Supernova

Em oito anos de carreira, acredito que ter entrado em contato com a grande maioria dos “ossos do ofício” sobre os quais tantas pessoas na minha área comentam. Já fui obrigado a encontrar *bugs* em aplicações legadas, um monstro híbrido de Clipper e COBOL. Já fiz plantão na primeira noite do horário de verão monitorando um servidor de banco de dados, à espera de algum problema causado por inconsistências de datas (isso sem contar as várias outras noites em claro: sempre tem alguma pessoa, na China ou na Índia, acessando o servidor quando todos de nossa longitude querem apenas dormir). Precisei, até mesmo, reescrever (em menos de 24 horas!) o código-fonte escrito ao longo de três meses por um estagiário sem a mínima noção de orientação a objetos.

Não, não estou reclamando. Digo, graduei-me para trabalhar com isso. Ora, o que são 10 mil linhas de código que não compilam para alguém que estudou Processos Estocásticos? Não, nada disso… Isso faz parte, há vários outros momentos mais tranquilos, dias em que quase sinto falta de uma rotina mais (como posso dizer?) “dramática”. Não. Resolver problemas faz parte do meu trabalho.

O que eu realmente não suporto, o que realmente me faz vontade de ter seguido outra área, são os poucos fins de semana que visito meus parentes. Sempre tem uma tia pedindo para instalar o joguinho do Facebook no *laptop* (como se isso fosse possível!). Sempre existe um irmão com vírus no PC, e sempre haverá uma impressora que não faz o trabalho dela (quase sempre por estar sem tinta — mas quem se preocupa com isso, não é?).

“Você virou a noite estudando o Integral de Superfície? Então, por favor, veja por que meu teclado não tem cedilha!”

“Decomposição LU? Fantástico! Isso significa que você sabe como abrir aquele vídeo que eu baixei naquele site cujo nome não lembro.”

“Programação Concorrente? Lei dos Amdahal? Então você entende tudo de internet?”

E por aí vai…

Há, porém, momentos bem mais interessantes nisso. Ontem, por exemplo, recebi uma caixinha com dez, eu disse **dez**!, disquetes 3-1/2 da Multilaser com incríveis 1.44MB de capacidade cada! Crianças, pesquisem no Google o significado de “disquete”!

Chegou até mim por meio de um amigo de meu irmão. Disse-me, também, que era extremamente importante que eu resgatasse os dados presentes nesses disquetes, e que, por tudo que há de mais sagrado, mantivesse o conteúdo em sigilo. Pediu-me que evitasse ler, que era um material particular, apenas conferisse se os dados estavam íntegros e os copiasse para um pendrive. Perguntei-lhe se os disquetes pertenciam a ele, mas ele negou: disse pertencerem a uma senhora, ex-professora dele que falecera recentemente.

Não me forneceu mais detalhes.

Por que recuperar os arquivos?

“Por que eu preciso saber a verdade”, foi tudo o que ele me falou.

Bom, que seja. Uma xícara de café e mãos à obra! Espero que esse amigo (esqueci o nome dele) seja suficientemente generoso e resolva pagar pelo meu serviço. Mesmo que eu lhe diga apenas: “Servicinho de rotina, amigo!”

***

Nem preciso dizer o quanto essa tarefa me deu trabalho. Precisei percorrer metade da cidade e visitar um terço dos meus amigos para encontrar algum saudosista com um driver de disquete que funcionasse. Sabe o que foi mais bizarro? Um deles tinha um driver. E era USB! Quando perguntei onde ele arranjara aquilo, recebi como resposta:

“Não pergunte”.

A segunda coisa mais bizarra que ocooreu foi descobrir que boa parte dos disquetes estavam funcionando. Foram bem conservados, pela antiga dona. Todos traziam em seu rótulo um nome, “Gathaspa”, e estavam enumerados de 1 a 10. Não consegui abrir alguns (especificamente os de número 3, 4, 8 e 10). Os demais continham vários arquivos PDF e JPEG, cuidadosamente organizados segundo um padrão adotado por sua dona: um prefixo textual, uma data no formato americano (*aaaa/mm/dd*) e um número, quando havia mais de um arquivo com a mesma data.

Basicamente, quase todos os arquivos JPEG tinham o prefixo “pic”, enquanto os arquivos PDF tinham prefixo “jou”. Suponho que fossem, respectivamente, abreviações para “picture” e “journal”. Acredito que fosse exatmanete este o conteúdo dos arquivos: um diário pessoal, com fotos e anotações. Listo, a seguir, a relação dos arquivos que recuperei, ordenados por data:

* `jou-19861225.pdf`

* `jou-19870223-1.pdf`

* `jou-19870224-3.pdf`

* `jou-19870225-2.pdf`

* `pic-19870225-1.jpg`

* `jou-19870302-2.pdf`

* `jou-19870303.pdf`

* `jou-19870304.pdf`

* `jou-19870216-1.pdf`

* `pic-19870216-1.jpg`

* `pic-19870216-2.jpg`

* `jou-19870217.pdf`

Sim, o arquivo mais recente corresponde a uma anotação de diário com quase trinta anos de idade! Todos, sem exceção, eram arquivos escaneados.

Abri um a um os arquivos nomeados como “pic”; o mais antigo (`pic-19870225-1.jpg`) trazia uma foto de um céu noturno. Uma estrela deve ter chamado a atenção da fotógrafa, pois estava circulada a caneta. Havia uma sigla no rodapé da foto: **SN 1987A (?)**. Segundo a Wikipedia, isso corresponde a uma código astronômico: **SN** é o código para uma supernova, **1987** é o ano em que foi descoberta e **A** indica que foi a primeira supernova descoberta naquele ano. A **SN 1987A** é considerada a supernova mais próxima da Terra, com exceção da **SN 1604** (essa última foi descoberta por Johannes Kepler!). O ponto de interrogação não tem qualquer significado, pelo que eu saiba… Talvez a pessoa que fez a imagem estivesse em dúvida sobre a identidade dessa estrela.

Os outros dois arquivos JPEG mostram fotos da dona dos disquetes. A primeira delas (`pic-19870216-1.jpg`) exibe uma jovem mulher indiana em um aeroporto. Era uma mulher muito bonita, diga-se de passagem: pele morena, cabelos longos e escuros. Ela sorri para a câmera, vestindo um sari cor púrpura e carregando uma mochila a tiracolo. Já arquivo (`pic-19870216-2.jpg`), tirado provavelmente no mesmo aeroporto, trazia essa mesma mulher acompanhada de dois homens: um senhor oriental (à esquerda), talvez chinês, e um outro (à direita) que acredito ser de alguma etnia árabe. O chinês parecia ser bastante velho, tinha cabelos brancos desgrenhados e usava grossos óculos. Já o árabe era mais novo, também usava óculos mas tinha cabelos escuros e uma barba bastante expessa, também escuros. Parecia mais velho que a indiana, porém, ainda assim, bem mais novo que o chinês. Na legenda da foto, apenas três iniciais (“M.”, “G.” e “B.”) e uma data (a mesma do arquivo).

Finalmente, resolvi abrir os arquivos denominados “jou”. Sei que meu, como posso dizer, “contratante” me pediu para não abri-los. Entretanto, fiquei bastante curiosso quanto ao conteúdo desse material. Além disso, eu também queria saber se o material não estava corrompido (copiar o dados não garante que eles estejam correto, de fato).

Todos os arquivos, como sugeri, eram páginas de um diário, um texto manuscrito que a autora resolveu escanear a fim de preservar seu conteúdo. Muitos arquivos, infelizmente, estavam corrompidos: parte do texto não carregou corretamente no meu PC. Além disso, não consegui compreender completamente o que a autora escreveu. Sua letra era bem legível, mas seu inglês parecia conter expressões indianas e regionalismos, os quais não consegui traduzir.

O mais antigo deles (`jou-19861225.pdf`) era datado do Natal de 1986. Apenas algumas anotações, sobre o trabalho dela. Os trechos marcados como “[…]” são partes ilegíveis do texto.

>`[jou-19861225.pdf]`

>[…]

>Nenhuma atividade especial, nenhum sinal no rádio além de um satélite russo. Enviamos uma notificação à aeronáutica, eles que se virem com isso… O Dr. Bithisarea abriu uma garrafa de suco de uva branco, disse para fingirmos que é vinho. Eu trouxe algumas tâmaras e Dr. Broderick trouxe um bolo natalino de chocolate. Foi a nossa ceia, e foi muito boa!

>[…]

>Sinto falta dos meus irmão […]

Então essa é a dona dos disquetes! Uma astrônoma indiana, provavelmente de nome (ou sobrenome) Gathaspa, trabalhando em um observatório saber Deus onde. Mantinha um diário, alguns “recortes” de sua vida. Nada de expecial, até aqui, apenas bastante curioso.

Os próximos arquivos prenderam minha atenção:

>`[jou-19870223-1.pdf]`

>“[…] uma explosão de neutrinos! Dr. Me-li convocou-me assim que os japoneses ligaram. Estamos recebendo uma carga massiva de radiação, vindo do Grupo Local! Sim, nossos vizinhos! Acho que nunca observaram uma carga tão alta de radiação como dessa vez, uma atividade […] emocionante. Parece haver algum ‘evento cósmico’ como os jornais sensacionalistas gostam de chamar. Acho que vamos ver o nascimento de uma supernova […] Todos estão ansiosos e empolgados. O Dr. Broderick telefonou para os EUA, talvez tenhamos uma resposta ainda hoje.

>`[jou-19870224-1.pdf]`

>“Por que os militares insistem em nos ligar? Já dissemos que nada disso tem nada a ver com os russos, os norte-americanos, ou qualquer nação terrestre. Vem do espaço! Alguma estrela morta, a radiação deve estar chegando. Deus, do céu, em alguns dias poderei dizer que vi uma supernova nascer!”

>`[jou-19870224-2.pdf]`

>“Maldito observatório chileno! Detectaram a supernova, há poucas horas […] Tudo bem, ainda temos algum crédito, eu acho. Quem sabe o Dr. Jones nos dará crédito também… Ou, pelo menos, ao Dr. Broderick.

>Em todo caso, podemos afirmar que a estrela **Sanduleak-69o 202**, uma gigante azul, agora está morta e deu lugar à **SN 1987A**. Nebulosa de Tarântula, Grupo Local. Linda! […]”

Meu lado *geek* falou mais alto nesse momento. Me apaixonei pela autora do diário! Pesquisando um pouco mais a fundo, cheguei à conclusão que talvez minha astrônoma indiana trabalhasse na Nova Zelândia, para a equipe chefiada pelo Dr. Albert Jones, a segunda equipe a identificar a **SN 1987A** (a primeira equipe, como ela observou, fora um grupo de americanos trabalhando no Chile, no observatorio de La Campanas).

É uma pena ter perdido parte dos documentos, e uma pena ainda maior não ter todos os disquetes funcionando corretamente. Seria emocionante acompanhar essa descoberta em maiores detalhes. Não é sempre que temos acesso ao registro de todas as emoções desses astrônomos.

Enfim, próximo arquivo:

>`[jou-19870227.pdf]`

>“Dr. Me-li telefonou-me hoje de manhã, disse que era importante. […]

>No laboratório estávamos apenas ele, o Dr. Bithisarea e eu.

‘Talvez seja apenas um erro na leitura dos dados, mas muita coisa não está certa’, ele nos disse, ’Há uma grande quantidade de neutrinos, de fato, como os observatórios detectaram, mas já repararam que parece seguir um padrão? Digo, é como se a radiação chegasse em intervalos não constantes, o que é estranho… Não parece natural.

>Nisso, o Dr. Bithisarea interrompeu-o:

>‘Está sugerindo que algum, sei lá, *ser* do espaço está enviando esses sinais? Nós detectamos a supernova, três observatórios a detectaram, no mesmo dia… É óbvio que isso é natural. Pode ser um erro’

>[…]

>Perguntei se em Las Campanas eles também detectaram isso, mas ele negou. Ou, pelo menos, os astrônomos de La Campanas negaram.

>[…]

>‘Por favor, tratem isso com sigilo. Não quero alarmar Albert nem Ian, eles já está tendo muito trabalho. Quero confirmar isso antes de notificar alguém.’

>Podia ser um erro nos nossos instrumentos, porém os dados pareciam estar corretos […] assustadoramente corretos […]”

Esse último texto me deixou com um frio na espinha. Infelizmente, o próximo arquivo estava severamente corrompido, mas consegui extrair alguma coisa:

>`[jou-19870301-2.pdf]`

>“[…]

>Dr. Bithisarea nos telefonou novamente, apresentando-nos uma séries de estudos, vindos de outras partes do planeta. Os russos também detectaram algo, mas parecem estar mais preocupados com os dados referentes à chuva de neutrinos. Os americanos não se manifestaram, provavelmente nada foi detectado em Las Campanas, ou talvez eles também tratam essa informação como sigilo […]

>Mais cedo, em meu quarto, liguei a TV […] Não fazia sentido, não era um pensamento racional, ri quando pensei nisso […]

>Disse-lhes o que pensei. Achei que também ririam, talvez ríssemos juntos, mas o Dr. Me-li ficou muito sério […]. Dr. Me-li pegou vários livros […] pegou um mapa celeste […] coordenadas […] era um sinal […]”

Coordenadas do quê, meu Deus? A autora desses diários deixou-me atordoado. Me arrenpendo até hoje de ter lido esses documentos. Desde que li os próximos textos, perdi meu sono também:

>`[jou-19870305.pdf]`

>“Não dormi na última noite. Duvido que duma hoje também. O padrão na emissão de neutrinos não foi novamente detectado. Nenhum observatório […]

>Não faz sentido, mas o Dr. Me-li está firme em sua ideia. Dr. Bithisarea parece querer acreditar nele. Eu mesma quero acreditar. Estou tão cansada! Não queria viajar amanhã, por que me envolvi nisso? Por que justo nós, entre tantos cientistas desse planeta, vimos o que nenhum outro viu? Não quero que seja verdade, mas sei que é verdade! A mensagem está clara a todos nós

>[…]

>Deus nos ajude em nossa missão.

E, finalmente, cheguei a relato da viagem. Meu contratante tinha razão em pedir sigilo. Mais razão ainda tinha em querer conhecer a verdade. Eu, pessoalmente, tentarei descobri-la também.

>`[jou-19870310-1.pdf]`

>“Conforme combinado, nos encontramos em frente ao prédio do Dr. Me-li. Eram quase 6h. Seguimos de táxi até o aeroporto, viajaríamos para Sidney e de lá para Addis Ababa. O Dr. Me-li está à frente disso, pagou do próprio bolso toda essa expedição Apenas ele, Dr. Bithisarea e eu. […]”

>`[jou-19870312-1.pdf]`

>“Chegamos ao Aeroporto de Addis Ababa. Estavamos cansados, mas ainda assim excitados. Fiz questão de tirar algumas fotos nossas

>[…]

>Rimos juntos.

>[…]

>O vôo para Axum está no horário, felizmente!”

>`[jou-19870312-2.pdf]`

>“Nos hospedamos numa pousada, a poucos quilômetros da Igreja de Santa Maria de Sião. Dr. Bithisarea foi conversar com algum sacerdote local, com o qual entrara em contato por telefone.

>[…]

>Parece que faz uma eternidade que ele foi para lá!

>Dr. Dr. Me-li está em seu quarto. De todos nós, é o mais sereno. Pode parecer estranho comentar isso agora, mas é como se esperasse pelo que viria a seguir. Como se, toda sua vida, convergisse para esse dia. Talvez todas das nossas três vidas convergiram para o dia de hoje. Sozinha em meu quarto, eu me questiono sobre o que nos trouxe aqui. Pode ser apenas uma coincidência que apenas nós três demos atenção àqueles sinais… E isso, por si só, já me me assusta.”

>`[jou-19870312-3.pdf]`

>“Dr. Bithisarea está de volta, um pouco mais sério que o habitual. Sua conversa não foi produtiva, ele disse.

‘[…] pensei que podia confiar nele, mas acho que deveríamos ter deixado outras pessoas fora disso. Enfim, sejamos discretos nessa cidade, e nada nos afetará, nem *os* afetará.’

>[…]

>Combinamos de nos ver no saguão do hotel em uma hora. Aqui, em meu quarto, olhando para a Igreja, não deixo de sentir um estranho medo. Nunca desejei ser a pioneira em nada, queria apenas fazer meu melhor trabalho possível, e de repente, serei, ao lado de meus dois colegas, a primeira a chegar aqui, a primeira a ter certeza de chegar à Verdade.”

>`[jou-19870312-Adendo.pdf]`

>“[…] ele é lindo! […]”

Ângelo Gabriel
Enviado por Ângelo Gabriel em 15/08/2015
Reeditado em 15/08/2015
Código do texto: T5347567
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