Um Estranho Mundo - Capítulo II (Revisado)

Nós partimos pela manhã. Rapidamente os Lepare levantaram acampamento, desmanchando suas tendas com uma velocidade impressionante. Desta vez não precisei ir caminhando, Shiri me fez montar em um cavalo junto com ela.

Ela tinha uma justificativa mágica para minha perda de memoria, e me explicou enquanto toda a expedição seguia por uma estrada que, imaginei, descia contornando a montanha.

- Você veio do mundo dos deuses, para além do céu, mas, ao descer aqui, tornou-se mortal, e muito do que você era foi deixado para trás. Sua mágica é apenas uma fração do que seria em Valehala, e suas memorias apenas fragmentos.

Eu fingi concordar, certo que seria perda de tempo, e talvez perigoso, questionar as crenças deste povo. Acreditarem que eu era uma espécie de enviado dos deuses provavelmente era o que me mantinha vivo.

Mas minha amnésia era preocupante e um pouco assustadora. Sem dúvida, resultado da batida da minha cabeça quando caí neste planeta. Sem nada para fazer além de me segurar firme em Shiri, enquanto descíamos a montanha, me vi tentando descobrir os limites de minhas lembranças.

O mais angustiante era não lembrar meu nome, e me vi repetindo mentalmente nomes ao acaso. Marco. Paulo. Gabriel. Nenhum me trazia qualquer lembrança. Curioso que eu pudesse lembrar nomes aleatórios de pessoas, mas não o meu próprio, mas imaginei que era assim que uma amnésia funcionava. Restava-me torcer que aos poucos minha memoria voltasse.

Coisas não específicas eu conseguia lembrar. O que era um carro, um computador, uma nave espacial. Era mais difícil quando tentava situar um local ou época. Eu nasci no século XX? Não, século XXI, tinha certeza. O que eu fazia? Era astronauta, eu supunha, mas nenhuma memoria disto apareceu, exceto do acidente, quando caímos aqui. Eu lembrava de lidar com computadores. Era um cientista, talvez?

A queda no chão me pegou completamente de surpresa, e eu teria gritado se Shiri não tivesse tapado minha boca com sua mão. Por sorte não parecia ter me machucado muito, mas estava completamente confuso.

- Silêncio. Um espectro.

Eu teria perguntado o que ela queria dizer com isto assim que ela tirou a mão de minha boca, mas seu olhar parecia deixar muito claro que eu não deveria falar nada. Em silêncio, ela apontou para uma árvore, talvez três ou quatro metros distante de nós.

Enquanto olhava, percebi que todos os Lepare estavam se afastando de nós, em silêncio, lentamente, cada um em uma direção diferente - Eu não entendi por que só nós estávamos no chão.

Então eu vi alguma coisa sair da árvore, uma espécie de névoa transparente, que começou a vir em nossa direção.

- Os espectros são almas de antigos feiticeiros e homens amaldiçoados, e são atraídos por seres com magia, como nós - Shiri falou rapidamente em um sussurro quase inaudível - tão facilmente quanto podem nos conceder poderes, eles podem arrancar toda a carne de nossos ossos. Não se mova, não fale nada, e concentre-se nele.

Eu estava imóvel como ela havia me dito, olhando fascinado para o espectro. A medida que ele se aproximava, pude ver que parecia uma criatura feita de fumaça branca transparente, que assumia diferentes formas. Quando olhei para Shiri, vi que ela estava de olhos fechados, aparentando estar concentrada.

- Concentre-se nele - ela repetiu, a voz novamente um sussurro - tente fazê-lo entender que não deve nos atacar. Faça isto, senão ambos morreremos.

Eu estava confuso, sem entender o que Shiri queria dizer. Seria outra das superstições deles? Ou estávamos mesmo em perigo como ela parecia acreditar?

Eu fechei os olhos e tentei me concentrar na criatura. O que deveria fazer, tentar transmitir meus pensamentos por telepatia?

De súbito, senti como se algo estivesse me tocando por todo o corpo, e tive uma tontura. Se não estivesse já deitado no chão, ao lado do cavalo, certamente teria caído.

Durou talvez cinco ou seis segundos, e por um instante senti como se alguém estivesse falando comigo, e então a sensação passou.

- Ele está indo embora. Tivemos sorte. Mesmo um enviado dos deuses poderia ser consumido por um espectro. Já aconteceu uma vez.

Eu abri os olhos e vi que Shiri já estava de pé. A nuvem, névoa, o que fosse, estava lentamente se afastando, flutuando no ar, e os outros Lepare estavam retornando, se aproximando de nós cautelosamente.

Aconteceu uma vez? Será que eu não era o primeiro viajante a cair aqui?

- Venha - Shiri disse, estendendo a mão para mim imediatamente após subir em seu cavalo - ainda temos uma longa jornada pela frente.

* * *

Nós seguimos por talvez mais duas ou três horas depois do encontro com o estranho ser que Shiri chamou de um espectro, antes de pararmos para um descanso. Ela explicou que o espectro foi atraído pela minha presente ou pela dela, mas que ainda assim poderia ter atacado também qualquer outra pessoa do grupo, e que todos haviam se afastado para não assustá-lo e fazê-lo reagir.

Eu tentei descobrir um pouco mais sobre os Lepare, mas Shiri não se mostrou tão comunicativa quando o assunto era seu próprio povo - Acharemos alguém para educá-lo sobre nossos costumes, enviado dos deuses. Haverá bastante tempo para isto quando chegarmos a Kioda - Kioda aparentemente era a cidade deste povo, e era para lá que me levavam.

Enquanto comia a mesma comida que os Lepare diviam entre si - algum tipo de carne seca e cortada em pequenos pedaços que não identifiquei, vi que Shiri parecia discutir com outro Lepare. Dao, me lembrei, aquele que parecia chefiar o pequeno grupo que havia me encontrado. Eles pareciam discutir, mas estavam longe demais para eu ouvir o que diziam.

Dao veio então caminhando em minha direção, e eu percebi que ele carregava uma espada em cada mão. Eu lembrava que ele parecia estar do lado de Shiri, quando Koro quis me matar, mas talvez alguma coisa tivesse feito ele mudar de ideia. Eu me levantei, enquanto decidia se deveria tentar lutar ou fugir. Não me pareceu que teria qualquer chance em nenhuma das duas alternativas.

- O que houve? - eu falei, mas Dao não respondeu, apenas jogou uma das espadas em minha direção, e, por reflexo, eu a peguei na mão. No instante seguinte, ele girou a outra espada, quase cortando minha cabeça.

Eu dei um passo para trás, depois outro, enquanto Dao avançava, a espada com a ponta apontando para meu coração.

Eu não sabia se algum dia tinha segurado uma espada, mas certamente não teria a menor chance contra um guerreiro experiente. Como para provar isto, Dao fez uma estocada que por pouco não atravessou meu corpo. No último instante eu me movi para escapar, e a espada apenas raspou em meu braço.

- Pare, Dao, você vai matá-lo - Shiri gritou. Eu percebi que agora todos os Lepare estavam em um amplo círculo ao nosso redor.

- Só se ele não se defender. Levante a espada, humano.

Eu segurei firme a espada em minha mão, e tentei me preparar para o ataque seguinte de Dao. Talvez eu conseguisse acertá-lo em um golpe de sorte, ou pelo menos detê-lo tempo suficiente para Shiri convencê-lo a não me matar.

Eu vi o próximo movimento dele antes mesmo de iniciar. Ele colocou um pouco mais de peso na sua perna da frente, e direcionou o olhar para onde iria mover sua espada.

Eu movi minha espada apenas o suficiente para desviar a sua, e as duas lâminas deslizaram uma pela outra. Quando ele girou a espada para iniciar um novo movimento, dei uma batida com o lado de minha espada em sua perna, para distraí-lo, e ganhar tempo para me afastar.

Seus próximos movimentos foram mais cuidadosos, com um esforço maior para não revelar os ataques antecipadamente, mas para cada um, um ligeiro movimento da minha espada desviada a sua para longe.

Por fim, como se tendo perdido a paciência para a cautela, ele avançou com a espada apontando para meu coração. Desta vez, meu golpe foi direto em sua mão, não com a parte afiada, nem forte o suficiente para quebrar ossos, mas foi suficiente para sua espada voar para longe. No mesmo movimento minha espada continuou seu giro até a ponto encostar no pescoço de Dao.

Dao sorriu, como se não estivesse preocupado por sua própria vida - você estava certa, Shiri, nunca vi ninguém lutar assim. Ele realmente foi enviado pelos deuses.

* * *

Nos três dias que se seguiram, não houve grandes incidentes em nossa jornada. Apenas parecia haver um novo respeito dos Lepare para comigo após terem me visto lutar. Mesmo assim, pouco consegui descobrir sobre este povo, minhas perguntas sendo recebidas com evasivas por parte de Shiri.

As verdadeiras questões que me perturbavam, porém, eu não tinha a quem perguntar. Como eu poderia ser melhor com uma espada que um guerreiro de um mundo primitivo? Quem eu realmente era? Para isso Shiri teria respostas, mas suas fantasias e superstições não me interessavam.

No quarto dia chegamos ao fim de nossa jornada, a cidade de Kioda.

- E então, Rafaeru enviado dos deuses? Impressionante, não? - Shiri parou seu cavalo ao meu lado. A cidade ainda estava distante, mas suas enormes muralhas já eram visíveis.

- Já vi maiores. E é Rafael - eu respondi, forçando o 'l' no final do meu nome. Ainda soava estranho, eu tinha certeza que não era meu verdadeiro nome, mas não quis admitir que ainda não lembrava como me chamava. E eu estava também escondendo minha surpresa, esperava uma pequena vila, talvez meia dúzia de casas - Quantos habitantes?

- O suficiente para defendê-la de nossos inimigos - ela respondeu com uma evasiva, como vinha fazendo nos últimos dias. Depois colocou o braço em meu ombro e me olhou firme - até breve, enviado dos deuses. Eu vou prepará-los para sua chegada. - E Shiri disparou com seu cavalo, me deixando para trás. Era a primeira vez que eu ficaria longe dela desde que encontrei os Lepare. Uma sensação de abandono me fez perceber como sua presença tinha sido importante para mim nestes dias.

Dao se aproximou de mim, a pé, segurando seu cavalo pelas rédeas. Para minha surpresa, ele parecia tão confuso quanto eu.

- Por que ela partiu assim? O que ela lhe disse?

Eu encolhi os ombros, um gesto que já sabia que os Lepare compartilhavam comigo. Depois respondi hesitante, testando as palavras mentalmente, tão acostumado que estava com a voz em minha mente - Chegada. Minha chegada. Avisar. Ela disse.

- Ela disse que vai avisá-los de sua chegada? Por isto quer chegar na cidade antes de nós?

Eu assenti.

- Koro não vai gostar disto.

* * *

Eu cheguei ao pé das muralhas de Kiodo caminhando ao lado de Dao, cercado pelos demais Lepare. Soldados nos aguardavam nos portões da cidade, suas expressões ainda mais severas que de meus companheiros de jornada. Koro havia chegado antes de nós, tendo partido a galope pouco depois de Shiri, mas nenhum dos dois estava visível entre o grupo que nos aguardava.

- O humano virá conosco agora, Dao - um Lepare vestido diferente de todos que havia visto até então, se aproximou de nós. Era o primeiro Lepare que vi usando tecidos em vez de peles, e o primeiro que parecia ligeiramente obeso - Nós o levaremos à audiência com o Rei.

- Koro deixou o humano sob minha responsabilidade, Lorde Gan. Eu o escoltarei até a audiência - enquanto Dao falava, percebi que sua mão repousava sobre o cabo de sua espada. Os soldados de Lorde Gan começavam agora a nos cercar, e eram claramente em maior número, talvez três vezes mais. Estávamos correndo perigo? Não tinha certeza, mas, de repente, ser o único desarmado entre todos ali presentes não fazia eu me sentir nada confortável.

- Você e seus homens serão levados até o segundo palácio, e não falarão com ninguém até chegar lá. Eu escoltarei o humano pessoalmente. - enquanto Lorde Gan falava, eu avaliava a situação, e minha intuição me dizia que Dao fazia o mesmo. Por fim, após alguns minutos de silêncio, ele concordou.

- Muito bem, mas isto não termina aqui, Lorde Gan. Eu tenho minhas ordens, e isto é inadmissível - Dao respondeu, uma fúria mal contida visível em sua expressão, depois se dirigiu a mim - nos despedimos aqui, Rafaeru, mas estou certo que nos veremos novamente.

E assim, foi acompanhado por Lepares estranhos, e que em nenhum momento me dirigiram a palavra ou responderam qualquer de minhas perguntas, que entrei pelos portões de Kiodo e fui levado ao que supunha ser o palácio do Rei. Eu voltei a ter a mesma apreensão em relação ao meu futuro imediato que no primeiro dia em que havia sido preso pelos Lepare.

* * *

As muralhas de Kiodo eram feitas de pedra, com talvez 6 ou 7 metros de altura. Eu não saberia dizer se isto era maior ou menor que uma muralha típica de uma cidade antiga da Terra, mas para mim, parecia bem alto. As casas da cidade, por outro lado, me pareciam baixas, em sua maioria, com apenas um andar. O que eu imaginava ser o castelo do Rei se destacava não tanto pela sua altura quanto pelo contraste com as outras edificações. Talvez, ao todo, ele tivesse 3 andares, o que não me parecia muito para uma cidade daquele porte, mas era largo, e eu não conseguia ver quão comprido ele era.

Eu quase esperava ver um estilo japonês nas construções, o que iria confirmar minha quase certeza que os Lepare, por alguma razão, falavam japonês, mas a arquitetura não parecia com nada que eu pudesse identificar.

Os Lepare não me dirigiram a palavra nem conversaram entre si, e foi em silêncio que me levaram até o palácio. Me acompanharam, também em silêncio, até uma sala com uma única porta, e me deixaram sozinho ali. Eu imaginei que em breve seria levado até a audiência com o Rei, mas fui ficando mais nervoso a medida que ninguém aparecia. Ao mesmo tempo, me perguntava se deveria tentar sair. Ninguém havia me proibido, mas creio que pelo único fato de que ninguém havia sequer tentado falar comigo.

Por fim, depois do que na hora me pareceu um longo tempo - em retrospecto talvez 30 minutos, talvez 1 hora - três guardas entraram, todos com espadas desembainhadas, seguidos por Shiri.

- O que está acontecendo, Shiri? - eu perguntei, mas ela não me respondeu, nem mesmo me olhou, a cabeça abaixada, os olhos fixos no chão. Os três guardas me cercaram. Só então ela falou.

- Se iniciar qualquer conjuração, não importa o motivo, você será morto imediatamente. Da mesma forma, se se mover na direção do Rei ou fizer qualquer ato ameaçador - mesmo enquanto falava, ela não olhava para mim.

- Não estou entendendo, Shiri.

Mas ela não me respondeu, apenas se moveu para o lado dando espaço para outro Lepare entrar, vestido de forma semelhante a Lorde Gan, apenas mais velho, eu supus pelos pêlos brancos, e mais em forma. Ele nada disse inicialmente, nem fez menção de se aproximar, apenas ficou me olhando em silêncio, até que, por fim, falou:

- Por que você veio ao meu reino, forasteiro?

Seria este o Rei? Imaginava que iriam me levar a algum tipo de sala do trono, com pompa e cerimônia. Talvez fosse apenas mais alguém para me interrogar antes de me levarem à audiência. O que deveria responder? A verdade, ou seguir pelas superstições de Shiri, de que os deuses haviam me enviado? Resolvi responder de uma forma que não me comprometesse com um cenário ou outro.

- Shiri acredita que sou um enviado dos deuses, senhor - Shiri repetiu minha resposta na lingua dos Lepare, substituindo 'senhor' por 'alteza', ao mesmo tempo que me lançava um olhar que deixava claro qual o tratamento correto.

- E você nada fez para desfazer esta percepção. - Não era uma pergunta. A voz do Rei era austera, mais grave do que estava acostumado ouvir dos outros Lepare - E o que você diz, forasteiro? Quem você afirma ser?

Eu hesitei, e de súbito me tornei particularmente consciente dos três guardas que me cercavam e de suas espadas desembainhadas. Medi com cuidado minhas palavras.

- Eu sou apenas um viajante de muito longe, alteza, que chegou até aqui por acidente.

- Um conjurador humano que chegou aqui no mesmo momento em que Argenat planeja a tomada de minha cidade? Por coincidência? Seu plano não vai funcionar, espião de Argenat.

- Eu não vim de lá. Shiri, diga-lhe, você conseguiu ver que não sou destes Argenat - Ela não me respondeu, apenas traduziu minhas palavras para o Rei.

- Ela não está participando desta audiência, espião, está aqui apenas como sua intérprete. E ela apenas percebeu que você não fala a língua de Argenat, não que não está a serviço deles. Eu vou lhe perguntar uma última vez. Quem é você, e por que veio aqui?

Minha vida poderia depender de minha resposta, mas eu não tinha nenhuma resposta diferente para lhe dar.

- Eu não fui enviado por ninguém, majestade, nem pelos seus inimigos, nem pelos deuses. Eu sou apenas um viajante de muito longe, que nada sabe sobre seu reino e seus inimigos. Esta é a pura verdade.

- Você está enganado ou mentindo, forasteiro. Eu descobrirei qual dos dois. Para seu bem, é melhor que os deuses o tenham enviado, como Shiri acredita.

Dizendo isto, o Rei se virou e partiu. Shiri olhou uma última vez para mim, e falou, em uma voz quase inaudível - tenha paciência, vai dar tudo certo.

Só quando ela também partiu me dei conta que não ouvi a tradução em minha mente. Ela falou na minha própria língua.

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Ashur
Enviado por Ashur em 14/12/2014
Código do texto: T5069145
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