Aprendiz de feiticeiro

Eu fui um promissor aprendiz de feiticeiro. Tinha tudo para entrar na congregação dos Elderes. Os próprios mestres comentavam que em vinte cinco a trinta anos certamente seria um de seus pares. E hoje, faço pequenos reparos mágicos. Conserto televisões, eletrodomésticos e carburadores.

Meu primeiro intercâmbio de magia foi a causa do meu fracasso. As coisas começaram a dar errado com a relutância dos duendes em aceitar um estudante estrangeiro em seu mundo. Eles são universalmente conhecidos por sua xenofobia. Mas os mestres magos de Nova Lemuria também são conhecidos por sua diplomacia e persuasão. Eles me asseguraram que com apenas seis meses no planeta dos duendes eu conseguiria um aprendizado inestimável principalmente sobre ervas e poções magicas. Eu me senti honrado pelos mestres se empenharem tanto por essa oportunidade que não era oferecida a qualquer um, principalmente quando tínhamos quarenta e nove aprendizes só no nosso monastério na capital norte de Nova Lemuria. Como disse, não era uma oferta de pouca importância.

Usando o caminho de um buraco de minhoca, ou mais tecnicamente, as correntes iônicas cósmicas, em apenas quinze dias, minha pequena nave aportou no planeta dos duendes. Escolhi a base de uma colina a poucos quilômetros de distância da Vila Real. Pousei entre algumas rochas, deixando a nave quase oculta. Não seria vista exceto chegando bem perto. Assim teria um refúgio se quisesse ficar um pouco sozinho. Logo que desci da nave, com o sol quase se pondo, percebi que não teria mais de uma hora até o cair da noite. Já havia resolvido descansar e só ir à vila na manhã seguinte quando um ruído na face encoberta da colina me chamou a atenção. Demorei alguns minutos para chegar ao topo e então pude observar uma grande quantidade de turfes que saía por um portal ao lado de uma grande casa de madeira, de aproximadamente cem metros quadrados, cercada por uma muralha de pedra de um metro e meio de altura, com ameias e torres nas quatro extremidades.

Já ouvira falar desses pequenos coelhos, mas nunca vira um pessoalmente. São agradáveis de serem vistos; mansos, fofinhos e de uma brancura imaculada. A textura de sua pele é deliciosa ao tato. Imagine então, meu horror ao presenciar um genocídio, ou melhor, um turficídio. Um batalhão de duendes atirando como se fosse tiro ao alvo. A pele alva dos turfes sendo tingida de vermelho pelo seu próprio sangue. A matança devia estar ocorrendo a bastante tempo, visto a quantidade de corpos que rodeavam a fortaleza. É impossível precisar quantas vidas se perderam naquele local. Os turfes são uma espécie inteligente porém de raciocínio primitivo e ingênuo. Apesar de quase nenhuma tecnologia, conhecem rudimentos de magia. O desconhecimento das armas dos duendes (simples armas de fogo, com projéteis impulsionados por explosão de pólvora, coisa muito antiga, obsoleta) impossibilitava sua defesa. Qualquer aprendiz de feiticeiro sabe das leis básicas da magia. Lei XXXll: a magia só será eficaz com o conhecimento dos componentes envolvidos. Alguns turfes até tentaram usar magia mas conseguiram apenas queimaduras.

É claro que me lembrei de imediato das palavras dos mestres, “não interferência e todas essas bobagens que só tem valor fora do contexto”. Queria ver quem iria manter sua filosofia não intervencionista estando frente a frente com uma carnificina como a que estava acontecendo. Também me recordei de cuidados a serem tomados em casos semelhantes, principalmente o completo conhecimento das argumentações contrárias. Não havia muito o que analisar. Os turfes, pacíficos e desarmados, estavam sendo dizimados por uma horda de duendes. Mesmo não querendo ser preconceituoso, só um cego não perceberia a sanha assassina nos olhos dos duendes. Da minha posição era possível vê-los em seu andar apressado e desajeitado com a cabeça enorme e disforme para a sua pequena altura, pendendo como se fosse cair. Sua pele esverdeada e áspera inspirava asco. Algo precisava ser feito sem demora. Raciocinei por alguns instantes e decidi. Primeiro tentei passar uma mensagem telepática de “umidade” e “molhar” aos turfes e logo tive a confirmação do efeito da magia, pois os tiros começaram a falhar assim que eles conseguiram molhar a pólvora. Logo em seguida conjurei um feitiço de esquecimento sobre os duendes que imediatamente esqueceram o que faziam e, sentados na amurada, ficaram observando os turfes que chegavam sem parar. Com um misto de satisfação pelo dever cumprido e uma pequena e incômoda sensação de “algo errado”, desci a colina em direção a minha nave, enquanto o sol já posto transformava o céu numa batalha de matizes vermelhos. Dormi um sono inquieto. Acordei com o raiar do sol, tão cansado e dolorido que mal prestei atenção à beleza do alvorecer no planeta dos duendes. Tomei um desjejum frugal de alimentos desidratados acompanhado de café e segui em direção à Vila Real. O frescor da manhã amenizou minha caminhada. Segui uma trilha que atravessava um bosque repleto de pássaros e sons matinais. A trilha terminava numa pequena ponte de pedra sobre um riacho raso que margeava o bosque. Saindo do bosque, o sol já alto me fez tirar a túnica de algodão cru que sempre carregava comigo. A estrada seguia por morros e pradarias. Após duas horas de caminhada cheguei ao portal de Vila Real.

Um imenso portal de pedra, esculpido com figuras heroicas e em batalhas, dava entrada à Vila Real. Altas muralhas protegiam a vila em seu interior. Lembrava muito uma vila medieval. Suas ruas eram estreitas, calçada de pedras irregulares com uma canaleta no meio para escoamento da agua. As casas eram de pedra e madeira em sua parte superior. Os telhados de madeira das casas de lados opostos da rua quase se tocavam. Não tive nenhum problema para entrar na vila, devido ao enorme confusão reinante não havia ninguém guardando a entrada. Duendes correndo apressados para todos os lados, mal podia andar sem trombar com um deles. A vila parecia um gigantesco formigueiro. Minhas instruções eram de me apresentar ao Grande Duende Negro, o poderoso lorde da confraria dos feiticeiros livres. Andando atordoado com o burburinho e perdido entre as ruas tortuosas já estava começando a me exasperar quando um pequeno duende de aproximadamente um metro e vinte de altura, cabelos ruivos desgrenhados mal escondidos pelo barrete negro dos feiticeiros, me chamou:

- Senhorr Amphilophio?

- Sim, sou eu, - respondi.

- Me siga porr favorr, o Lorde Negro o espera.

Com alguns minutos rodando pelo labirinto de ruas irregulares, chegamos a uma casa escura de dois andares, com uma porta de entrada pequena que me obrigou a abaixar para poder entrar. Demorei alguns segundos para que minha visão se acomodasse ao interior escuro. O cheiro de ervas, e principalmente incenso era bastante acentuado. Um velho duende, com a pele verde escura e encarquilhada, que não parava de mexer em poções e misturas, falou sem sequer se virar:

- má hora, senhorr Amphilophio, má hora. Não poderr atenderr agora, voltarr outra hora.

- mas senhor, eu vim de muito longe. – tentei argumentar.

- não poderr ensinarr nada, má hora – e com essas palavras o Lorde encerrou a conversa voltando-se ao seu trabalho.

Sentei-me para descansar um pouco quando o auxiliar veio comentar ao meu lado:

- invasão de turfes nojentos. Encontraram portal desguarnecido e quebraram a trava, não podemos fecharr. Já invadiram perto de cinco milhões de turfes de ontem até hoje. Melhor voltarr ao seu planeta. – disse abrindo a porta para que eu me retirasse.

- mas eles não são pacíficos? - Ainda tentei replicar antes de sair.

- são, o problema não é a violência. Eles comem tudo. Até árvores, porr onde passam deixam desertos.

Sai calado. Parecia não ouvir mais o tumulto da vila. O barulho maior estava dentro da minha cabeça. Andando como um zumbi levei o dobro do tempo para voltar até minha nave. Não me lembro de ter feito o trajeto. Programei a nave para o retorno e preferi entrar em crio-hibernação durante a viagem de volta. Assim que aportei em Nova Lemuria soube das novidades. Os Duendes entraram com um pedido à confederação dos planetas unidos de auxílio para uma evasão em massa. O planeta estava morto. Em quinze dias os turfes o exauriram.

Depois que fui expulso do monastério, consegui alugar um quartinho num subúrbio afastado na capital. E então, tem algum eletrodoméstico para consertar?

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 12/08/2015
Reeditado em 12/10/2016
Código do texto: T5343950
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