REVIVER - A história de um viciado

“Meu nome é Francisco, e sou com toda certeza, sem sombra nenhuma de duvida, um viciado!”. - Nunca entendi por que todas as histórias aqui precisam começar assim, mas, é assim que as coisas são.

“Olá Francisco! Obrigado por vir!” - Odeio esta gentileza forçada, mas, faz parte do protocolo antes de eu poder contar minha história. Hoje temos mais de trinta rostos novos, sei que eles nem mesmo imaginam que eu não tenho a opção de não estar aqui... Então simplesmente começo, como sempre faço, pelo início...

“Quando a primeira geração do Telepath foi lançada, ao final do ano de 2025, como todos aqui devem saber, existiam basicamente dois tipos de pessoas: Aqueles que pertenciam a alguma seita estranha e antiga que se recusava a desfrutar das novas tecnologias de extensores cerebrais e, que até hoje sofrem com diversos tipos de problemas para se comunicar, fazer compras, passar em concursos e etc; e aquelas pessoas que assim como eu, estavam doidas para colocar um, mas, não tinham condições financeiras para isso.

Foi neste ano em que comecei a economizar, quem sabe de minha condição financeira atual pode achar difícil acreditar que tive que passar fome para obtê-lo, mas, foi o que fiz. Diminui uma refeição diária, e aquelas que eu fazia eram bastante frugais. Além disso, parei de fumar e abandonei aqueles amigos com quem bebia socialmente. Fiz todos os dias horas extras no trabalho e vendi tudo aquilo o que não me era absolutamente necessário para sobreviver. Passei dois anos sem comprar uma única peça de roupa, ou então um único pack de músicas de que eu tanto gostava.

Eu imaginava que como qualquer tecnologia nova os custos do Telepath baixariam com o passar do tempo, e que os trocados que eu estava economizando seriam suficientes para comprar e instalar o meu extensor, porém, por conta da vantagem competitiva no mercado de trabalho assim como na vida em geral que o aparelho oferecia, um número cada vez maior de pessoas estavam interessadas em ter um, e graças a dificuldade do processo cirúrgico com o qual ele era implantado, o aumento da demanda apenas fez com que os preços subissem até que atingissem os céus.

Fiz as contas usando um papel e uma caneta, sei que é difícil de acreditar nisso, mas, usei mesmo um papel e uma caneta para isso! Concluí que se eu mantivesse meu regime econômico e os preços do extensor cerebral se estabilizassem, eu conseguiria comprar o meu em apenas quinze anos. Eu deveria ficar deprimido e desistir como muitos fizeram, mas, preferi seguir em frente acreditando que receberia a recompensa dos poucos.

Foi por um milagre social que consegui comprar o meu extensor apenas cinco anos após o lançamento, ainda assim, só pude pagar por causa do novo projeto lançado pelo governo para tentar reduzir o desemprego. Na época eu era apenas um operador de empilhadeira e meu gerente avisava todos os dias que meu emprego estava por um fio. Um novo gênio, recém contratado, havia apresentado um projeto de robótica que reduziria as vinte e sete pessoas que trabalhavam comigo à um único operador de painel eletrônico, o único requisito era que este funcionário deveria ter um implante da Telepath. Se eu perdesse meu emprego seria muito difícil conseguir outro, quase não existiam mais vagas ou trabalhos para pessoas que contavam apenas com o cérebro biológico e primitivo, e basicamente, os empregos disponíveis para pessoas como eu não eram muito desejados, principalmente porque pagavam muito mal e assumiam a total inaptidão do contratado, que era por definição de contrato, um peso sendo aliviado da sociedade em troca de redução de impostos.

O plano inicial do Governo era reduzir a carga tributária das empresas que contratavam inteligências nativas, mas, cada vez ficava mais clara e evidente a relação entre o número de novos gênios contratados e os lucros crescentes. Ao perceber isto, as empresas simplesmente pararam de contratar inteligencias nativas e os impostos se tornavam meros detalhes insignificantes da contabilidade. Milhares de pessoas estavam desempregadas, a violência aumentava e a economia beirava um colapso irreversível. Finalmente, os novos gênios do governo decidiram re-equalizar a população, fornecendo o equipamento de primeira geração a todos os que desejassem, mas, que não pudessem pagar por ele, e eu me enquadrava perfeitamente nesta descrição!

Foi em 2030 que eu finalmente deixei de ser um peso para sociedade. Com a ajuda financeira que recebi do governo somada às minhas economias de cinco anos, consegui negociar com a empresa que estava prestes a me demitir e fui equipado com um modelo de segunda geração. Este modelo já possuía as funções novas de administração de memórias, o novíssimo modulo automático de planejamento estratégico, melhorias na integração do pensamento matemático, além das convencionais rotinas de busca, arquivamento e transferência de memórias.

Com o auxilio dos governantes, milhares de inteligencias nativas entraram numa corrida e estavam rapidamente se tornando novos gênios, mas, graças aos meus sacrifícios e as minhas economias eu sai à frente deles. Pessoas como eu, que implantaram o equipamento de segunda geração, rapidamente estavam sendo chamadas pela mídia de Super Gênios, deixando os Novos Gênios morrendo de inveja. Qual era a diferença entre nossos equipamentos além do preço? Simples, eu tinha a opção tão cobiçada por todos: 'Reviver'.

Antes da opção 'Reviver', muitas pessoas esforçadas, que desenvolveram algum tipo de habilidade durante anos de vida, ficaram ricas vendendo suas memórias de treinamento, assim era fácil para qualquer pessoa normal se converter em uma pessoa genial com as funções básicas do extensor cerebral de primeira geração, em apenas algumas horas de Downloads no Acervo Mundial de Memórias e Habilidades Específicas qualquer um poderia adquirir 20 anos de estudos em piano, matemática, física teórica, medicina, etc. As memórias eram injetadas diretamente na parte biológica do cérebro, sem nenhum esforço para quem estava se tornando um novo neurocirurgião, engenheiro espacial ou qualquer outra coisa. Para 20 anos de memória, era apenas necessário suportar trinta minutos de formigamento mental agradável. Eu mesmo, logo de início optei por aprender alguns idiomas que sempre desejei conhecer mais a fundo, o mandarim foi só o primeiro. Não resisti e baixei também algumas artes marciais, culinárias exóticas, eletrônica avançada e também todo o catalogo básico de conhecimentos gerais exigido pela empresa que me contratou. Passei os primeiros dias apenas matando uma sede de conhecimento que eu nem sabia que tinha;

Assim como no modelo de primeira geração, era possível também esvaziar a memória biológica, movendo-a para a unidade de acesso rápido, e assim, transformar o meu cérebro em um grande indexador de arquivos, que devido a integração com o computador implantado, obtinha o conhecimento necessário de acordo com o momento e a situação. Logo descobri que isto era muito útil para evitar aquilo que acabou sendo chamado de 'as mudanças de personalidade associadas à injeção de memórias de terceiros'. Eu adorava o fato de agora saber tocar piano como o grande mestre que estudou harmonia e técnica pianística durante a vida inteira, mas, aquela forma emotiva e melancólica de enxergar a vida que me dominava quando eu estava com estas memórias carregadas era terrivelmente desnecessária quando não havia um piano em minha frente. Logo, eu não precisava saber tocar piano daquela forma o tempo todo, então, simplesmente transferia todas estas vivencias e memórias para um local seguro, onde elas não interfeririam em meu processo mental convencional. Além disso, esta opção permitia que eu classificasse e isolasse minhas próprias memórias, podendo transferi-las para a rede, vendê-las caso fossem uteis para alguém, e agora, com a segunda geração do extensor, eu poderia revivê-las caso desejasse.

A opção de 'Reviver' vinha com diversos avisos e advertências no manual que se injetavam diretamente na memória logo após ligar o aparelho. Servia basicamente para se transportar de corpo e alma para dentro de uma memória qualquer e revivê-la em seus mínimos detalhes. O conceito original era que o uso da opção reviver com memórias alheias reduziria os efeitos nocivos sobre a personalidade e emoções do usuário. Cada individuo criaria suas próprias respostas emocionais em relação a experiencia vivida, tornando assim o aprendizado algo muito mais pessoal e facilitando o processo de apropriação do conhecimento. Eles deviam estar loucos ao imaginar que alguém que poderia apenas sentir um formigamento mental durante trinta minutos iria querer vivenciar com todos os detalhes vinte e cinco anos de estudo da matemática teórica. Não, ninguém em sã consciência faria isto! A opção reviver se tornou rapidamente um novo conceito em entretenimento para os Super Gênios. Como muitos aqui, passei semanas revivendo meus primeiros beijos e minhas melhores performances sexuais no tempo livre que eu tinha, e, tempo livre não me faltava mais. Eu era o segundo Super Gênio com equipamento de segunda geração em minha empresa, o outro era ninguém mais do que o presidente. Tão logo o presidente ficou sabendo que havia um Super Gênio encarregado de controlar uma empilhadeira na expedição, ele me chamou para uma conversa e me promoveu imediatamente a seu assessor direto. Não podemos confiar que esses novos gênios deem conta do recado, ele me confessou.

Para poder exercer adequadamente minhas novas funções, eu rapidamente comprei os melhores pacotes de memórias empresariais disponíveis: gestão, administração, motivação de pessoal, analise de risco, e os movi para o módulo de planejamento estratégico automático, em poucas palavras, o Telepath fazia todo o trabalho para mim enquanto eu me ocupava de meus próprios assuntos. A automação de decisões acabou me deixando bastante tempo disponível para reviver momentos felizes de minha própria vida, assim como navegar pelos conteúdos disponíveis na rede Telephatyca Popular.

Com dois super gênios na administração da empresa, óbvio que não demorou para que nossas ações começassem a subir violentamente. De um momento para o outro, nós que eramos apenas uma pequena fabrica de peças automotivas que sobrevivia por causa de alguns artigos de luxo, acabamos nos tornamos a principal industria do segmento automotivo em todo o planeta. Com o aumento do investimento externo, pudemos desenvolver novas tecnologias que se tornariam necessidades instantâneas para o nosso mercado. Eu e o presidente rascunhamos os protótipos gerais e uma equipe de novos gênios fez a implementação. Após dois meses tínhamos um produto essencial para apresentar aos acionistas. Ainda rio ao lembrar da fúria de um de nossos acionistas com inteligencia nativa, ele saiu de nossa sala gritando que nosso projeto era inútil e que levava apenas segundos para qualquer um de nosso publico alvo aprender a dirigir. Ele correu para se livrar de nossos debentures e papeis; pois bem, em menos de um ano começamos a ter lucros exorbitantes com os nossos projetos inúteis, e mesmo que qualquer um pudesse aprender a dirigir como um piloto profissional em apenas alguns segundos, ninguém mais conseguia pensar em entrar num carro esportivo que não fosse totalmente controlado pelo pensamento do motorista, ou em que o ronco do motor não estivesse sintonizado com seu estado de humor.

Fizemos muitas coisas novas, mas, estas duas tecnologias simples que desenvolvemos juntos, administrando uma equipe de novos gênios, é que nos fizeram bilionários. Soube que nosso ex-acionista, continuou se recusando a instalar um Telepath, e que a fortuna de sua família, acabou migrando para o bolso de novos gênios...

Nunca havíamos almejado a fama, mas, com o sucesso estrondoso de nossa empresa, ela veio sem aviso. Nossos nomes estavam em todas as capas de revistas, sempre juntos com a palavra sucesso. Com o interesse da mídia sobre nossa forma de pensar e agir, logo começaram a surgir propostas de escolas virtuais baseadas no Telepath para adquirir as nossas memórias sobre inovações empresariais, minhas e do presidente. Eram várias escolas, cada uma querendo formar Super Gênios dos negócios e oferecendo cifras cada vez mais tentadoras, mesmo para nós que já havíamos alcançado uma excelente qualidade de vida.” - Quando chego neste ponto de minha história, sempre paro um segundo para observar os rostos que me observam. Eles imaginam que sabem o que contarei depois, e por causa disto estão sorrindo. Eu respiro fundo, e me preparo para contar a parte de minha vida que irá dissolver estes sorrisos e que fará com que todos eles me odeiem.

“Um dia questionei ao presidente por que motivos ele continuava a recusar a venda de suas memórias, perguntei se ele tinha medo que alguma empresa concorrente nos superasse usando nossas próprias ferramentas, e ele, talvez por estar num dia mais sensível do que o normal, se abriu para mim. Ele temia apenas por sua reputação. As melhores ideias sobre gestão e inovação que teve na vida, foram obtidas em quartos baratos de hotel com prostitutas de luxo. Realmente, colocando desta forma, talvez os nossos acionistas não gostassem de saber como foi que os modelos mais cobiçados de nossa companhia foram criados, mas, eu estava me contorcendo de curiosidade. Implorei a ele uma cópia de suas memórias, insisti durante meses, e depois de algum tempo, apenas porque havíamos nos tornado grandes amigos e porque concordei em assinar um contrato de confidencialidade ele me passou o arquivo pela rede Telepathika Popular. Sentei-me confortável em minha mesa, avisei minha secretária que ficaria ausente por algum tempo e, pela primeira vez, por causa da menção à prostitutas de luxo, resolvi usar a opção de Reviver com um arquivo de memórias de outra pessoa que era muito maior do que os habituais trinta minutos de vida alheia que por brincadeira as pessoas publicavam nas redes publicas. Ele me enviou oito anos da própria vida, basicamente, tudo o que ocorreu desde que a SL Motors foi fundada ainda com outro nome até o momento presente.

Foi horrível no início, na época em que a empresa estava começando, eu nem poderia imaginar como foi angustiante viver a beira do colapso financeiro por tanto tempo, precisar demitir tanta gente durante a grande crise, horas e horas de trabalho duro que não resultavam em nada, chantagens e ameaças dos acionistas, o divórcio inevitável, os pensamentos recorrentes de suicídio que haviam se transformado em um plano e, finalmente Dalyla, a puta de luxo que mudou tudo para sempre.

É claro que eu já havia usado a opção de Reviver com a pornografia da rede, mas, foi uma experiencia muito diferente de apenas encorporar em um ator e fazer posições exóticas enquanto uma atriz finge que esta gemendo de prazer logo ao primeiro toque, aquilo era uma memória real de um homem desesperado, gastando seu ultimo dinheiro para viver algo com uma prostituta antes de voltar para casa e cometer suicídio. Não havia mais nada a ser perdido, cada pequeno movimento era um grito libertador, um gemido de prazer e uma lágrima silenciosa de despedida. Foi ali, nos braços de Dalyla, em completa exaustão sexual e mental, que ele finalmente teve a ideia que salvou nossa empresa da crise. Agora eu era ele, e ouvia sua voz mental como se fosse a minha própria. Ele se questionava se antes do suicídio não deveria ter provado 20 mulheres mais baratas ao invés de uma única que cobrava a mesma fortuna. Não havia nada de realmente excepcional no corpo de Dalyla, era tão bonita e bem torneada como tantas outras em outras faixas de preço, tudo o que ela concordava em fazer entre quatro paredes era bastante convencional e, a única questão que a diferenciava de fato era a proibitividade de seu preço. Definitivamente, não era uma mulher para qualquer um. O alto custo causava uma impressão de superioridade do serviço, e ao estar consumindo, o cliente se sentia superior a todos aqueles que não poderiam pagar por ela. Era isto! A grande motivação de consumo de nosso século era se tornar superior aos outros! Por isto as pessoas concordavam com o risco de fazer procedimentos cirúrgicos para alterar o funcionamento do cérebro! Por isto estavam cultivando músculos extras em laboratórios, mesmo que eles fossem causar câncer no futuro! Haviam pessoas de alto poder aquisitivo que estavam apenas esperando que alguém resolvesse cobrar muito mais por coisas essencialmente baratas, sejam elas sexo, xícaras de chá ou um motor para o carro. Voltando para casa, ao invés do planejado disparo da arma dentro da boca no sentido literal, ele entrou em contato com cada um dos acionistas que já haviam o abandonado e deu um tiro no escuro, de forma figurada. Assim nasceu a primeira linha de motores SuperLuxo, que veio para substituir os obsoletos que vinham de fabrica dentro das Ferraris e outros esportivos. Eu ria junto com ele ao pensar no quão insignificante era a diferença dos nossos motores em comparação com os que substituíamos... Mas nenhum ricaço se incomodava com isto, eles só queriam ser superiores aos outros ricaços. Os motores superLuxo fizeram tanto sucesso que o nome da empresa mudou para SL Motors e a partir deste ponto, como vocês devem imaginar, a história foi uma sequencia de sucessos e glórias, contando com o upgrade do Telepath para a segunda geração, minha contratação, os projetos de carros telephatycos e muitas, muitas outras mulheres caríssimas que faziam o sucesso valer a pena!

Ao fim dos oito anos da memória do presidente, voltei de minha viagem interior, e fui emocionado abraçá-lo. Concordei com ele que não deveríamos, pelo bem da empresa, negociar ou exibir aquelas memórias. Não porque continham prostitutas de luxo, e sim, porque elas me mudaram. No momento em que ele teve sua grande compreensão sobre o luxo, eu tive minha própria conclusão sobre que tipo de produto que o mercado precisava.

Ainda haviam poucas pessoas no mundo que podiam utilizar o equipamento Telepath de segunda geração, mas, a tendencia óbvia era que este número seria cada vez maior, visto que todos os novos gênios de primeira geração estavam prosperando rapidamente e logo teriam que evoluir para continuar competitivos. O mercado não queria mais pornografia com atores fingindo prazer, o mercado precisava de Dalylas libertando almas e criando compreensões elevadas sobre a vida, por um preço muito acima do justo, evidentemente. Cada produto tem o valor que damos para eles, e eu pretendia negociar aquilo que se tornaria o bem mais valioso num mundo onde a informação e o conhecimento se tornaram cada vez mais banais! Eu venderia experiencia de vida!

Paralelamente com minhas atividades na empresa, eu estava negociando memórias significativas. Fiz diversos anúncios e eles atraíram centenas de malandros e espertinhos que desejavam vender suas experiencias sexuais e ficar ricos. Obviamente, eu comprava algumas que me parecessem mais interessantes e continuava procurando por tudo o que fosse autentico, profundo e transformador, mas, a escassez de memórias assim que eu poderia utilizar em meu novo modelo de negócio era bem evidente. Eu recusava qualquer coisa que não fosse absolutamente real. Desta forma, pessoas que tentavam desesperadamente viver algo extraordinário para vender a memória, logo eram eliminadas de minha rede de fornecedores. Mesmo assim, soube de um casal que morreu tentando fazer sexo num trilho de trem para vender esta aventura para mim... Pior é que eu teria comprado só por diversão se um deles tivesse sobrevivido.

Não me entendam mal, eu não comprava apenas sexo! Eu procurava por aventuras, lições de vida, momentos de grandes revelações. Se no meio disto tudo houvesse sexo de boa qualidade, apenas venderia mais caro o produto final. Abri meu próprio mercado, e logo me afastei completamente das atividades da empresa, mesmo com a pequena quantidade de material disponível, a venda de memórias significativas era muito mais lucrativa do que ser líder do segmento automotivo.

Em pouco tempo cunhei o termo 'Memórias AA' que se tornou referencia para vivencias Absolutamente Autenticas, a maneira como eu selecionava as memórias que comprava para revender logo começou a ser copiada, mas, eu como fui pioneiro nesta ideia, estive sempre na frente dos outros. Sempre que alguém queria vender suas memórias pensava primeiro em mim e, meus concorrentes acabavam ficando apenas com aquelas memórias que eu rejeitava. Logo, não poderiam praticar os meus preços, nem ameaçar minha posição no topo da cadeia alimentar. Eu era agora a própria Dalyla, supervalorizando meus produtos, fazendo as pessoas esquecerem que elas poderiam viver tudo aquilo por conta própria, gratuitamente se quisessem.” - Neste momento todos os presentes já perceberam quem eu sou, consigo ver o ódio e o medo em seus olhares. Tenho certeza que muitos deles já estão desejando me matar, mas, sentados em suas silenciosas cadeiras eletrônicas são tão inofensivos quanto eu próprio... Então apenas prossigo.

“Na busca por novos materiais, comecei a comprar vidas inteiras de Inteligencias Nativas. Era simples, o incrível sucesso dos novos gênios e dos super gênios acabou criando muitos miseráveis que não puderam instalar o Telepath a tempo, a fila de espera para obter um com auxilio do governo podia durar mais do que 5 anos, então eu chegava como um anjo que lhes oferecia o caríssimo equipamento em troca de uma simples cópia das memórias de suas vidas. Que sensação maravilhosa! Eu não só estava fazendo o bem ao próximo, como estava devolvendo aquelas pessoas excluídas para a sociedade! Ao mesmo tempo, estava obtendo e assistindo verdadeiros dramas AA transformadores de vidas em primeira mão. Eu já possuía uma grande equipe que fazia a pré-seleção do que valia ou o que não valia a pena comprar e vender, mas, antes de qualquer produto entrar em meu mercado, eu sempre o experimentava para dar a palavra final.

O mercado de Absolutamente Autenticas teve é claro, diversos tipos de impactos na sociedade. Viciados em MAA, paranoicos, síndrome do ego perdido, e o mais desastroso de todos: o alarmante aumento dos casos de homicídios relacionados ao roubo de memórias. Em teoria cada pessoa neste planeta tem algum tipo de memória AA dentro de si, mas, a maior parte delas não desejava vender para mim. Os motivos eram muitos: medo, vergonha, as vezes até egoismo puro e simples. Quando comecei a oferecer altas somas por estes momentos, os criminosos encontraram uma grande oportunidade de obtê-los a força. Eu sabia disto, confesso que sabia, mas, meu foco era lucrar e reviver, então se fosse uma memória AA, eu não questionava a origem. Comprava e usava!

Eu cobrava cada vez mais caro e vendia cada vez mais. Ao mesmo tempo, contrariando as advertências do manual do Telepath, eu revivia mais de 300 anos em vidas alheias por dia, histórias tristes, felizes, algumas cheias de derrotas, outras cheias de vitórias e conquistas, além de pelo menos 200 horas de sexo AA que meus funcionários separavam em arquivos menores para satisfazer os clientes menos providos financeiramente. Evidente que não tinha como isto não afetar minha personalidade! Foi no auge de meu sucesso financeiro que minha decadência como pessoa começou. Eu estava 'Absolutamente Viciado' em vidas! Eu queria dor! Eu queria tragédia! Eu adorava saber que elas não eram minhas! Eu queria amor! Eu queria felicidade extrema! E amava saber que eu era superior a tudo aquilo! Eu queria vencer o câncer quantas vezes fosse possível! Me apaixonar pela primeira vez todos os dias! Eu queria conhecer a vida intima de todos os casais do mundo, fazer descobertas, infringir a lei e sair impune, queria usar minha lábia e ser perdoado por traições, queria a emoção de seduzir, queria brigar, apanhar e vencer! Queria poder viver tudo o que a humanidade era capaz de viver, sem precisar sair de minha cama... Tenho certeza de que vocês conhecem bem esta sensação.

Com o tempo, meu vício apenas aumentou e precisei contratar uma assistente cuja a única função era garantir que eu me lembraria de comer pelo menos duas vezes por dia. Ela logo se tornou em um pedaço terrivelmente irritante de minha rotina diária, e acabei a substituindo por uma enfermeira que trocaria a sonda gástrica e o soro fisiológico quando fosse necessário, sem precisar me interromper ou tomar meu precioso tempo de revivencia.

Antes eu apenas permitia que memórias roubadas fossem negociadas, mas, quando me dei conta, naqueles poucos momentos em que enviava mensagens telephatycas para meus funcionários, instruí meu assessor direto a formar uma quadrilha em busca de histórias específicas. A primeira foi Beatris. Aposto que muitos de vocês compraram esta novela AA de grupo. Eu conheci Beatris nas memórias que foram roubadas de um adolescente chamado João, ela era a irmã mais nova de sua primeira namorada, e João vivia se masturbando pensando nesta menina. A mente do rapaz me influenciou a querer as memórias dela, e as memórias de quem esteve de fato com ela... Absorver as memórias de várias pessoas relacionadas me causava uma sensação extraordinária de onisciência. Quando eu fechava um pequeno grupo, eu me sentia uma espécie de Deus, gargalhava das comédias e medos que aconteciam principalmente porque as pessoas não conhecem o pensamento umas das outras... Meus capangas sequestraram cada uma das pessoas que listei relacionadas a Beatris, implantaram um Telepath a força em seus cérebros e roubaram suas vidas inteiras. Após isso, segundo minhas próprias ordens, assassinaram cada uma delas para recuperar o equipamento. Um mês depois, lancei a primeira novela de grupo de vidas! Claro que antes de se tornarem produtos, estas memórias eram um pouco editadas, removíamos os últimos dias para evitar que o sequestro viesse ao publico, mesmo assim, tudo o que elas continham era absolutamente autentico conforme os padrões que minha logomarca assegurava! Por muitos anos a policia acreditou que este grupo de pessoas saiu do pais para desfrutar no anonimato os frutos da venda de suas memórias, espalhamos o boato de que pagamos a eles uma soma burlesca, e logo grupos inteiros de pessoas nos enviavam suas memórias para tentarem ser também uma novela AA grupal de sucesso.

Compramos várias memórias grupais, por valores realmente inacreditáveis, e em troca lucramos ainda mais. As vezes precisávamos sequestrar uma ou outra pessoa para fechar o pacote, e isto saia muito mais barato do que enganar a mídia e a polícia. Nesta época todos os dias recebíamos notícias sobre pessoas viciadas que morriam de inanição enquanto reviviam nossos produtos, sinceramente, eu nunca me importei com isto. Se eles podiam pagar pelas novelas, podiam pagar para instalar uma sonda como eu havia feito. Se não instalaram é porque não tinham habilidade mental suficiente para sobreviver no novo mundo que eu estava criando. Talvez estivéssemos precisando de uma terceira geração do Telepath, com um módulo de sobrevivência...

Além das notícias, chegavam pedidos cada vez mais inusitados sobre o tipo de material que o publico desejava reviver, era difícil de acreditar, mas e eles queriam terror, estupros, tortura! Por causa da alta demanda meus capangas também deram origem a autênticas memórias de pânico e horror, não foi difícil contratar assassinos seriais que gostavam de produzir este tipo de material. É claro que não podia vendê-los em meu mercado oficial, mas, fiz fortunas em mercados alternativos e não rastreáveis. Quem poderia supor que tanta gente gostaria de conhecer a sensação de ser torturado por horas e depois assassinado? As vezes fazíamos parecer que a vitima conseguiu escapar, e a matávamos logo em seguida. Memórias sobre vencer o assassino psicopata eram uma nova forma de se drogar... Eu adorava, mesmo sabendo que não eram tão autenticas como pareciam, mas, cada sentimento de vitória e alívio foram reais até o ponto em que cortávamos a gravação.

Eu ampliava cada vez mais a minha operação de roubo de memórias até que a polícia não podia mais evitar de nos enxergar em cada esquina, sempre espreitando pessoas que haviam cometido o grave pecado de viver bem as próprias vidas. Foram necessários três anos de trabalho policial, e alguns detetives insubornáveis para me pegar. Mesmo assim, um dia eles chegaram em minha casa, onde fui encontrado em uma maca, sendo alimentado por tubos e máquinas, enquanto revivia as experiencias únicas das vidas que havia roubado e comandava a maior organização criminosa do mundo!

Passei mais do que sete anos deitado imóvel numa maca. Eu já não possuía mais músculos, e foi muito fácil para a polícia me levar sob custódia. Fui preso, julgado e condenado. Claro que ter o dinheiro que eu tenho facilitou muitas coisas para mim. Ao invés da remoção de meu implante, tive apenas algumas funções desativadas. Ao invés de uma cadeia convencional, viverei até o fim de meus dias encarcerado em uma prisão que eu mesmo construí, neste lugar! Fui obrigado a construir por todo o país diversos centros de recuperação como este, para auxiliar pessoas como eu, viciadas em Memórias AA. Sou obrigado pela ordem judicial a frequentar todas as reuniões, então, se acostumem com minha presença aqui e com o ruído desagradável de minha cadeira motorizada. Estarei aqui até o dia de minha morte, e como não posso mais reviver o acervo que criei, viverei querendo saber mais detalhes sobre as vidas e os problemas que vocês tiveram por minha causa.” - Depois que termino de contar minha história, surge um momento de silêncio, este era o momento em que segundo o protocolo todos deveriam me agradecer por ter me aberto, e por contar sobre como o nosso vício em comum destruiu minha vida. Mas até hoje, após contar minha história centenas de vezes, ISSO NUNCA ACONTECEU!

“...”

=NuNuNO==

(Que está querendo saber o que você reviveria primeiro...)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 15/11/2015
Reeditado em 17/11/2015
Código do texto: T5449859
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