Não lembro com o que sonhei

Ele estava num café que ficava perto do seu trabalho. Ia ali todo fim de tarde tomar um cappuccino e comer um pão na chapa, a comida compensava o péssimo atendimento. Gostava de olhar os rinocerontes andarem de um lado para o outro na rua, e as vezes, quando algum lhe atraía a atenção, ia até o lado de fora e lhe dava um abraço.

-O que é isso? – ele ouviu uma colher perguntar a outra na mesa ao lado

- É o meu novo colar. Gostou?

- Muito, mas acho que ficaria melhor naquele abajur ali. – e colocou o colar sobre o abajur.

- Tem toda razão! Ficou admirável! É por isso que eu gosto tanto de você.

Ele não gostava de ficar vendo cenas melosas enquanto bebia seu cappuccino, isso lhe dava enjôo. Ele queria.......queria.......um nome. Mas não um nome qualquer, o seu nome. Mas qual era o seu nome? Talvez a atendente soubesse.

- Com licença, poderia me dizer o meu nome? – talvez ela fosse surda porque continuou limpando os copos como se nada tivesse acontecido.

- Moça, estou falando com você. – é, ela devia ser surda.

Ele voltou a sua mesa e ficou pensando se realmente tinha um nome. A sua mãe tinha colocado um nome nele quando tinha nascido, não é mesmo? Mas ele tinha mãe?

-Senhor, está pisando no meu filho.

- O que disse?

- Que está pisando no meu filho. É o único que tenho até a época da colheita chegar e está pisando nele.

- Desculpe, não tive a intenção. – ele olhou e realmente estava em cima de um menino de quatro anos com um boné vermelho e o nariz escorrendo.

- Tudo bem, já a quarta vez essa semana mesmo. Vamos logo Túlio, pare de brincar com essa píton.

- Tudo bem mamãe.

Ele voltou a andar pela avenida......mas não estava agora mesmo tomando café e comendo torradas? Ou era chocolate quente e biscoitos? Não conseguia lembrar nem o próprio nome......mas tinha nome? E não estava pensando nisso até pouco tempo atrás?

- Será Alzheimer?

- A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência. Não existe cura para tal, a qual se agrava progressivamente até que eventualmente......

- Dr. Lourenzo?

- ......em 1906 pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer. A doença é geralmente diagnosticada em......

- Como eu estou no seu consultório agora se a um segundo atrás eu estava.....estava.....

Onde ele estava mesmo?

- Isso deve ser um sonho. É lógico que é um sonho! Nem acredito que eu não pensei nisso antes!

- O sonho é uma experiência que possui significados......

- Sim, eu sei o que é um sonho Dr.

- ........do inconsciente durante nosso período de sono. Para Freud, os sonhos noturnos......

- Mas então por que eu não acordei? Eu devia ter acordado quando percebi que era um sonho, não devia?

- ......Na busca pela realização de um desejo reprimido. Em 1900, com a publicação de seu livro, Freud deu um caráter científico para a matéria.....

- Então talvez não seja eu que esteja sonhando. Talvez eu seja o sonho. Eu sou só um sonho de alguém? E quando a pessoa acordar? Eu vou deixar de existir? É isso doutor?

- ......cargas emocionais armazenadas no inconsciente, que projetam imagens e sons......

- Então tenho que fazer de tudo para que essa pessoa demore o máximo de tempo para acordar. Mas como se faz isso?

- O que vai querer?

- O que disse doutor?

- Obrigada pela gentileza, meu jovem, mas não sou doutor e muito menos doutora. O que vai querer?

Era uma senhora apoiada em uma bengala quem estava falando. E ele não estava mais no consultório do Dr. Lourenzo, estava em uma loja de...de...era difícil dizer ao certo o que era pois tinha de tudo. Desde bolos e tortas de morango até pianos de cauda e maçanetas para portas birrentas (pelo menos era isso que estava escrito na embalagem).

- Eu não sei ainda. Posso dar uma olhada?

- Fique à vontade. Desde que o Arnaldo morreu tenho todo o tempo do mundo. Preparar o jantar para aquele porco comilão não era tarefa fácil.

- Imagino que não...

- Mas era um bom marido, o Arnaldo. Na nossa juventude ele me levava para assistir corrida de minhocas pelo menos uma vez na semana. Era um homem muito romântico, sabe? Sempre me surpreendendo.

- Creio que sim.

Ele deixou a senhora de bengala falando e saiu investigando a loja, à procura de alguma coisa que não conseguia lembrar o que era. Mas o que ele estava fazendo antes de ir parar ali? E como tinha chegado ali? Achava que devia estar....devia estar.....no consultório do Dr. Lourenzo. Mas o que estava fazendo lá? Tinha lembrança de ter descoberto alguma coisa importante. Tinha.....tinha.....tinha descoberto que era um sonho! Sim, era isso. E tudo ali em volta era falso, inclusive ele. Tudo....era....falso.

Ele caiu de joelhos e começou a chorar.

- ......pelo contato que o criador do sonho teve com o objeto mas também com o caráter, ou seja,......

- Senhor, continua pisando no meu filho.

- Dane-se o seu filho.

- ......usam interpretação dos sonhos como um recurso para "elaborar"......

Tudo era uma mentira, inclusive aquelas lágrimas. E não estava triste por sua vida ser uma mentira, por que não tinha tido nenhuma antes daquele momento no café. Estava triste por que nunca ia ter a chance de ter uma vida. Nunca teria a chance de conhecer pessoas novas, fazer amigos, arranjar brigas em bares, ir a encontros apaixonados no escurinho do cinema, viajar, casar, ter filhos, envelhecer e então morrer. Nunca teria nada disso e muito mais, e tudo por causa de algum idiota que estava sonhando e a qualquer momento podia...

- Bom dia amor. Hora de ir para o trabalho.

- Bom dia, que bom que já é sexta. Estou com vontade de tomar cappuccino não sei por que.

- Eu faço um para você. Sonhou com alguma coisa hoje?

- Hum....acho que sim. Mas não consigo lembrar com o que.

Matheus Barbosa
Enviado por Matheus Barbosa em 19/10/2014
Código do texto: T5004492
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