E o mundo não se acabou

O mundo acabou naquele dia.

A Terra devastada. Não sobrou pedra sobre pedra.

Passado o cataclisma, a humanidade começou a brotar do chão feito baratas. Aos poucos moviam-se por aquele mundo inóspito em busca de alimentos e de abrigo. Reduzidos aos animais que nunca deixaram de ser, mas que um dia esqueceram que eram. Sujos, maltrapilhos após anos de vida em buracos no solo, vivendo em escombros. Sobreviveram. Nem um cataclisma de proporções globais os dizimara. O mundo não estava livre deles. Existiam. E aos poucos prosperariam novamente. E esqueceriam os erros do passado. Voltariam a agir da mesma forma. Como se o apocalipse nunca tivesse existido.

Humanos habitando pequenos pontos do planeta. Pelo menos agora a sociedade havia-se reduzido a sua formação primária. Caçar animais porventura sobreviventes. Plantar. Sumidos todos os resquícios de uma anterior civilidade que coibia alguns atos bárbaros, mas aceitava outros. Que mascarava a natural barbárie sobre um fino manto de regras. Matar por um pedaço de carne. Estuprar. Pilhar. Tudo tornou-se permitido. A catástrofe. A exposição à radiação. A privação de comida. Anos sem ver a luz do dia. Tudo embotara-lhes o raciocínio. Pouco falavam, pouco pensavam. Agiam conforme seus instintos mais primários. Como se nunca tivessem sido civilizados.

Anos passados e a humanidade foi crescendo. Cidades foram construídas. Os antigos tapumes deram lugar a construções mais sólidas. Restabeleceu-se o comércio. Ainda não existia luz, nem água encanada. Andava-se quilômetros para se achar um rio, um lago no meio daquela selva de escombros da antiga civilização. Água tornou-se o bem mais precioso. Matava-se e morria-se por ela.

Foi então que surgiu um deus. Andava pelas cidades com seu cajado e suas roupas maltrapilhas. Não aceitava qualquer bem, apenas um pouco de comida por onde passava. Com seu cajado, pressentia fontes de água e as mostrava às pessoas. No começo fora desacreditado, mas as suspeitas iniciais desabaram ao primeiro poço cavado, ao primeiro rio subterrâneo encontrado. Reverenciavam-no. Queriam dar-lhe qualquer bem para que ele ficasse em suas aldeias para sempre. Mas não havia bem maior que a água e ele a dominava. E nem mesmo a queria para si.

A maioria achava que ele era Deus retornando à Terra para salvá-los daquela era de Trevas. Uns poucos diziam que ele era o Anticristo e que o Apocalipse ainda não havia terminado. Havia quem dissesse que não passava de um truque, uma encenação, que o Iluminado era, na verdade, uma farsa. Mas o que importava, farsa ou não, era que as cidades por onde ele passava não tinham mais sede. Uns tinham muita água, outros bem pouca conforme sua posição na sociedade, mas a água existia. E a sede já não matava mais como outrora.

Até que um dia esse homem que controlava a água foi morto. Assassinato por alguém que tinha medo do poder que ele tinha. Contratou alguém para fazer o serviço: um dos amigos do homem, pertencente ao seleto grupo que o seguia. O traidor fora linchado pela população. Matara seu deus. Matara suas esperanças. Matara a crença num mundo um pouco melhor.

E a primeira guerra pós-apocalíptica fora deflagrada. Pelo controle da água. Por vingança pela morte do Iluminado. Por motivo algum, apenas pelo prazer da guerra, não importava. E a disputa matou muitos. Sem armas de fogo, apenas com paus, pedras e algumas ferramentas como pás e picaretas encontradas em meio aos escombros. Matavam-se por nada. Aqueles que se saíram bem com a disputa e assumiram o controle das reservas de água cobravam de seus súditos um preço para seu consumo. E distribuíam dinheiro em troca de trabalho e esse dinheiro voltava a eles, trocado por água e alimentos.

E a cidade voltou a construir-se daquele nada, repetindo-se nível a nível... Houve uma Revolução Industrial, uma Idade Média... Feudalismo, socialismo, capitalismo... Tudo foi-se reconstruindo. Os mesmos erros foram sendo cometidos. Os mesmos acertos. A humanidade, ao fim e ao cabo, não podia ser exterminada.