Locus Amoenus

LOCUS AMOENUS

Maurício Coelho

O corpo morno do jovem dançava com a música dos tiros de fuzis. A graveolência de sangue, carne queimada e pólvora penetravam no ar. Dirceu observava a cena com empatia, não porque conhecia o jovem, e sim porque poderia acontecer o mesmo com ele – ou até pior. Tinha que fugir. Sair daquela prisão de concreto chamada Metrópole. Ele se agachou, as luzes do holofote do Zeppelin do Estado quase o capturaram. Os três soldados que mataram o jovem tinham agora tirado as máscaras deles para fumar um cigarro. Dirceu continuou o percurso. Arrastava–se por entre um caminho cheio de lama. Isso não era nada. Dentro de alguns minutos entraria no esgoto. Era a única saída da cidade – ou pelo menos a única saída sem nenhum soldado monitorando.

Faltava pouco agora. Uma pichação – um tanto irônica – escrita em letras garrafais dizia: TO WONDERLAND e uma seta apontando para a entrada do esgoto. Dirceu amarrou um lenço preto no rosto, calçou as luvas de mesma cor e desceu pela toca do coelho. A queda foi brusca, porém só de se ver na estação de esgoto – depois de uma jornada e tanto – esqueceria as dores físicas e emocionais. Ainda não eram motivos para comemorar, entretanto. Ele olhou para as paredes verde limo, até aqui poderia ser lido o slogan do Estado: COMUNIDADE, IDENTIDADE E ESTABILIDADE.

O lenço amenizava o odor do esgoto, porém não totalmente. Tentou não pensar nisso. Ele imaginava, a cada passo, encontrar com sua Marília. Ela fugira no ano passado. Ou foi no retrasado? Enfim. Imaginava agarrado nos braços dela. Ela estava do outro lado. Naqueles campos verdejantes, cheio de flores e animais. Era verdade. Dirceu sabia que existia um lugar assim. Um paraíso na Terra, era como os membros da Resistência a chamavam. Dirceu se empolgou e acelerou os passos. Poderia jurar que ele já sentia o vento fresco no rosto e o cheiro da floresta – mesmo nunca tendo visto uma – cada vez mais próximo de si.

A estação de esgoto se bifurcava. Sem pensar duas vezes dobrou para a direita. Havia decorado o pequeno mapa. E em cem passos ele avistaria uma portinha. Sim! Ela estava lá. Dirceu se ajoelhou. Algo estava errado. A passagem estava bloqueada com grades recentemente fundidas. Dirceu não tinha ferramentas para abri–la. Supostamente era para ela estar aberta. Merda! Tão perto e ainda assim... tão longe.

Ele praguejou. Chutou inúmeras vezes a grade com a sua bota negra – furtada certa vez de um soldado. A grade quase nem se mexeu. Observou através da grade: não havia ninguém por perto. Nenhum sinal de Marília, tão pouco dos outros membros da Resistência. Não poderia gritar. Não poderia voltar. Ou poderia? Escutou passos. Ele gritou. Não! Os passos ecoavam dentro da estação de esgoto e não no lado de fora como calculara. Merda! Duas sombras, e logo atrás dessas uma terceira, projetavam–se no final do corredor. Dois soldados corriam ferozmente na direção de Dirceu.

***

Dirceu acordou com a cabeça latejando. Os olhos mal conseguiam enxergar. Teve a sensação de ter alguns dentes quebrados. Cuspiu sangue. Os soldados com as máscaras de gás o capturaram. Sem dúvidas. Estava preso em uma cadeira em uma sala mal iluminada.

– Você sabe onde você está? Você está no Quarto 101! – disse um soldado. Não teve nem a cortesia de tirar a máscara. – Você realmente achou que poderia escapar? Que ia encontrar um lugar cheio de paz? Oh, meu querido! Eu sinto muito, mas veja, isso aqui não é o país das maravilhas e você não é a Alice, sabe!

Um filete de sangue cor de vinho escorria da boca de Dirceu. Uma mão com luva branca levantou o rosto de Dirceu. Era um médico, talvez. Vestia um jaleco branco. Ele fez um movimento com a mão e o segundo soldado se aproximou carregando uma espécie de capacete. O médico colocou cuidadosamente na cabeça de Dirceu.

– Agora, agora... Não se preocupe. Tudo ficará bem – o médico disse, e ligou o aparelho. Quase instantaneamente Dirceu entrou em estado débil, seus olhos fitavam o vazio.

O segundo soldado retirou a máscara e virou–se para o médico:

– Ele ficará igual aos outros?

– Sim, precisamente. Igual àquela menina que fugiu ano passado. Sorte que nós o pegamos, caso contrário eles estariam mortos. Chama-se lobotomia. É uma maravilha o que a tecnologia faz, não é mesmo? Ele finalmente encontrará o seu lugar ameno.

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"Locus Amoenus" foi publicado na antologia "Maravilhosas Distopias" (Darda, 2015)

Maurício Coelho
Enviado por Maurício Coelho em 08/11/2015
Código do texto: T5441702
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