Os sem nome

Era noite, mas não estava escuro. A lua cobria com seu manto prateado as planícies desertas por onde Ela caminhava. Sozinha. Sempre sozinha, desde que lembrava. Porque o Antes, não existia. Ela era Ela, A-Garota-Sem-Nome (Larissa era um som que Ela lembrava, mas que sumia da mente no mesmo átimo de segundo em que era evocado). E vagava sem objetivo, por noites e mais noites desde que acordara, há muito tempo atrás, em meio a um mundo de caos sem fim. Nele, havia Ela, que era como os outros Sem-Nome, e os Outros, que andavam em bando e tinham aquele cheiro peculiar (Medo, alguma coisa em sua mente lhe dizia que era cheiro de Medo). Mas essa era só mais uma das inúmeras palavras que, hoje, nada significavam para Ela.

Nesse Novo Mundo dividido, enquanto os Sem-Nome vagavam pela noite, os Outros criavam tocas de madeira e se escondiam dentro (casas, eles construíam casas, pequena Larissa) e tinham sempre aquele cheiro quando ela e os Sem-Nome rondavam por perto. Também, pudera, os Sem-nome frequentemente atacavam os Outros, quando os encontravam. Porque os Outros não tinham só aquele cheiro (de Medo, uma voz que já fora conhecida dizia) mas eles também representavam algo precioso nesse Novo Mundo – que ela não sabia que era Novo, pois não tinha história, e nada sabia do tempo de Antes. Os Outros também tinham cheiro daquilo em que a boca salivava (comida, sim eles eram comida, carne, músculos, tendões, dava vontade de mordê-los, mastigá-los), mas Ela nunca os procurava, porque era algo ruim (errado, errado, pequena Larissa, feio, feio, não pode).

Assim, ela vagava à noite em busca de suas presas, as poucas que sobraram num mundo devastado – pelo quê? Ela não sabia. Talvez, ninguém mais soubesse, livros e bibliotecas eram coisas que não mais existiam no Novo Mundo. Era provável que ninguém mais soubesse ler, ou o que significava esta palavra. Só sabiam sobreviver – aos Sem-Nome e aos predadores também modificados geneticamente, que agora rondavam suas cidades e acampamentos improvisados, atacando tanto e tão ferozmente quanto os primeiros.

A-Garota-Sem-Nome, às vezes, sente saudade – não sabe bem do que, nem que é esse o nome que se dá à dor que sente em seu quase translúcido peito. Sem saber, sente falta dos tempos de Antes, apesar de não lembrar-se de nada destes, tão longínquos estão. De dia, quando dorme, vê imagens que não entende, ouve sons há muito tempo perdidos, uma voz (a mesma que se zanga e a chama de má quando fareja os Outros e a boca saliva) que não encontra mais ao seu redor, pois desaparece sempre que acorda.

Só ouve o vento que farfalha, as chuvas, o rastejar dos pequenos sobreviventes neste Novo Mundo árido, a aproximação dos outros Sem-nome (de quem foge, pois estes também atacam outros Sem-nome quando a fome é muita) e o barulho do seu coração, quando se esconde ao nascer de cada dia.

A-Garota-Sem-Nome, assim como todos os Sem-nomes, não sobreviveria ao nascer do sol. Não porque ela seja alguma espécie de vampiro, bebedora de sangue com garras e dentes enormes. Ela é só mais uma das vítimas do vírus, um vírus letal que quase dizimou a vida sobre o planeta. Apenas uma das que conseguiu combatê-lo do organismo após ingerir uma vacina experimental do governo, para tornar-se isso, um ser errante, sem memória e sem controle, com os sentidos extremamente desenvolvidos e com uma sensibilidade altíssima aos raios do sol.

Não, o sol não mataria A-Garota-Sem-Nome (antes Larissa) nem aos outros Sem-Nome. Mas com certeza os enlouqueceria. Porque era muito forte. E porque seus novos olhos, que surgiram após a ingestão da vacina, e agora se encontravam logo acima das sobrancelhas, não tinham pálpebras.

A-Garota-Sem-Nome, que vagava desde Sempre, naquela noite se sentia estranha (Ela estava cansada, muito cansada, mas não tinha palavras guardadas em sua cabeça para saber o que era sentir). E passava muito mais perto do que deveria dos lugares onde os Outros dormiam. Bom, não todos, sempre havia sentinelas para defender a colônia dos Anormais, como os Outros chamavam os Sem-Nome.

Mas, naquela noite, havia algo diferente. Um som doce e triste enchia o ar. E parecia chamar A-Garota-Sem-nome, um dia Larissa, que passou a se aproximar mais do que deveria de uma das colônias de sobreviventes ao vírus, por eles chamado de Maldição. O som nada mais era que o canto de uma mãe, dilacerada pela dor da perda de sua filhinha, repetindo sem cessar uma antiga cantiga de ninar. A mesma que a mãe de Larissa cantara um dia para ela, no tempo de Antes, quando ela ainda era apenas uma garotinha que ia à escola, brincava com as vizinhas e tomava sorvete quando estava calor.

A mãe, sofrida, vê A-Garota-Sem-Nome se aproximar e, talvez pela dor imensa que vem sentindo, não consegue ver uma Anormal. Vê uma garotinha suja e faminta, que vaga sozinha à noite e tem estampado no olhar a súplica que via nos olhos de sua filha quando esta ansiava por aninhar-se em seus braços, após um momento de dificuldade.

A mãe, ainda cantando, estende os braços, como a chamar a menininha para vir aplacar sua saudade ou, quem sabe, acabar com sua dor com seu beijo da morte. E a menininha que, apenas por um instante, lembra que é Larissa e que está com saudade de sua mãe, caminha diretamente para os braços estendidos, mesmo estando ela tão próxima dos limites de um dos abrigos. E, por um breve instante, os olhares – dois olhos normais da mãe, três disformes e aberrantes na menininha – se cruzam, e há um reconhecimento recíproco dos sentimentos que as aproxima.

E então se ouve o tiro. A-Garota-Que-Um-Dia-Foi-Larissa tomba para frente, no instante em que sua pequena boca começava a retorcer-se em um sorriso. A mãe grita e sente o retorno de sua dor, como se estivesse mais uma vez a ver sua filha a ser retirada de seus braços amorosos. O soldado, nada mais que um menino crescido, sacode-a e a chama de maluca. Por que deixou A Coisa se aproximar tanto? Será que ela queria morrer?

A mãe até tenta explicar ao soldado e depois a outros, o reconhecimento que, por instantes, sentiu existir entre ela e a menininha. Mas todos na colônia a ignoram. Afinal, todos sabem que os Anormais não pensam nem sentem, apenas matam, por isso devem sempre ser mortos antes que ataquem. Sempre foi assim e sempre será. Porque a colônia nada sabe sobre o vírus. Porque os que Larissa chamava de os Outros eram também, como ela e os Sem-Nome, um povo sem história.

A mãe continuou sem filha e, agora, sem credibilidade. Por isso, quando um dia acordaram e ela não estava mais lá, tinha pegado suas poucas coisas e sumido no deserto, ninguém estranhou. Para todos, ela tinha enlouquecido. E os Sem-Nome continuaram a ser mortos sempre que se aproximavam da colônia, porque exatamente assim que as coisas eram e sempre seriam.

LIVRO na integra disponivel em

http://www.wattpad.com/story/25717794-sangue-na-lua-e-outros-contos

Sheila Schildt
Enviado por Sheila Schildt em 22/02/2015
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