O Cupim na estação orbital


Este conto foi escrito em co-autoria com Mariana Albuquerque, jovem e talentosa autora brasileira de ficção científica.

O CUPIM NA ESTAÇÃO ORBITAL

Miguel Carqueija e Mariana Albuquerque


Ele era a sombra, num mundo cheio de luzes. O homem de terno marrom, de cabelos brancos e elevada estatura, chegou-se à mesa que ele ocupava sozinho, tomando um chá completo, e observou:
— Como está passando, Harrison?
Ele olhou, fitando o recém-chegado com olhos duros.
— Que faz aqui, Fritz?
— O que eu sempre faço. Com licença.
O Inspetor Fritz puxou uma cadeira e sentou, sem esperar convite.
— O que você quer? — Harrison Rozemberg, o Cupim, foi seco.
— Suponho — disse Fritz, tomando a liberdade de pegar uma das torradas — que você está curtindo a aposentadoria com a sua jovem e escultural esposa.
— E daí?
— Não precisa ser tão desconfiado. Nós lhe devemos alguma coisa.
— E eu não lhes devo nada. E dou graças a Deus por isso.
— Você nos deve alguma coisa, sim, Harrison. Fomos tolerantes, durante muitos anos.
— Os anos em que eu não estive preso, é claro.
— Para nós os seus crimes são coisa do passado. O que nos interessa são as suas habilidades.
— Você quer que eu faça algum trabalho sujo para a Cosmopol. Não, obrigado.
Passou um pouco de geléia de carambola na torrada e acrescentou:
— Vocês certamente têm gente para isso.
— Não coloque as coisas nesses termos. Nossos trabalhos não são necessariamente sujos, e é provável que não tenhamos ninguém com o seu talento.
— Você quer dizer o meu talento de arrombador. Para que mais me quereriam?
— Bem, você tem uma série de predicados anexos...
— Eu sei escalar paredes, congelar imagens de câmaras espiãs... tudo que ajuda um bom arrombamento de cofre. De qualquer forma converge tudo para isso, não é?
— Bem, até certo ponto...
Ele acendeu um cigarro e, enquanto dava a primeira tragada, fitou um pouco o Cupim. Harrison, um homem também alto, cujos cabelos já embranqueciam, de ombros largos e nariz aquilino, atrevido. Um homem que passara a vida desafiando as circunstâncias. Poderia estar cansado de tudo?
— Conte-me logo do que se trata — disse Harrison, pegando a caneca de chocolate.
— É o seguinte. Conhece certamente Jefferson Consorte, o milionário?
— Ele está morando aqui, na estação.
— Os melhores negócios dele estão aqui.
— E o que vocês querem com ele?
— O que você terá de fazer será penetrar na Torre das Indústrias Consorte, no fim-de-semana, abrir o cofre e retirar um documento importantíssimo. Só isso.
— Que documento é esse?
— Isso não é da sua conta.
— Ué, mas se eu vou roubá-lo eu saberei...
— Sem essa, Cupim. Nunca leu Edgar Allan Poe?
— Ah, bom! Está criptografado. — Harrison quase suspirou. Fritz seria burro o suficiente para não saber que nenhum bom arrombador poderia ser qualquer coisa nos dias de hoje sem saber criptografia de cor e salteado? Cinco minutos com o documento e obviamente saberia exatamente do que se tratava. Mas Fritz não era estúpido. Portanto, era bom fingir que não notara.
— É claro. Bem, você terá de penetrar lá e sair de lá, com vida e com o documento.
— E se eu me recusar?
— Veja bem, meu caro. Você curtiu dez anos de prisão, de uma pena de vinte. Mas no dossiê que a Cosmopol possui a seu respeito existem provas suficientes para incriminá-lo por outros crimes, outros furtos. Se você não nos ajudar nós exumaremos o passado suficiente para que o seu futuro seja de mais cadeia... mais uns vinte anos.
— Está bem, Fritz, já sei o que eu perco se recusar. E o que eu ganho se eu aceitar?
— A sua liberdade, é claro.
— Está brincando. Vou arriscar meu pescoço, em detrimento de minha esposa, vou sair do meu retiro, eu que hoje sou um homem honesto...
Interrompeu-se por causa das gargalhadas de Fritz.
— Do que está rindo?
— Ora, essa é boa! Você hoje não rouba porque montou negócios lucrativos com o produto dos seus roubos, usou testas-de-ferro quando foi condenado e hoje vive de rendas, porque nunca gostou de trabalhar. A não ser, é claro, quando se trata de trabalho de arrombamento...
— Esses negócios são honestos, e eu ainda mantenho sociedade...
— Sim, é claro, são honestos. Não falei que não. Mas você os montou com o dinheiro dos seus roubos.
— Eu paguei com dez anos da minha vida, e a existência na prisão não é um mar de rosas, você sabe. E se retive alguma coisa disso tudo, entenda que um ex-presidiário pode morrer de fome, já que todas as portas se fecham para ele.
— E com essa história toda até que você vive à tripa forra. Afinal, Harrison, vai aceitar ou não?
— Você não disse quanto vão me pagar. Não me venha com essa história de liberdade, eu vou ter despesas para fazer o que vocês querem que eu faça. Ou vou ter que pagar do meu bolso?
— A título de ajuda de custo, nós lhe daremos mil créditos para as despesas.
— Isso é uma miséria.
— Você é um homem abastado e nós lhe faremos o favor de anistiarmos seus crimes ainda não punidos. No mais, se encontrar alguma gema preciosa no cofre, pode ficar com ela, mas não roube nada que tenha numeração porque nós não lhe daremos cobertura.
— Está sugerindo que eu volte a ser ladrão para pagar a mim mesmo. Você é da Cosmopol ou é da Máfia?
— Parece-me, apesar do seu sarcasmo, uma troca justa. Ou você acha que Jefferson é um homem honesto, altruísta e acima de qualquer suspeita?
— Deve ser algum tipo de escroque, é claro, aliás, sei alguma coisa sobre ele.
— Harrison, vou repetir a pergunta. Você aceita ou não?
A coisa inteligente a fazer era mandar o Inspetor Fritz para aquele lugar. As suas ameaças eram completamente vazias. Nem mesmo importava se a Cosmopol tinha ou não as provas que Fritz dizia ter. Harrison mantinha um controle rígido de suas próprias atividades. Seu último trabalho, fora o malfadado fiasco que o levara para a prisão, dera-se há pouco mais de doze anos. Os anos da prisão fizeram-lhe bem para os seus prazos prescricionais. A menos que forjasse todo um novo crime (o que era uma possibilidade), a Cosmopol não tinha nada que pudesse segurá-lo.
Mas ele estava entediado e Fritz o deixara curioso.
— Bem, parece que você não me deixa nenhuma alternativa. O que você me diria se eu aceitasse?

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Vicky detestou a idéia, é claro.
— Você vai fazer o jogo desse porco? A Cosmopol não é dona do Sistema Solar e nós podemos pagar os melhores advogados. Não quero que você volte a roubar. Querido, não é justo forçarem-no.
Harrison, recostado no sofá, observava o ligeiro tremor nos dedos da mão direita. Deixara de fumar, graças aos heróicos esforços de Vicky, mas subjazia o tremor como síndrome de abstinência. E isso era algo sério, que ele não quisera contar a Fritz. Não iria comprometer suas antigas habilidades?
Mas se Fritz não sabia, o mesmo não se dava com Vicky.
— Meu amor, você já teve sangue frio para desarmar petardos minutos antes da explosão. Mas isso foi há mais de vinte anos. Pensa que eu não notei que a sua mão treme? A sua capacidade pulmonar também está comprometida, pois você fumou por longos anos.
— Eu sei, eu sei. Estou ficando velho. Sou um incapaz... como é mesmo que eu consigo manter uma leoa como você satisfeita? — Harrison riu, enquanto Vicky lhe mostrava a língua.
— Você vai voltar à Terra, depois de tanto tempo? Lá a gravidade é muito forte, tem os contágios por bacilos e retro-vírus, ainda existem gangs e quadrilhas de salteadores...
— Sim. E bichos que comem a gente, você poderia lembrar.
— Harrison, você não vai ser sarcástico comigo! O que eu não quero é virar algo semelhante a uma esposa de marinheiro, esperando o seu amado voltar e sem saber se ele voltará. Não casei com você para aguentar uma sina dessas. Se você começa a pegar missões da Cosmopol... vão querer que você volte a ser o Cupim, o penetrador, e você pode pagar com a vida.
O pior é que Harrison tinha consciência de que a sua cara-metade estava com a razão. Ele não acreditava em frenologia e portanto não cria ter, em seu rosto (que julgava bastante comum), o biótipo de um gatuno arrombador; mas forças extrínsecas podiam obrigá-lo a retornar para tal vida, ou pelo menos tentar. E não seria fácil dizer “não” à Interpol Cósmica. Aquela gente detinha um poder como nem sonhavam antigas entidades como a KGB, a CIA, a Máfia, a Gestapo, a “Mano Nera”, a Camorra ou a Securidade. Ou seja: uma jurisdição interplanetária.
Esta seria a situação se a proposta de Fritz devesse ser tomada ao pé da letra. Mas Harrison enxergara os furos daquilo tudo. Só tinha que revelar o resto a Vicky.
Ele a abraçou, e murmurou no seu ouvido:
— Querida, a Cosmopol não tem nada contra mim. E eles não se importam se eu tenho tremores ou se não tenho mais o fôlego de antigamente. O plano deles é me matarem assim que eu conseguir o que eles querem. Ou me mandarem para a prisão de novo. É por isso que eles preferem usar alguém que não esteja em sua folha de pagamento, afinal.
— Então por que você vai fazer isso?
— Eu não disse que iria fazer isso.
— Você disse...
— Eu disse a Fritz que não tinha alternativas. E lhe perguntei o que ele me diria se eu aceitasse. Mas em nenhum momento eu realmente me comprometi.
— Mas assim que eles enviarem o depósito à sua conta...
— Todas as nossas contas são conjuntas hoje, amor. Você vai colocar uma condicional no nosso banco, proibindo-o de receber qualquer depósito da Cosmopol. E nós vamos fazer algo que você detesta. Precisamos ter uma discussão bastante séria, daquelas que deixam todas as pessoas em volta envergonhadas, em público. Você precisa deixar bem claro que não concorda com algo que pretendo fazer... mas sem dizer em nenhum momento o que irei fazer.
— Ah. — Vicky sorriu. Suas amigas podiam falar o que quisessem do seu velho e asmático marido. Ela se casara com ele por causa do seu cérebro. E o amava ainda mais em momentos assim. — Tudo bem. Amanhã, você vai me levar no Le Gascon. É chique o suficiente, mas eu detesto aquelas saladas, mesmo...


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Jefferson Consorte limava as próprias unhas enquanto escutava o relatório do homem de cabelos brancos do outro lado da mesa redonda:
— É claro que isto foi uma armação. Harrison pode estar mais velho, mas ainda tem cérebro. Acho que ele preferiu pagar para ver.
— É o que parece. E você pretende denunciá-lo?
— Infelizmente, os roubos pelos quais ele não foi condenado já prescreveram. O ideal seria mesmo a nossa armadilha, levá-lo a tentar um roubo no qual seria inevitavelmente preso. E pela reincidência bem poderia levar mais uns dez anos!
— Afinal, Fritz, por que você tem tanta raiva desse homem... a ponto de me oferecer inúmeras facilidades para entrar no jogo, forjando um documento importante, deixando jóias no cofre... eu que só guardo jóias em bancos?
Fritz ficou muito tempo em silêncio, pensando quanto deveria dizer àquele homem desprezível na sua frente. Era humilhante confessar que perdera muitas chances de promoção porque os seus superiores — no tempo em que ainda trabalhava na decadente Terra, hoje abandonada por boa parte da raça humana — não aceitavam que, como o Sargento Garcia em relação ao Zorro, ele, Fritz, não conseguisse deter os roubos escandalosos do Cupim. E embora tivesse participado da operação final, ficara nela em segundo plano. Se ainda hoje, com todas as dores reumáticas (nem só o Cupim envelhecera) e a faculdade dos filhos para pagar, via-se obrigado a postergar sua própria aposentadoria para aguardar uma última promoção que tardava, e que uma nova captura e condenação do Cupim sem dúvida apressaria...
— Eu tenho os meus motivos — disse por fim. — Mas não desisti. Ainda não dei a minha última palavra...
Embora pouco se importasse com a sorte do Cupim, o milionário Jefferson não pôde deixar de refletir em como a obsessão por vingança envenena e deforma o caráter das pessoas, mesmo indivíduos inteligentes e bem colocados como o Inspetor Fritz.
Miguel Carqueija e Mariana Albuquerque
Enviado por Miguel Carqueija em 19/04/2015
Reeditado em 19/06/2019
Código do texto: T5213197
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