A nave do silêncio

A NAVE DO SILÊNCIO



Miguel Carqueija





Como posso descrever a sensação causada por um imenso salão vazio, majestoso em suas colunas, escadas e tapeçarias, bancadas e frisos, vitrais e grandes janelas hermeticamente fechadas, tudo suavizado por luz espectral lilás, iluminando uma área de cem metros quadrados, mergulhado na solidão e no silêncio?
Eis o grande auditório da Janus III. Espantosamente vazio e silencioso. Percorro, lento e perplexo, aquele espaço tão estranhamente vazio, e olho em todas as direções, inclusive para o teto abobadado. Nada, nada se move, a não ser um pouco de pó em suspensão, diante dos meus olhos.
Uma tremenda sensação de irrealidade me domina. Há três dias — desde que acordei da hibernação — vejo-me entregue a essa sensação, que cresce a cada dia.
Onde foram parar os outros trezentos ocupantes da nave?


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Faz um ano e três meses que partimos da grande base espacial à roda da Terra, com destino ao gigantesco sistema de Canopus, em busca de mundos para explorar. Não fizemos nem a terça parte do percurso (cerca de 650 anos-luz), mas tínhamos um despertar programado para essa época — um dos vários, programados justamente para que possamos detectar qualquer problema e avaliar a situação da jornada — quando devíamos todos permanecer ativos por um mês antes do próximo período de hibernação.
Só que, ao despertar, não encontrei mais ninguém. E nem vestígios de quem quer que seja.


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O despertar, diga-se de passagem, foi normal. O sono criogênico é interrompido pela gradual elevação da temperatura e pela infusão automática de substâncias químicas liberadas por cápsulas implantadas. Deveríamos despertar todos juntos.
Quando saí de minha cabina, porém, não vi ninguém. As portas estavam todas abertas, mas não havia ninguém nos dormitórios e nem nos corredores; nem na torre; nem no refeitório; nem no comando; nem, enfim, em lugar algum.
Rapidamente, diante de mistério tão tenebroso, a perplexidade foi cedendo lugar à angústia e esta ao desespero. Desvairado, eu corria pela imensa nave, procurando em cada canto, em cada buraco onde pudesse existir um ser humano.
Afinal, o que tinha acontecido? Onde é que estavam todos, os homens e as mulheres daquela expedição?


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Quando enfim me acalmei, comecei a inventariar os fatos que pude estabelecer.
Os objetos pessoais estavam praticamente intactos salvo alguns que pareciam estranhamente chamuscados. Além dos tripulantes haviam desaparecido apenas os trajes especiais que eles usavam no período criogênico e os animais e plantas de bordo, vale dizer, os seres vivos, biológicos.
Acessei um terminal de computador. Infelizmente, ao meu pedido de relatório, veio a exigência de impossível cumprimento: digite senha. Eu não tinha alçada para penetrar nos recônditos do sistema, e nem um treino suficiente para dar um jeitinho. Não era a minha praia.
A lembrança dos colegas e amigos começou a me pesar horrivelmente. Anabela, por exemplo, com seus cabelos compridos esvoaçantes, era especialista em Química, uma brilhante cientista em corpo de garota. E eu bem me interessava por ela! Não houvera tempo... Quin, o barbudo, que adorava antiquados jogos de dama e xadrez e não dispensava o xerez. Chou Li, que insistia em comer com palitinhos, como se ainda estivesse na China, e era alvo de muitas chacotas por seus maneirismos e manias e pela voz de falsete, num inglês de décima categoria. Hildebrand, o soturno prussiano, em cujo alojamento eu descobrira certa vez uma caixinha de porcelana de cujas pequenas aberturas ovais emanava uma luzinha lilás enigmática — e que se assustara com a minha descoberta, correndo a esconder o objeto. Temístocles, o braço direito do comandante da expedição, que vivia discutindo política pelos corredores e proclamava alto e bom som que não concordava com os objetivos da missão. Parecia maluquice, na sua posição, dizer essas coisas tão claramente. E Rose, a francesinha, que andava em traje de noite naquele ambiente de descontração. E Tanganika, o tanzaniano, que não largava um bloquinho que vivia enchendo de anotações criptográficas e equações complicadíssimas. Nós o chamávamos "Stephen Blacking".
Onde estavam? Tinham-se evaporado?


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Depois de muito pensar lembrei-me da televisão invisível, um sistema secreto que só poderia ser acessado em caso de extrema gravidade e cuja lógica incluía a possibilidade de compreender uma situação nova.
Para acessar aquele sistema eu teria de convencer o computador da necessidade de franqueá-lo. Entrei na sala de comunicações, onde ficava o maior e melhor terminal, encimado por um belo modelo de engonatão, e iniciei as minhas tentativas.
— Franqueie o sistema invisível.
— Tecle US (1).
Teclei. A tela mudou do verde para um azul brilhante e pediu:
— Digite justificativa.
— Desaparecimento da tripulação da nave, com uma única exceção.
A solicitação foi remetida ao sistema de TVI e eu fiquei aguardando resposta. Por fim apareceu na tela:
— Pode provar o que diz?
— Acione rastreamento geral do veículo.
Agora uma sonda eletrônica, simbolizada por uma porta negra na tela, foi avançando pelos compartimentos da Janus, esquadrinhando cada canto onde um ser humano pudesse estar oculto. Em vão, pois naquele mundo virtual, também só eu apareci.
Uma vez "convencido", o sistema TVI expressou sua concordância:
— Está bem. Franquearemos o sistema. Tecle "S" e a data desejada.
Informei a última data em que estivera acordado, tantos meses atrás, e ordenei "avanço rápido". A tela foi correndo e a imagem se movimentando, temporal e espacialmente. Meses sem nada, aparentemente.
Intrigado e impaciente, resolvi parar a pesquisa no tempo, cerca de três meses atrás, e pus-me a verificar cada dormitório, por mais que me causasse enfado a visão daquelas pessoas congeladas.
Após mais ou menos uma hora, algo me chamou a atenção. Algo espantoso! No compartimento ocupado por Hildebrand uma coisa luziu dentro do armário, através da fresta. Em pouco Hildebrand abriu os olhos e começou a se mexer — mesmo congelado! Senti um arrepio na espinha, a brutal sensação de estar lidando com alguma coisa sobrenatural. Hildebrand levantou-se como um zumbi, da cama de plástico maleável; seu macacão metálico rebrilhava na escuridão, refletindo a luz misteriosa que, cada vez mais forte, emanava do armário.
De repente aquela múmia de gelo emitiu uns gritos absurdos, que um homem em estado de hibernação não podia emitir:
— Shogotts! Shogotts! Venha o seu poder, venha! Louvor e honra ao Homem de Areia, ao Necronomicon, a Abdul Al-Hazred! Raça das sombras, dominai tudo! Cumpre o teu destino grandioso! Honra ao grande Cthulhu! Que o princípio do Mal triunfe sobre todas as criaturas!
Aquele discurso ímpio e insensato não parecia partir dos lábios de um ser humano, muito menos do cosmonauta culto, a quem eu julgava conhecer (e como a gente se engana com as pessoas!), mas de um louco furioso ou um fanático satanista. Continuei observando, fascinado pela cena horrível. Ele abriu de sopetão o armário e a caixa de porcelana que lá estava guardada e eu imaginei, naturalmente, que iria ver o que havia dentro. Mas qual o que! Um incrível turbilhão de luz e trevas, um ciclone demoníaco ou coisa parecida, qualquer coisa como um frenesim macabro tomou a tela inteira num abrir e fechar de olhos, enquanto Hildebrand berrava e berrava de horror, engolfado pela aparição fatal. Como um relâmpago a coisa se propagou em questão de segundos pela nave inteira, escapando-se em seguida para o vácuo. Quando se dissipou, coisa de um minuto após a abertura do armário, já não existia mais ninguém a bordo...
Quando retomei o auto-controle, lutando para não enlouquecer, examinei o quarto de Hildebrand e encontrei a caixa de porcelana, aberta e chamuscada, dentro do armário. Dentro dela, certamente, encontravam-se as criaturas. Quem eram elas, esclareceu-me o Necronomicon, estranho e absurdo livro, do qual havia um exemplar nos pertences do engenheiro prussiano. Escrito por Abdul Al-Hazred, o Necronomicon descrevia as entidades antiquíssimas que haviam passado pela Terra e ainda existiam em incompreensíveis dimensões do espaço-tempo. Seres indescritíveis que, se contidos num espaço minúsculo por matéria refratária, ao escapar liberariam tamanha energia que destruiriam todos os seres vivos — dotados de energia biológica — ao redor.
Segundo o Necronomicon, no sistema de Canopus, estrela de classe A (gigante branco-azulada) existiam fontes de energia capazes de revigorar as forças esgotadas de tais seres, que para lá se dirigiam sempre que possível — mesmo que isso custasse milênios — e aí encontrar-se-iam prontos para novas conquistas. Quiçá a Terra... Porém a prematura saída dessas criaturas frustrou os seus planos, levando-as provavelmente à morte no vácuo.
Por que terei escapado? Por que ainda me encomendo a Deus? Talvez, não ouso afirmá-lo. Quase todos a bordo eram materialistas, o que enfraquece as defesas metafísicas. Só Deus sabe, porém, o que realmente me preservou. Pode ter sido mero acaso, uma especial disposição de meu dormitório.
Só me restou contactar com a base, transmitir o ocorrido e desprogramar a nave, para que ela retorne ao seu ponto de partida. Não poderei esperar a resposta da Terra. Devo agora me colocar de novo em hibernação, programando o sistema para me acordar de tempos em tempos. Breves despertares... até chegar à órbita terrestre. Serei recebido como herói ou criminoso? Como poderão admitir a tragédia que ocorreu, mesmo fundamentada pelo registro da tv invisível?
E que outras forças incompreensíveis nos emboscam nas estrelas? O cosmos, que antes me fascinava, agora me apavora, me amedronta e oprime... transmitindo-me a idéia de um ente selvagem, impiedoso, esmagador. Algo que a Humanidade não pode enfrentar sozinha. Meus dias de astronauta acabarão agora, quando eu pisar de novo a Terra. Nunca, nunca mais serei o mesmo.


(1) underground system


NOTA: este conto se baseia no universo ficcional dos "Mitos de Cthulhu" criados pelo autor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937).