Meus 80 anos

Um leve e contínuo som metálico sai do relógio ao lado de minha cama. Hoje, 23 de fevereiro de 2064, faço 80 anos. Vou ser bem sincero. Nunca imaginaria que chegaria a presente data; muito menos com excelentes condições físicas e metais.

Perto de meus 30 anos, isso em meados de 2014, sofria de um severo problema cardíaco, e para tratar dessa mazela fazia o uso de todos os avanços e tecnologias proporcionadas aos cardiopatas daqueles anos. Tive duras crises. Sempre vinha à mente que passaria desta para melhor em frações de segundos. Estava me preparando para o pior, e com o tempo até aceitei tal condição.

Felizmente, no ano de 2021, o médico cientista alemão, Joseph Klaus, desenvolveu um método para o tratamento de doenças cardíacas o qual denominou de Sistema de Raios Antiarrítmicos. Não invasivo, o procedimento experimental apresentava bons resultados e por vezes até mesmo a cura. Gastei um bom dinheiro no uso desse tratamento e tive a regressão da doença em 1 ano, e com mais 6 meses os médicos me consideraram livre da cardiopatia.

Mais tarde, a base desse procedimento foi aperfeiçoada para outras doenças. Outro mal que afligia a humanidade, o câncer, foi decretado extinto em 2036 pelo Conselho Mundial de Saúde.

Com o passar das décadas, os custos dos tratamentos caíram e se tornaram acessíveis a todos. Hospitais deixaram de existir, contudo a função médica continuava ativa em clínicas que se formavam ao redor do globo.

O avanço da saúde mundial trouxe um grande problema para previdências e economias das nações; o prolongamento da vida. Pessoas passaram a viver mais. Facilmente avançavam além dos 100 anos. Aglomerações urbanas ficavam cada vez maiores e começaram a ocupar outros espaços demográficos com baixo nível populacional na tentativa de distribuir toda aquela massa. Escassez de alimentos, água e o uso indiscriminado de guerras civis no intuito de controlar a crescente turba estouravam em vários países.

Pensando nessa problemática, chefes e líderes de todos os governos aprovaram em assembleia realizada na sede das Nações Unidas, no ano de 2051, “O Controle 80”, ou simplesmente como era conhecido C-80; todos passaram por tal decreto. Esse consistia em limitar a vida de quem chegaria aos 80 anos com uma injeção que paralisava lentamente todas as funções vitais em cerca de 1 mês. Com esse tempo, a pessoa poderia “preparar a sua morte” despedindo de seus entes, entre outros projetos.

As igrejas consideraram “uma ofensa a Deus”, pois só Ele poderia dar a vida e somente Ele poderia tirar. Entretanto, essas se fortaleceram com a procura cada vez maior daqueles que partiriam para conhecer o paraíso. Os ensinamentos bíblicos foram disseminados e aplicados com mais profundidade.

A vida agora tinha data marcada para acabar, todavia as pessoas estavam conscientes de que Deus procurava direcioná-las para o melhor convívio do interlúdio programado. Logicamente, céticos existiam, mas em número bem menor.

Agora me encontro aqui com vista de Nairóbi na janela do quarto. O continente africano mudou muito desde o século passado. Hoje não há fome, guerras e nem qualquer outro mal que dizimava populações inteiras. Todos vivem na plenitude do progresso humano. E aprenderam a conviver com seus erros também.

Uma tela holográfica abre em minha frente assim que calço os meus sapatos de espumite. Já estou ciente do conteúdo. Minha esposa aceitou-o há 2 anos. O selo do governo desaparece aos poucos revelando alguns caracteres em vermelho: “Hoje você completa 80 anos”. Sorrio para depois fechar os olhos. Uma voz suave é propagada por toda a peça:

- Nós agradecemos por todos os trabalhos em favor à humanidade. Seu nome irá para nossos registros globais. A aplicação do decreto C-80 será efetuada dentro de poucos dias.

Abro os olhos e com lágrimas lembro-me de minha saudosa amada e meus dois filhos. Direciono novamente o olhar para a tela e digo firme:

- Sim. Eu sei. Este dia chegou tão rápido.

A voz suave terminava a mensagem com algumas referências aonde deveria me dirigir. A tela desaparecera de minha frente liberando novamente a visão da janela.

Pego minha caneca de chá na cozinha e volto seguidamente para o vidro translucido. Olho fixamente para o horizonte com a seguinte certeza: “A finitude é necessária para se chegar ao eterno”. Tenho mais 1 mês para concluir o que resta.

Chronus
Enviado por Chronus em 10/11/2014
Reeditado em 10/11/2014
Código do texto: T5029495
Classificação de conteúdo: seguro