Canavial de pedra

Um assunto debatido tanto pela ficção quanto pelos cientistas de verdade é a viagem no tempo. É algo que estimula tanto a imaginação, quanto instiga o desenvolvimento de fórmulas sobre a sua possibilidade. Algumas pessoas, como Stephen Hawking, acreditam que existe possibilidade física de se viajar no tempo. Outras crêem que um carro dos anos 80 consegue atravessar no tempo. E se for possível, mas ninguém souber que existem viajantes no tempo? Às vezes quem menos se espera pode ser um desses.

Havia esse escravo, chamado João. Ele fazia parte da segunda geração dos escravos que vieram ao Brasil. Ele era o resultado do estupro de uma escrava de Moçambique, realizado pelo filho do dono da fazenda. Era um bastardo, não era negro o suficiente e também não era branco o suficiente. Cresceu entre os escravos que o faziam lembrar o tempo todo que ele não fazia parte deles. E muito menos do senhor do engenho, apesar de possuir os olhos do pai. Esse escravo foi o primeiro viajante do tempo, o mais humilde de todos. Nasceu em algum ponto do nordeste, em um engenho de açúcar.

Tinha a vida típica de um negro escravizado no Brasil: dormia em uma senzala, acordava às 5 da manhã, comia algo e estava pronto para o trabalho no engenho. Trabalhava até o meio-dia, quando parava para almoçar e em seguida já voltava a labuta, até o anoitecer. Não conhecia outra coisa, apenas uma plantação de cana-de-açúcar que ia muito longe. Apesar dele não conhecer a palavra, no seu coração aquilo era como se fosse o infinito. Desde criança ele não conseguia compreender o porque de ter plantações tão grandes. Era uma beleza que vinha do sangue de seu povo. Depois descobriu que servia para criar o açúcar e que do açúcar saiam deliciosos doces. Ele não tinha direito a esse pó adocicado, porém sua mãe de algum modo conseguia algum e fazia doces deliciosos.

Um dia estava na plantação, foi ajudar a cortar cana. Estava concentrado em seu trabalho, usando suas mãos calejadas e fortes para vencer o canavial. Era como se fosse um pequeno universo que estava em sua cabeça, e nada importava. Nem olhava para os outros cortadores e muito menos ouvia o assovio e cantoria que faziam para passar o tempo. Era algo automático, cortava uma, seguia para a outra. Alguém recolhia. E isso em um sol quente, porém não fazia tanta diferença para ele. Foi aos poucos se distanciando dos grupo de trabalhadores, isolando-se no meio do canavial. E do nada, ele viu que o chão começava a brilhar, mesmo no sol. Era um brilho que nenhum humano tinha visto antes. É como se o chão fosse feito de energia, parecendo líquido e sólido ao mesmo tempo. Era mais bonito que o canavial.

Observou curioso e ao mesmo tempo temeroso. O brilho foi aumentando cada vez mais, tomando conta do chão que ele estava de pé. E do nada, o brilho ficou intenso e o cegou, como se fosse um flash de uma máquina fotográfica. Quando abriu os olhos não estava mais em uma fazenda. Não havia canavial, nem cantoria e nem assobios. Ele ainda estava com o facão na mão e estava parado no meio de uma pedra negra, quente. Olhou em volta e viu casas gigantescas, que iam até o céu, cortando as nuvens. Era mais maravilhoso do que a fazenda que ele morou a vida inteira. Nunca tinha ido a uma cidade, e aquela era uma cidade muito esquisita. Estava paralisado, não conseguia se mover, apenas os olhos respondiam. O ar era um pouco diferente, mais grosso. O sol, o mesmo. Era como se o seu cérebro estivesse tentando compreender tudo aquilo, mas falhava completamente. Um sentimento de estranheza e maravilhamento se misturavam.

Antes que pudesse pensar em mais alguma coisa, um carro veio em sua direção, o atropelando. O seu corpo foi jogado alguns metros para frente, rolando no asfalto. Uma poça de sangue se formou e seus olhos ficaram fixos e sem vida, como se estivesse olhando uma das casas gigantes. Era um dia quente de 1994, em Salvador. Ele não possuía documentos.