar:

- Meu Deus! A senhora está bem? Não tive tempo de frear e ela estava parada bem no meio da rua! Ah meu Deus, ah meu Deus, eu matei ela!

Fui acordar dois dias depois em uma cama de hospital, com um braço quebrado e um pé bem inchado. Eu preferia ter morrido, ao menos a culpa não me mataria tão lentamente como está fazendo. Assim que acordei tratei de me informar sobre a nossa situação, e não era boa. Pessoas estavam morrendo não as centenas, mas aos milhares, e a tragédia já havia atingido o país inteiro. Alguns suspeitavam de que um governo inimigo havia desenvolvido um vírus para nos destruir. Pelo menos ninguém sabia da verdade.

[logo alguém vai descobrir é só pesquisar um pouco e pronto serei linchado pelas multidões]

*Toc toc toc

- Telefone para o Dr. José.

- Obrigado.

(deve ser a polícia avisando que de tarde vem me prender)

- Alô?

- Bom dia Dr. José

- Quem está falando?

- Nós dois não nos vemos a muito tempo, mas já fizemos negócio.

- Eu não me lembro disso...

- Fui eu que bati a sua porta há trinta anos atrás pedindo que criasse uma arma de guerra, se lembra?

Meu Deus! Foi esse homem que me pediu o vírus! Eu me tornei rico por causa dele, mas provoquei a morte de milhares de inocentes por causa dele também. A culpa disso ter acontecido é minha, mas foi ele que fez minha cabeça com idéias que fugiam dos propósitos de um médico.

- Lembro, mas preferia não lembrar. Está ligando para saber se tenho uma vacina? Por que não tenho e não faço idéia de como conseguir uma.

- Não é sobre isso que quero falar. Na verdade não dá para tratar desse assunto por telefone. Nós poderíamos nos encontrar?

- Onde?

-Vá para a sua casa, estarei esperando lá.

- Tudo bem, e é melhor que isso seja sério.

- Pode apostar que é.

- Então até logo.

-Até.

Foi muito simples sair do hospital, a confusão que estava na porta tirou a atenção de cima de mim e me ajudou a fugir pela escada de incêndio. Tomei um táxi e fui para a casa, e enquanto viajávamos pelas ruas fui torcendo para que o carro batesse e eu morresse de traumatismo craniano. Mas cheguei em casa sem problemas.

Logo que entrei fui surpreendido por dois homens que seguraram meus braços e me amarraram na minha cadeira predileta (quanto senso de humor) enquanto um terceiro tratou de me dar um soco bem no olho. Não foi muito agradável.

- O que vocês estão fazendo?! Acho melhor me soltarem por que muita gente sabe que eu vim para cá!

- Vamos lá Dr. José, ninguém faz idéia de que você está aqui, então simplesmente cale a boca.

Era o homem que tinha falado comigo ao telefone, fazia trinta anos que não o via mas já o odiava.

- O que vocês vão fazer comigo? Você me disse que tinha um assunto para tratarmos!

- E eu não menti. Nós viemos aqui tratar a respeito da sua morte Dr. José.

- O que? Mas por que agora? Eu posso desenvolver um antídoto! Eu sei que essa coisa está fora de controle mas posso reverter esse quadro! Me dê uma chance!

Nessa hora cheguei a conclusão de que quanto mais perto da morte estiver maior será o seu medo dela. Mesmo que a poucos minutos você estivesse desejando encontrá-la.

- A situação não é mais a mesma de trinta anos atrás doutor, eu não trabalho mais a favor deste país e não me importo com essa cura.

- Como assim?

- Se lembra do nosso inimigo? Eles conseguiram reerguer o país e ainda por cima descobriram uma vacina contra a doença. Me ofereceram uma grana preta pra vir aqui e contaminar todo mundo.

- O que? Seu...se traidor! Como pôde fazer isso?!

- É a vida.....agora vou terminar o serviço e posso voltar para a casa. O governo deles vai me deixar tão rico que vou poder morar onde eu quiser.

Então ele fez um gesto para um dos homens que estava segurando uma maleta, e logo vi uma seringa contaminada sendo injetada no meu braço.

- Me mandaram matar todo mundo que soubesse da causa da doença, ou seja, você. Vai ter alguns minutos de lucidez e depois, já sabe, adeus força de vontade. Podem desamarrar ele, não vai conseguir ir a lugar algum mesmo.

Me desamarraram e foram embora rindo, deviam estar pensando no dinheiro que vão ganhar.

Resolvi escrever isso antes de perder a consciência dos meus atos, estou deixando tudo relatado para que a verdade não morra comigo. Acho que mereço o que está por vir. Não será a morte dolorosa nem a culpa, será um vazio interior, uma prisão dentro de mim, um lugar de onde não vou conseguir escapar. Serei mais um na multidão de aprisionados que está marchando pelo país.

Me sentei perto da janela e fiquei olhando o poder destrutivo do que eu fiz. Milhares de pessoas morrendo, matando entes queridos, atacando vizinhos e amigos, até mesmo se matando. E fui eu que criei essa obra prima. Eu deveria estar orgulhoso?

Matheus Barbosa
Enviado por Matheus Barbosa em 18/10/2014
Código do texto: T5003590
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