O SERMÃO DO PADRE CASELLI

20 de agosto de 2013, Terça-feira.

Enquanto as naves eram descarregadas, Aldo, sentado à mesa de campanha ao ar livre, manipulava o computador com destreza, apesar das luvas.

Fiscalizava uma por uma as fichas de cadastro e o genoma dos recém chegados.

Os tubos das naves ainda estavam quentes, soltando vapores azuis no frio ar do amanhecer.

Cento e cinqüenta cientistas, suas cem esposas e trinta meninos e meninas, caminhavam com cuidado na gravitação baixa, enfiados em trajes espaciais brilhantes de novos, aos que ainda não estavam habituados.

Depois foram as cinqüenta esposas de astronautas e igual número de filhos. Depois irmãos e irmãs de astronautas, quinze mulheres e cinco homens.

Por último, quando o sol já estava alto, Aldo interrogou os denominados agregados; por não estarem incluídos no plano original: duas mulheres e oito homens:

–Seu nome, idade e nacionalidade?

(...)

–Seu nome, idade e nacionalidade?

– Ângelo Caselli, 51 anos, Turim, Itália.

–Profissão?

–Professor de filosofia, letras, línguas mortas, sacerdote católico...

Aldo levantou a cabeça, tentando enxergar através do visor do seu interlocutor.

–Surpreendido?

–Francamente sim – respondeu Aldo – eu não mandei buscar um capelão, até porque nós, de Antártica; somos pagãos.

–Sim, sei disso.

–Cultuamos outros deuses – disse Aldo sem pestanejar – nós odiamos seu deus rabugento, vingativo, assassino e traiçoeiro que gosta do cheiro de carne queimada!

–Seu preconceito é forte... – começou dizendo o padre Ângelo.

–Talvez porque tenha lido sua Bíblia com atenção – disse Aldo venenosamente.

–Isso depende do ponto de vista que...

–Por quê está aqui? – cortou Aldo secamente.

O sacerdote parecia não saber que lidava com um capitão do espaço; um antártico fanático fortemente doutrinado. Por isso respondeu:

–Porque a vossa avançada tecnologia vos fez esquecer que a mão do Senhor nos alcança também aqui, a milhões de kms do berço do cristianismo!

Aldo ficou de pé e encarou o recém chegado:

–Não viemos aqui para passear, viemos para conquistar espaço vital para nosso povo ameaçado pelos adoradores do seu deus assassino! E você não fará proselitismo entre os nativos, como vocês fizeram em América do Sul há mais de 500 anos! Não precisamos disso! Eu proíbo isso terminantemente! Proíbo isso! Ouviu?

–Ouvi. Não os converterei; embora Santo Tomás de Aquino dissesse que “o Sangue do Senhor é suficiente para a Redenção, embora seja de muitos mundos”.

Aldo; cujos pais foram perseguidos, presos, torturados e assassinados pelos adoradores do deus perverso da satânica Nova Ordem Mundial, replicou:

–Depende de qual Senhor você fala. Esse seu Senhor ajuda e enriquece nossos inimigos, que o consideram seu deus particular! Nós, os antárticos; não gostamos dele porque sempre nos ignorou e ajuda à tirania dos dominadores do mundo!

–Os homens são maus, concordo – disse o padre, tentando coçar a testa sem consegui-lo por causa do capacete – eles se escondem por trás de Deus.

–Pode até ser. Mas o deus dos meus inimigos é meu inimigo; e os meus deuses sempre me ajudaram – disse Aldo – contudo, já que está aqui, seja bem-vindo por enquanto; Ângelo Caselli. Pode ir à enfermaria para exame. Próximo!

–Obrigado. Isso é melhor do que nada.

(....)

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25 de agosto de 2013, Domingo.

Hoje se inaugurou a capela e o padre rezou a primeira missa às esposas dos cientistas e crianças. A capela para duzentas pessoas quase encheu.

Os astronautas não assistiram por princípio.

Aldo recomendou tolerância, mas eles abominavam a religião católica por ser instrumento da opressão em que tinham vivido.

De todas maneiras, o sermão do padre foi positivo; falou mal da Nova Ordem Mundial, execrou os traidores e concluiu:

"–Estamos sozinhos aqui; vivendo tempos apocalípticos, porém donos de nosso destino, em Marte; um mundo novo que Deus – qualquer que seja a ideia que tenhamos d'Ele – nos deu para recomeçar e escapar da Grande Tribulação.

Como manda o Livro, fugimos às montanhas, onde os servos de Satã não podem nos alcançar para nos colocar a Marca.

Devemos amar-nos uns aos outros e amar os nossos guerreiros astronautas antárticos apesar de que eles amam outros Deuses; porque por eles escapamos do Anticristo, a Besta do Apocalipse que governa a Terra.

Agradecemos por isso; devemos amar e respeitar o nosso Líder Aldo, que apesar de jovem e descrente, ele é essencialmente bom e nos guiará com mão segura e confiante ao futuro.

Devemos rezar e pedir que nossos irmãos oprimidos que ficaram na Terra possam escapar do demônio, como nós conseguimos.

Devemos rezar para que se cumpra a profecia do Apocalipse, de que um dia nossos guerreiros voltarão à Terra, descendo do céu para lutar a guerra do Armagedão contra os demônios sicários do Grande Satã e derrotá-los para liberar nosso pobre mundo desse flagelo."

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O sermão foi transmitido à Terra, onde a imagem foi captada quase uma hora depois pela RTVV.

Aldo soube do sermão na hora do jantar, e com a consciência um pouco pesada por ter sido tão descortês com o religioso, disse aos seus colaboradores:

–Gostei do padre.

–Aceitou que a missa fosse transmitida – disse Regina – e com isso queimou suas naves, como fez Hernán Cortés no México...

–Se ele algum dia voltar à Terra; será assassinado. A ditadura não perdoa.

–Isso não quer dizer que agora assistirás às missas...

–Claro que não, Regina. Ora essa!

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PRÓXIMO: A REVERENDA SACERDOTISA

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O conto O SERMÃO DO PADRE CASELLI forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase 1, Volume 1, Capítulo 8, Páginas 129 a 132, e pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com.br/2012/03/mundos-paralelos-capitulo-8-84.html.

O volume 1 da saga pode ser comprado em:

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Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 27/08/2016
Reeditado em 28/11/2016
Código do texto: T5741550
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