O Aniversário de Iayra

<<Este conto foi escrito para minha mãe um dia antes do dia do aniversário dela. Foi um presente que fiz para ela.>>

Mara se assustou ao ver uma desconhecida abrir a porta; uma moça pequena, delicada, aparentando uns catorze ou quinze anos. As duas se olharam com espanto, a estranha foi a primeira a falar:

“Eu sou Dyra,” falou a jovem de cabelos pretos,” sou estudante de doutorado. Sua mãe é minha orientadora. Orientadora e amiga. Já vi fotos e vídeos seus, você é Mara, a filha dela, não é? Por favor, entre.”

Mara, uma bela mulher de cerca de quarenta anos, fez que sim.

A mãe de Mara se chama Iayra. Uma famosa bioquímica especializada no estudo do envelhecimento. Ou da juventude – é a mesma coisa. Alguns acreditam que Iayra está na iminência de ganhar o prêmio Nobel.

“Você veio para o aniversário de Iayra, não é?” disse Dyra.

Mara fez sim com a cabeça.

“Onde está minha mãe?” perguntou ela.

“Ela saiu, deve voltar logo. Quer que eu carregue?” disse Dyra, apontando para uma sacola que Mara carregava.

“Não, obrigada, é leve,” disse Mara, sorrindo.

Mara percorreu a mansão de sua mãe enquanto observava a beleza dos objetos. Dyra a levou até uma sala e a fez sentar em um confortável sofá. Mara se sentou abraçada com a sacola, Dyra se sentou na frente dela.

“Você conhece minha mãe há muito tempo?” perguntou Mara.

“Uns cinco anos,” respondeu Dyra. “Eu ainda não tinha terminado a graduação. Nós nos damos muito bem, pra mim, sua mãe é como se fosse minha mãe. Nós estávamos falando sobre a minha tese, alguns detalhes que ela queria que eu ajustasse, quando de repente ela recebeu um telefonema e teve que sair um pouco. Por isso eu estou aqui, tomando conta da casa. Acho que ela vai voltar logo.”

“Você também pesquisa gerontologia?” quis saber Mara.

“Claro, senão sua mãe não estaria orientado minha tese,” disse ela.

“Que estranho. Desculpe, não quis ofender, mas é que você parece tão jovem para se interessar por velhice,” disse Mara, com expressão interrogativa.

“Eu não sou tão jovem quanto pareço,” disse Dyra, com olhar sério.” Além disso, se só pessoas de idade muito avançada se interessassem por gerontologia, haveria pouco tempo para se concluir esses estudos, não acha?”

“Tem razão, Dyra,” disse Mara, sorrindo.” Acho que falei besteira. É que pensei: minha mãe faz 101 anos hoje, é natural que se interesse por esse assunto, mas uma jovem quase saindo da infância, me pareceu estranho, mas é bobagem minha.”

“Sua mãe não era muito mais velha do sou agora quando iniciou esses estudos,” disse Mara.

“Acredito que não,” disse Mara, sem ousar perguntar qual a idade exata de Dyra.

Se Dyra quisesse contar sua idade, já teria feito isso; perguntar diretamente seria rude, certamente pensou Mara.

“Ela, vocês, já conseguiram algum resultado prático?” perguntou Mara.

“Prático?” perguntou Dyra.

“Você sabe, rejuvenescimento, essas coisas,” disse Mara.

“Estamos obtendo resultados interessantes com tecidos in vitro e também com modelos animais. Se tudo der certo, em breve, poderemos iniciar alguns testes em humanos. O futuro é bastante promissor.”

Uma suave música sai da roupa de Dyra. Ela faz um gesto para Mara esperar e troca breves palavras por um celular que tira da roupa.

“Sua mãe vai demorar um pouco,” disse Dyra, guardando o celular.” Eu não disse que você estava, porque achei que talvez você quisesse fazer uma surpresa.”

“Pensou certo,” disse Mara.” Quero mesmo fazer uma surpresa para minha mãe.”

“Você sempre faz surpresas para ela?” pergunta Dyra.

“Às vezes,” disse Mara.” A verdade é que ela gosta de fazer surpresas muito mais do que eu.”

“Que família interessante a de vocês,” disse Dyra, sorrindo.” Mãe e filha, brincando de surpreender uma a outra. Me conte uma coisa, Mara: ela já ter surpreendeu muitas vezes?”

“Ela tenta,” respondeu Mara, também sorrindo,” mas eu sempre descubro tudo antes.”

Um momento de silêncio típico de estranhos que não tem o dizer um para o outro deixa o clima levemente desagradável.

“Ano passado, a surpresa que você fez foi outra,” disse Dyra, com certa hostilidade.” Foi o contrário, não foi?”

“Como assim?” perguntou Mara, intrigada.” Do que você está falando?”

“Ano passado você disse vinha no aniversário da sua mãe, e não veio,” disse Dyra, com frieza.” Uma surpresa, desagradável, mas uma surpresa. Hoje, você aparece de surpresa, sem contar pra ela, e não quer que eu diga nada.”

“Ano passado não pude vir,” disse Mara, angustiada.” Minha mãe te contou isso?”

“Ela me conta tudo, somos muito amigas,” disse Dyra.” Ela ficou muito magoada, sabe? Oitenta anos, e a própria filha não aparece e nem sequer dá um telefonema.”

“Eu não pude,” disse Mara.” Não pude mesmo. Se ela te conta tudo, deve ter te contado que já fez isso comigo também.”

“Então foi um tipo de... vingança?” perguntou Dyra.

“Não,” disse Mara,” o que eu quis dizer é que muitas vezes ela não apareceu no meu aniversário.”

“Sabe, Mara,”disse Dyra, com algum cinismo,”essa história é bastante estranha. Conforme sua mãe me contou, ela sempre trabalhou em casa; tinha um laboratório no quintal de vocês, a poucos metros da casa. Não sei como ela poderia ter faltado a algum aniversário seu.”

Mara esperou a hostil moça se acomodar na cadeira antes de responder.

“Minha mãe não deve ter te explicado como era a rotina dela, Dyra,” disse Mara, calmamente. ”Não adianta nada trabalhar a poucos metros de casa, e não aparecer nunca, ficar dia e noite pensando só em trabalho. É quase o mesmo que trabalhar longe.”

“Bom,” disse Dyra,” acho que pelo menos ela deve ter compensado a falta de quantidade de tempo que passava com você com qualidade. Não foi assim?”

Mara ficou muito séria.

“Qualidade nunca pode substituir quantidade, ”disse Mara, olhando firme para Dyra. ”Quantidade é qualidade. Um dia, quando tiver mais experiência de vida, você vai entender isso.”

“Que falta de educação a minha!” disse Dyra, em tom nervoso. ”Me desculpe, por favor! Esqueci de te oferecer alguma coisa para beber. Sua mãe tem aqui quase todo tipo de líquido que o ser humano já teve a ideia de beber. Por favor, peça o que quiser.”

“Se você tiver chá gelado, eu adoraria,” disse Mara.

Dyra foi até a cozinha e voltou empurrando um carrinho com copos de vidro e uma mistura de chá mate com mais alguma coisa. Ela serviu as duas, e se sentou.

“Você está certa, Mara,” disse Dyra,” certíssima; qualidade não substituí quantidade. Isso vale pros relacionamentos que temos na vida, e também pro trabalho. Acho que sua mãe achava que a pesquisa dela precisava de grande dedicação, senão poderia não levar a nada. E ela pode ter exagerado, ido longe demais. Ela devia ter se dedicado mais à família.”

Mara colocou o copo na mesa e seu olhar pareceu vago e distante. Olhos de quem está vendo o passado.

“Eu me lembro que ela nunca estava presente, mesmo trabalhando em casa, ”disse Mara. ”Ficava lá no fundo, com a equipe dela. Não adiantava eu bater na porta, ela nunca atendia. O único jeito era telefonar – já pensou ter que telefonar para a própria mãe, que mora na mesma casa, pra conseguir falar com ela?”

“É uma sensação de abandono horrível,”disse Dyra, com expressão de sofrimento. ”Mara, eu falo assim, de modo pessoal, porque tive problemas parecidos na minha família. Conheço o seu sofrimento. Mas lembre que também conheço a sua mãe a fundo, e garanto uma coisa: ela sofreu também. Sofreu muito.”

“Então por que continuou?”disse Mara, revoltada.”Por que não mudou de atitude? Ela tinha dinheiro, não precisava fazer aquilo pra viver. Ela podia ter se dedicado menos àquele laboratório, e mais à própria filha.”

“Mara,”disse Dyra, assustada,”eu sei que é difícil entender, mas o trabalho de Iayra é muito importante – muito importante pra todos. Ele vai permitir que as pessoas vivam mais tempo, e possam ficar mais tempo junto de seus familiares. Se ela não tivesse se dedicado tanto, talvez não vivesse o bastante para conseguir avançar tudo que avançou.”

Dyra pegou na mão de Mara e olhou em seus olhos.

“Acredite em mim: todo o sofrimento e vazio que você passou não foram em vão. Sua mãe, eu, toda a equipe dela, estamos quase chegando ao ponto em que teremos aplicações práticas das descobertas de Iayra. Vai ser logo, muito antes do que você pensa.”

Mara relaxou e soltou a mão de Dyra.

“Desculpe se fui agressiva,” disse Mara, com um leve sorriso.”Você não tem culpa de nada que aconteceu na minha vida. É que toda a minha infância passei procurando minha mãe. Procurando de verdade, não é modo de falar. Nós morávamos em uma imensa mansão – uma mansão tão grande quanto esta. Eu procurava ela por todos os cantos, todos os lugares onde eu sabia que ela não estava. Era surreal – mas não de uma maneira mágica ou divertida; era bizarro, triste e deprimente. Com o tempo, criei a fantasia que nós estávamos brincando de esconde-esconde.”

“Esconde-esconde?”exclamou Dyra, surpresa.

“Isso mesmo. Esconde-esconde. Eu imaginava que ela podia estar escondida em algum canto da casa, e uma hora eu ia encontrar minha mãe, ela ia rir, correr pra mim e me abraçar. Mas isso nunca aconteceu. Até hoje tenho essa sensação: que ela está se escondendo de mim. Ela continuou se escondendo de mim até hoje. Acho que minha mãe passou toda a vida se escondendo de mim. Hoje mesmo, quando entrei nesta casa e vi que ela não estava, pensei que talvez ela estivesse em algum canto, me observando.”

“Uma curiosa fantasia infantil, sem dúvida com raízes na verdade. Mas, Mara, me diga uma coisa: ela se esconde e você procura, sempre foi esse o padrão? Ou talvez de vez em quando vocês invertessem os papéis?”

“Como assim?”perguntou Mara, surpresa.

“Você também foge dela,”disse ela, em tom de censura.”Ano passado sua mãe fez cem anos. Ela queria toda a família reunida, ela chamou todos. Quem ela mais queria que viesse era você. Mas você não apareceu. Nunca vou esquecer a decepção no rosto dela.”

“Eu tive problemas,”disse Mara, secamente.”Problemas pessoais.”

“Problemas? Claro!”disse Dyra, em tom cínico.”Você tem problemas, sua mãe tem problemas, todos têm problemas, mas a questão é que ninguém pensa nos problemas dos outros: só nos próprios. Sua mãe também tinha problemas, também sofria quando não podia ficar com você, mas isso não importa, não é?”

“Eu acho que você não tem nada a ver com isso!”disse Mara, irritada, se levantando da cadeira.

Dyra se levanta nervosa, parecendo quase em pânico.

“Desculpe!”diz ela em tom de súplica angustiada.”Eu passei do limite, eu não tenho o direito de julgar você, de jeito nenhum, me desculpe de verdade.

A suave música sai das roupas de Dyra de novo. Ela se afasta alguns metros de Mara, fazendo sinal para que espere. Mara se acalma um pouco e senta na cadeira. Dyra então cochicha alguma coisa no celular, volta para perto de Mara, sorri e se senta.

“Sua mãe vai demorar um pouco,” diz Dyra, sorrindo.”Ainda temos tempo para conversar.”

“Eu tive um filho, a cinco anos,”disse Mara.”Minha mãe nunca viu meu filho. Nunca.”

“Os últimos cinco anos foram os mais difíceis para Iayra. Muito progresso estava sendo feito, ela estava chegando perto de desenvolver uma tecnologia nunca vista, que pode mudar tudo. Mas este anos as coisas ficaram mais calmas. Você vai ver, depois do dia de hoje, tudo vai ficar bem entre vocês. Ela vai adorar conhecer o neto.”

“Isso nunca vai acontecer,”disse Mara, fazendo não com a cabeça.

“Por que não?”disse Dyra.

“Por que ele morreu. Morreu ano passado. Um dia antes do aniversário dela. Por isso eu não pude vir: eu estava enterrando o meu filho.”

Um grande silêncio gelou a sala.

“Eu não sabia,”disse Dyra, como pedindo desculpas.”Iayra nunca me contou nada.”

”Tudo bem,” disse Mara, pegando nas mãos de Dyra,”a culpa não é sua.”

”Eu não devia ter falado nisso,”disse Dyra, parecendo nervosa.”Ela nunca me contou nada. Sua mãe não sabe?”

“Não sei,”disse Mara, calmamente.”É esquisito dizer, mas não sei. Eu tentei contar pra ela muitas vezes, mas ela só grita e reclama, não ouve. Acho que ela não sabe. Ou talvez saiba e não se importe.”

“Ela não deve saber, senão teria me contado,” disse Dyra, fazendo que não com a cabeça. “Ela me conta tudo: sobre a família, os amigos, o que passa pela cabeça dela. Acho que Iayra não entendeu o que aconteceu. Eu a conheço como cientista, orientadora e amiga, não como mãe. Agora vejo que ela tem um lado muito desagradável: uma mãe fria e insensível. Uma mulher monstruosa, que colocou a ambição acima de tudo e de todos. Você deve odiar sua mãe – com toda a razão.”

“Não é assim,” disse Mara, se ajeitando na cadeira e fazendo não com a cabeça,” as coisas não são bem assim. É verdade que ela deu menos atenção do que devia à família; é verdade que foi fria e insensível. Mas sinto que ela entrou por um caminho que no início foi sua escolha, mas depois acabou virando uma via sem retornos, muito difícil de ser evitada. O que eu acho é que ela tentou sair desse caminho inúmeras vezes, mas não teve forças para isso - ela tentou mudar, mas não conseguiu”

“Ela não conseguiu mudar; ela não teve forças,” disse Dyra, revoltada. ”Pra mim, isso tudo é desculpa de gente fraca – não justifica nada. Mara, me responda uma coisa: você odeia sua mãe?”

“Eu amo minha mãe,” disse Mara.

“Como?” disse Dyra, surpresa. ”Como pode amar alguém assim? Alguém sem sentimentos, que não ama a própria filha?”

“Ela me ama. Vou te contar uma história. Uma vez, quando eu tinha dez anos, descobri um site que vendia bonecas artesanais. Bonecas artísticas, que imitavam as antigas. Mostrei pra minha mãe, nós ficamos olhando as bonecas, uma mais bonita que a outra, até que vi uma que me encantou. Era um combo formado por duas bonecas – mãe e filha. Adorei as duas, mamãe também gostou muito. Ela comprou as duas, me deu a boneca da mãe de aniversário, e disse que ia ficar com a outra pra ela. Assim nós íamos ficar sempre juntas. Fiquei muito feliz em ver que ela se importava comigo, queria estar sempre comigo. Que ela me amava.”

Dyra pegou o copo da mesa e tomou um gole de chá. Ficou uns momentos em silêncio, séria, até que perguntou:

“O que aconteceu com as bonecas?”

Mara abriu a sacola, que estava do seu lado, e de lá tirou uma boneca tamanho grande.

“Eu ainda tenho a minha,” disse Mara.” Veja!”

Mara praticamente enfiou a boneca nas mãos de Dyra à força. Dyra olhou por alguns momentos para aquele belo objeto artesanal, uma verdadeira obra de arte. Depois devolveu com todo o cuidado, parecendo ter medo de causar algum dano à boneca.

“Onde está a outra?” perguntou lentamente Dyra.

“Minha mãe jogou fora,” disse Mara.

Dyra pareceu ficar chocada.

“Jogou fora?” disse Dyra, nervosa e revoltada.” Tem certeza? Talvez ela só tenha esquecido a história toda, e a boneca ainda esteja por aí.”

“Ela jogou fora. Eu vi. Uns três meses depois do meu aniversário, vi minha mãe amontoando um monte de coisas pra jogar no lixo. Lá embaixo da pilha, estava a boneca. Tentei falar com ela, dizer que ela não devia jogar fora a boneca, mas ela não entendeu nem uma palavra do que eu disse. Ela dizia que era tudo um monte de porcarias, um lixo que não valia nada. Fiquei tão chocada por minha mãe ter esquecido o significado daquela boneca que desisti; não tirei a boneca da pilha de velharias, deixei ela ser jogada fora como se fosse nada.”

O celular de Dura toca de novo. Ela se afasta um pouco e conversa com alguém em voz muito baixa, inaudível.

“Era um amigo da sua mãe,” diz Dyra, nervosa. ”Ele disse que vão dar uma festa surpresa pra ela, daqui a pouco. Não vai ser aqui. Vai ser na casa dele. Chamaram ela, deram uma desculpa qualquer. Quer dizer que ela não vem pra casa hoje. Eu não fui convidada. Você pode ir até lá, fazer uma surpresa, ou dormir aqui, esperar ela chegar amanhã. Ou, se quiser, fazer outra coisa.”

“Outra coisa?” disse Mara, calmamente.” Que coisa?”

“Se quiser, você pode ir embora,” disse Dyra, séria.” Você não é obrigada a ficar, se não quiser.”

“Ir embora?” exclamou Mara, espantada.” E não ver minha mãe, no aniversário de 101 anos dela?”

“Eu pensei que sua mãe fosse uma boa pessoa,” disse Dyra, parecendo cansada Mas agora, depois de tudo que você me contou, vejo que eu estava enganada: ela é fria e insensível. Uma mulher que só serve para trabalhar em laboratório. Desculpe dizer, mas ela não presta como ser humano. Não merece ter tido uma filha.”

Mara ficou olhando uns instantes para Dyra sem responder. Um sorriso vago e indecifrável se desenhava sutilmente em seus lábios.

“Não quer ouvir o final da história da boneca?”perguntou Mara de repente.

“Pensei que tinha terminado,”disse Dyra, espantada.

“Não. Não ainda,”disse Mara, lenta e pausadamente.”Um mês depois, encontrei minha mãe no quarto, procurando algo feito uma desesperada. \Ela revirava tudo, e acabou transformando o quarto em um completo caos. Não achou nada, e acabou fazendo a mesma coisa no resto da casa. Ela começou a falar coisas, e entendi que ela estava procurando a boneca. Então percebi que ela havia jogado a boneca fora sem querer – não foi de propósito. Ela se sentou, e pareceu tentar lembrar onde estava a boneca. Eu podia ter dito que vi ela jogar fora, mas não disse. Não quis que ela ficasse triste. De repente, ela foi pro quarto, pegou o notebook e ficou olhando alguma coisa. Quanto mais olhava, mais ela parecia irritada e frustrada. Desconfiei que devia ser o site onde tínhamos comprado as bonecas. Foi pro meu quarto e entrei no site para ver o que ela estava vendo. Esgotado. O combo com as bonecas mãe e filha estava esgotado. Elas não seriam mais fabricadas, o artesão descontinuou esse modelo. Nem as fotos estavam mais lá. Alguns dias depois, vi uma boneca no quarto de Mamãe. ”

Mara pegou a sacola onde estava a boneca mãe e tirou de lá um pacote de cor amarela.

“Quero que você veja o presente que eu trouxe pra ela,” disse ela, mostrando o pacote para Dyra.

“Eu?” disse Dyra, surpresa. “Não, o presente é da sua mãe, ela é que tem que abrir.”

“Você parece saber tudo sobre minha mãe,” disse Mara séria. ”Deve ser mesmo a melhor amiga dela. Quero que você veja o que tem nesse pacote. Por favor, é importante.”

Dyra abre lentamente o pacote, tentando não rasgar o papel, e descobre que o presente é uma boneca. Uma pequena boneca.

“A boneca nova que minha mãe comprou era um pouco parecida com a minha, a boneca mãe, mas totalmente diferente da boneca filha. Minha mãe me viu olhando a nova boneca e sorriu – um sorriso constrangido e estranho. Depois abraçou a boneca. Ela estava mesmo tentando me fazer acreditar que era a mesma boneca, mesmo sendo muito diferente da outra. Mamãe sempre foi assim: sempre que acha que realidade é demais para mim, ela faz de tudo para me proteger, me poupar. E o método favorito dela é separar a realidade de mim com um véu de ilusão. Nunca deu certo. Eu sempre consegui ver através dos truques dela. Sempre.”

Mara se aproximou de Dyra, talvez porque histórias de família as vezes são melhor compreendidas se contadas de perto.

“Mamãe deve ter pensado que a boneca filha original estava perdida para sempre,” diz Mara. “Mas não estava. Não estava porque eu tirei fotos – muitas, muitas fotos. Guardei os arquivos das fotos por anos. Nunca mostrei pra ela. Não sei porquê. Este ano, resolvi mandar fazer uma réplica da boneca. Ficou perfeita. Decidi que esse seria o presente de aniversário dela. – o presente de 101 anos de minha mãe.”

Lágrimas escorrem pela face de Mara. E também pela de Dyra. Mara se aproxima, segura Dyra pelos ombros, olha em seus olhos e diz:

“Feliz aniversário, Mamãe. Eu te amo.”

As duas se abraçam e choram.

Você acaba de ler uma conto de Ricardo de Lohem. Escrevi esse conto como presente de aniversário para minha mãe no dia do aniversário dela.

Comentem e, se gostarem, recomendem.