Descida no liquidificador


DESCIDA NO LIQUIDIFICADOR


Miguel Carqueija


"Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez."

(Jean Cocteau)


O sol começava a declinar, no vasto horizonte do deserto amazônico, quando passos apressados aproximaram-se do bangalô situado à beira de uma encosta que descia rumo a um dos muitos leitos secos. Ocupada com uma vassoura, Fátima, na varanda de tábuas, avistou os jovens que vinham a toda, ofegantes.
— Que foi que houve?
Deu logo pela falta de Édison. Aparecida, Osvaldo e Damião estavam esbaforidos e assustados.
— Ele caiu... ele caiu... lá...
— Lá aonde? Falem!
— No liquidificador!
Fátima sentiu um calafrio percorrê-la de alto a baixo. Era uma coisa que não podia acontecer, menos ainda com o seu irmão. Não ele.
— Falam a verdade?
— É claro! — Aparecida estava desvairada. — Pelo amor de Deus, vá ver!
— Mas ele está... vivo?
Ele estava, explicaram as crianças aos gritos. Preso numa plataforma, a uns cinquenta metros da borda, e a pouca distância das lâminas. Uma situação terrível e desesperadora.
Fátima ajeitou os óculos e tentou raciocinar com rapidez, mas só conseguiu pensar no perigo absurdo em que o menino se encontrava e na iminência da morte. Correu para dentro de casa, provocando os latidos agitados de Collie, e procurou uma mochila, cordas, ferramentas, material de primeiros socorros, tudo que lhe pareceu possivelmente necessário. Ao sair correndo lembrou-se do aparelho de rádio, mas não tinha tempo para ficar tentando.
— Fiquem aqui e avisem a brigada!
As crianças queriam segui-la, mas ela gritou tão alto com elas que resolveram obedecê-la.
— Depois podem me seguir! Mas primeiro chamem alguém!
Ela pulou na moto e lá se foi, tendo deixado Collie dentro de casa. Um cachorro não poderia ajudá-la naquela hora.
Dirigiu com menos cuidado que de costume, a moto antiga de 40 HP tossindo pelo esforço. Ao passar uma curva da estrada apareceram o Euraldo, mais o Igor, mais o José Fontenelle, pessoas das vizinhanças.
— Fátima, não vá! Você não poderá fazer nada!
— Por que não, Euraldo? É o meu irmão!
— Espere um grupo de socorro!
— O que vocês estão fazendo?
Ao ver que tentavam segurá-la ela acelerou o veículo, colocando em funcionamento o colchão de ar. Igor ainda tentou puxá-la pelo braço direito mas ela deu-lhe um safanão no peito e empurrou-o com a moto em aceleração, derrubando-o. Prosseguiu a toda, pelo ar para evitar obstáculos, sabendo que com isso gastava mais combustível, mas não tinha opção.
Finalmente chegou a um trecho em que a estrada oferecia um desvio, marcado por uma grande placa:


ACESSO AO LIQUIDIFICADOR SANTELMO. ÁREA PERIGOSA. NÃO ULTRAPASSE A AMURADA.


Ela chegou em poucos minutos. No trecho final o caminho subia um pouco, terminando numa espécie de anfiteatro ou cratera com uma amurada já caída em vários trechos. Além da amurada uns três metros de margem até o abismo.
Fátima passou entre dois trechos da amurada, já separados, e bordejou o abismo cuidadosamente. Avistou o garoto na situação que lhe fôra descrita. Acenou para ele, de uma distância provável de duzentos metros. o menino acenou em resposta, erguendo-se um pouco. Fátima fez um gesto que dizia: — Calma. Fique onde está.
Édison era um menino esperto, de uns onze anos, e permaneceu quieto. Meio metro o separava de uma queda fatal. Mais para baixo, em tenebroso moto—contínuo, a hélice fatal girava, e girava, e girava... uma tecnologia enlouquecida, que ultrapassava a civilização e já não podia mais ser detida.
Quem observasse lá de cima, de onde Fátima se encontrava, com uma potente luneta e numa hora favorável, em dia ensolarado, poderia avistar lá por baixo, em meio às construções que ocultavam as máquinas, ossos, esqueletos humanos e animais, vítimas fatais do vórtice medonho. Édison estava a pique de se juntar àquele grupo. Este pensamento fez percorrer um calafrio na espinha da jovem professora.
— Meu Deus, me ajude. Por favor! — murmurou ela.— Ele é tão novo.
Sentou-se para tentar analisar a situação e dominar o sistema nervoso. As lâminas continuavam cortantes como há muitos séculos atrás; era de supor que o mesmo ocorresse com as fileiras inferiores. Todas elas eram de aço inoxidável. Se alguém por sorte — se a isto se pudesse chamar sorte — caísse e se equilibrasse sobre a face não cortante de uma lâmina, simplesmente não teria como pular fora sem morrer, salvo se conseguisse chegar ao barranco, já de si bastante íngreme. Na opinião de Fátima, de há muito o governo deveria ter aterrado aquele abismo, enterrado e paralisado o liquidificador gigante que uma civilização do passado legara. O governo, porém, alegava sempre escassez de recursos para tomar alguma providência. Como sempre, o governo tinha coisas mais importantes para fazer do que proteger vidas humanas.
Fátima rodeou o abismo até se colocar bem por cima de Édison. Então retirou algumas cavilhas da mochila e estudou a viabilidade de prendê-las no solo. A idéia assustou-a: e se aquele solo argiloso não aguentasse? Mas existia a amurada, ainda forte nos trechos não derrubados pelo tempo.
A garota então gritou bem alto para o irmão:
— Evite se movimentar! Não entre em pânico!
— O que é que você vai fazer?
— Vou tirar você daí! Estou bolando um jeito!
Ela pôs-se a testar a resistência das pilastras da amurada e não gostou muito. A firmeza era aparente, mas qualquer peso adicional poderia causar um desequilíbrio. E se ela própria caísse, ao descer com a corda, seria um caminho sem volta. Fátima não acreditava na iniciativa dos seus vizinhos. Não num caso como aquele. Tentaram até detê-la, impedi-la de socorrer o irmão...
Bem, ela não recuaria. Iria em frente, para resgatar Édison ou morrer com ele.
Uma idéia veio-lhe à mente. Passou uma ponta da corda múltipla no guidom da moto e acionou o colchão de ar; outras pontas ela prendeu na amurada, e com o cavilhador fixou duas cavilhas no chão. Amarrou a corda nelas também e assim, segura pela cintura, pôs-se a descer pela corda, em direção ao rapazinho que a esperava com angústia. Era preciso ir tateando com as botas e evitando quanto possível as asperezas da descida. Fátima nunca fôra boa alpinista mas agora tinha que sê-lo de qualquer maneira.
— Viva, Fátima! Vem vindo, vem!
Édison estava entusiasmado, mas o que preocupava sua irmã era a moto. Ela calculava que o veículo não aguentaria mais de quinze minutos no ar, mesmo em segunda marcha, pois o combustível logo se acabaria. Fátima temia que a amurada, as cavilhas e o simples peso da moto não impedissem a queda dos dois corpos.
Esse pensamento acelerou seus pés e suas mãos e em mais dois minutos ela chegou à pequena plataforma. Édison abraçou-a ternamente.
— Você é grande, Fátima! Quando eu falei na turma que você era um fenômeno, não me acreditaram! Mas agora...
— Você teve coragem de falar isso de mim? Que horror!
— Mas, Fátima...
— Silêncio! Nós ainda não saímos daqui! Deixe-me amarrá-lo...
Ela prendeu da melhor forma que pôde a cintura do menino e olhou para cima:
— Só temos dez minutos para subir em segurança. Abrace meu pescoço por via das dúvidas. E reze.
— Está bem.
Fátima pôs-se a escalar a rocha, içando-se pela corda. Era um esforço muito superior ao da descida, exigindo resistência física e muito fôlego. Os quarenta quilos de Édison em nada ajudavam. Fátima evitava olhar para baixo, para o tétrico legado que uma civilização de milênios atrás havia deixado, antes de partir para as estrelas abandonando na Terra remanescentes que não puderam evitar a decadência. Era difícil acreditar no que diziam os livros, que aquele buraco imenso era só para produzir suco de laranja e de outras frutas, abastecendo o planeta inteiro.
Como era mesmo aquele salmo, pensou Fátima, ofegante, sentindo a resistência no seu fim. "Ainda que eu passe pelo vale da sombra da morte..." Mas a lembrança dos seus deveres e ideais, e de todo o passado de Édison, estimulou-a a prosseguir. Era preciso vencer os centímetros até o último deles. Simples, não? Lá em cima a fiel moto já tossia, ela também no limiar do colapso.
Mas faltava muito pouco e não valia a pena morrer por tão pouco. Édison nem tentava estimulá-la, preferindo ajudá-la com o seu silêncio. Já com as luvas rasgadas e a pele das mãos esfolando, Fátima galgou finalmente a borda do abismo e depôs o menino em segurança. Foi o bastante para que a moto caísse ruidosamente ao chão e rolasse sobre si mesma, em direção ao precipício.
— Fátima! — gritou Édison, horrorizado.
Ela puxou a faca de mato do cinturão e com um golpe certeiro cortou o eixo da corda; em seguida puxou rapidamente Édison, saindo ambos da trajetória do veículo. A moto passou por eles e se precipitou, e sua energia cinética foi tanta que além de soltar as cavilhas ainda quebrou dois pedaços da amurada. Tê-los-ia levado consigo, sem dúvida, se Fátima não houvesse cortado a corda com a maior presença de espírito.
Ergueram-se. Ao longe, algumas pessoas começavam a aparecer, timidamente. Édison abraçou-a:
— Como vou poder agradecer, irmãzinha?
Ela beijou-o carinhosamente.
— É simples. Seja sempre bom. Sirva aos seus semelhantes.
— Ainda abraçados, começaram a se afastar daquele local de horror.


 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 08/09/2016
Reeditado em 26/11/2023
Código do texto: T5754453
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