SÃO PAULO EM 2065.
                                                                                   
Querido Vovô.
 
Onde quer que você esteja, espero que esteja com saúde e muito feliz. Afinal, só pode estar, não é? Afinal, como você mesmo dizia, só fica doente quem tem corpo e só é infeliz quem tem ego. Nada disso você tem mais, então...
 Ah! escrevi isso só por praxe, tentando imitar o jeito de escrever que se usava no seu tempo. Hoje não se escreve mais assim. Você sabe. Simplificamos tudo, até o jeito de escrever. Você lembra. Quando ainda estava aqui com a gente nós tínhamos começado a fazer isso em nossos e-mails, twitters, face-books e outras formas de comunicação que surgiram depois da Internet. Você ficava fulo da vida quando a gente escrevia vç ao invés de você, ap ao invés de apartamento, cs ao invés de casa e por aí afora...
Aliás, Internet, face-books, twitters já são coisas do passado. E-mails então... São mais antigos do que o código morse era no seu tempo. Putz vô. Escrever do jeito que se escrevia no seu tempo é um saco, sabe? É duro até para construir uma frase inteira, usando todas as letras de uma palavra. Como é que vocês conseguiam fazer isso? E onde conseguiam tanto papel para escrever?
Aliás, papel é coisa que hoje não se usa mais. Vi alguns tipos de papel em um museu e achei engraçado que vocês escrevessem naquilo. Agora a gente só usa o tele-imagem, que além de transformar em legendas tudo que a gente fala ainda mostra a nossa cara para que a pessoa saiba com quem está falando. Todo mundo hoje tem um tele-imagem. É bom porque ninguém precisa mais ir á escola para aprender a escrever. Hoje a gente só precisa aprender a falar.
Mas até isso já está ficando obsoleto. Porque a gente já está aprendendo a se comunicar por telepatia. Lembra? O senhor me falava muito isso. Que no futuro as pessoas iam se comunicar através do pensamento. Não iam mais precisar falar nem escrever. Já está acontecendo. Falo com a minha namorada lá em Sidney por telepatia. A comunicação ainda não é muito clara, pois é difícil fazer o sincronismo entre o pensamento dela e o meu. E também é preciso ter cuidado, pois pode não ser muito saudável para a cabeça da gente. Por que se nós emitirmos pensamentos no mesmo intervalo de tempo e eles se chocarem no espaço, podem gerar partículas radioativas que prejudicarão os nossos neurônios. Por isso as autoridades aconselham as pessoas que quiserem usar esse novo meio de comunicação que elas façam um bom treinamento antes.
Sim. As autoridades, o governo, a política. Sei que o senhor gostaria que eu falasse desses assuntos. Lembro-me. Eu era bem pequenino, mas não esqueço o quanto o senhor se aborrecia com os políticos do seu tempo, que eram todos corruptos, mentirosos, aproveitadores e safados. Ah! vô. Lamento dizer que isso não mudou muito não. E também, porque mudaria? Como o senhor mesmo dizia, os políticos são o retrato do seu povo. Eles vêm do povo. A corrupção, por exemplo, está no DNA das pessoas. Sim. Os cientistas já isolaram DNAs de pessoas comprovadamente honestas e criaram um banco de genes. Isso já faz algum tempo. Acho que foi logo depois que o senhor passou dessa para a melhor. Acho que foi em 2028. A ideia era fazer, em um futuro próximo, um Governo (Executivo, Legislativo e Judiciário) só com pessoas honestas, fertilizadas “in vitro” (nem barriga de aluguel eles queriam usar) e criadas em um ambiente isolado, para que não se contaminassem com o ambiente. Mas até hoje isso não vingou. O senhor pode imaginar por quê. Claro, essa era uma ideia de cientistas, e eles, como o senhor sabe, são idealistas sonhadores. Mas dificilmente os políticos deixarão que isso aconteça. Até já aprovaram uma lei proibindo a fertilização “in vitro” e outra para controlar as experiências genéticas.
De resto vô, tudo continua igual. Só o calor e o frio aumentaram paca. Hoje está fazendo 45 graus aqui. No inverno, aqui em São Paulo, chega a 10 graus negativos. Parece a Nova Iorque do seu tempo. Aliás, Nova Iorque, hoje é uma cidade quase deserta. Calor e frio insuportáveis, o mar que já cobriu a maior parte da cidade, resultado do descongelamento das geleiras polares. São Paulo também diminuiu de tamanho, graças a Deus. Menos de cinco milhões de pessoas moram hoje aqui. A moda agora é morar na Amazônia. Por causa da água. Ah! sim. O Tietê, o Tamanduateí e o Pinheiros agora estão tão limpinhos como na época em que São José de Anchieta chegou aqui. Só não tem o mesmo volume de água de antigamente. Por isso a maioria da população do litoral e das grandes cidades do sul se mudaram para a Amazônia.As duas maiores cidades do Brasil hoje são Manaus e Santarém.
Sim. O Anchieta é santo oficial agora, com dia feriado e tudo. E virou o padroeiro de São Paulo.
Aquelas coisas que o senhor falava que ia acontecer com o clima realmente aconteceram. A gente só aguenta por que hoje usamos roupas climatizadas e não precisamos andar mais nas ruas. As cidades são equipadas com esteiras rolantes nas ruas, montadas dentro de tubos de plástico, e os transportes públicos tem ar condicionado. Lembra a Avenida Paulista ás seis da tarde? Agora ela é um enorme túnel de plástico com dez esteiras rolantes em cada pista. As marginais também, e as demais grandes avenidas da cidade. O aero-trem, que aquele sujeito ridículo de bigodinho, toda eleição dizia que ia fazer se fosse eleito já é uma realidade há mais de quarenta anos. A gente roda o centro inteiro de São Paulo de aero-trem.  Aquele montão de automóveis do seu tempo não existe mais. Hoje ninguém mais tem carro particular. Só usamos transporte publico, movido á energia solar ou atômica. Também porque o petróleo já acabou e ninguém usa mais combustíveis fósseis. Mas aquelas eternas guerras que haviam no Oriente Médio, que o senhor achava que eram travadas por causa do petróleo, continuam. Eles agora brigam por causa da água, por causa da religião, por causa de futebol e outras coisas mais. Tudo muda, mas certas coisas sobrevivem para sempre. Uma delas é a estultice do ser humano.(essa palavra ninguém usa mais, mas como o senhor gostava de usá-la, resolvi ressuscitá-la.).
Agora a maior parte das nossas vida a gente passa dentro de casa ou em escritórios climatizados, ou nos shoppings. Sei. Você vai dizer que no seu tempo já acontecia isso. Só que hoje essa é a única forma de viver, pois o clima ficou tão hostil que é impossível andar na rua por mais de dez ou quinze minutos.

Mas não tem só coisa ruim neste ano da graça de Nosso Senhor de 2065. O nosso Coringão ganhou, no ano passado, o seu décimo título mundial. E aquelas malditas torcidas organizadas, que o senhor tanto odiava, por não poder me levar ao estádio por causas das brigaiadas que eles aprontavam, não existem mais. Há uns trinta anos atrás um promotor e um juiz de culhão finalmente tomaram coragem e extinguiram de vez aquele cancro que corroía o futebol brasileiro.
Tchau vô. Estou indo para Sidney, na Austrália, visitar minha namorada. A viagem de São Paulo a Sidney hoje não leva mais que duas horas. Aviões movidos á energia atômica. Fazem cinco mil kilometros por hora. Não estranhe que eu, aos 65 anos, tenha uma namorada do outro lado de planeta. Ir de São Paulo á Sidney, hoje é como ir de São Paulo á Mogi das Cruzes no seu tempo. E sessenta e cinco anos, para nós, é a plena juventude. Nossa média de vida está pelos 130 anos. É paradoxal, não é? Mas a vida é assim mesmo. O velho Charles Darwin já dizia que quanto mais hostil o ambiente se torna para ela, mais ela se aperfeiçoa e se fortalece. Talvez seja por isso que a gente mesmo, ás vezes, vive estragando tudo. Só para poder vencer a dificuldade. O senhor tinha razão. Nós sempre existiremos. Mesmo que a gente viva eternamente tentando se matar.
Até um dia. 
                                                 Em São Paulo, aos 2 de março de 2065.