CARTA A NORAH

7 de maio de 2015, um milhão de kms além da Lua.

A bordo do SU-20.

–Quatro nacelas, capitão. 100.000 toneladas; velocidade 1000 Match.

–Pode ser a Arachânia ou a Patagônia, ambos são cruzadores armados que usam para contrabandear armamento. Postos de batalha! Armar torpedos!

Extrato do diário de bordo do SU-20:

“... A nave vira a bombordo em direção à base orbital 08 e nós a alcançamos a cem mil metros. Não nos perceberam. Há uma explosão após o impacto entre a terceira e quarta nacelas. À detonação do torpedo seguiu outra (reator, combustível, munição?). Em vários pontos a estrutura começa a se desintegrar aos poucos. Uma grande confusão impera a bordo. Algumas naves salva-vidas conseguem sair das suas baias, mas outras batem entre si, fora de controle e se destroem”.

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Ponto de Apoio – Marte, 14 de agosto de 2016.

“... Como percebe, Excelência, o Almirantado Lunar tentou manter ocultas as decisões que expuseram a nave Arachânia e seus passageiros ao fogo inimigo. Em base a estas declarações trabalhosamente recolhidas, peço oficialmente à Vossa Excelência que o processo do capitão Heitor Cláudio Guzmán seja reaberto.”

Elvis Santos Governador de Marte.

P.S.:

Marcos; sem linguagem oficial, faz algo pelo infeliz que apodrece em Montanhas Malditas, (sabemos que é horrível). Sua esposa Norah é a médica que no passado namorou Alan Claude, é amiga de Linda e Bárbara; fez a pós-graduação para o espaço na Faculdade de Eletrônica e Cibernética de Blumenau.

Está em Antártica, querendo falar contigo e não consegue. Sem mais, recebe um abraço. Linda te manda um beijo. Alegrou-nos saber que Bárbara está grávida. Um beijo para ela. Tchau.

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Antártida, Terra, 15 de agosto de 2016.

Senhor Governador de Marte:

Recebi os detalhes e estou de acordo com V.E. em que o capitão Guzmán foi usado como bode expiatório pelo Governo Lunar. O processo foi reaberto. O único impedimento para libertar Guzmán é obter a permissão de Max Guerreiro, hoje dificultado por causa da guerra.

Marcos Santos Presidente de Antártica.

P.S.:

Bárbara está bem. O bebê nascerá em dezembro. Um beijo a Linda. Souberam alguma coisa de Aldo? Consta-me que permanecia em Saturno.

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Nota enviada em data posterior (20 de setembro de 2016) ao Presidente de Antártica, Marcos Santos, pelo Chefe do Serviço Secreto Antártico.

“Os lordes do Almirantado Lunar complicaram a Nova Ordem Mundial com o governo de Marte. O Almirantado ordenou tampar com pintura as numerações e falsificar os radio impulsos de identificação das naves de forma a içar eletronicamente bandeira neutra ao entrar na zona de combate, vindas do espaço profundo.

Na ordem enviada à empresa INDEVAL; há uma anotação manuscrita à margem: ordene-se verbalmente que essa bandeira seja a marciana. Também se deram ordens às naves de guerra lunares, de tratar como piratas às tripulações dos Skywars-U capturados. Os sobreviventes; escreveu Iglesias, serão presos ou executados segundo convenha”.

“Vossa Excelência concordará comigo em que tais medidas estavam destinadas a aumentar a violência da guerra espacial, com o resultado que vimos”.

Assinado: López. (SSA).

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A continuação; reproduzimos o texto integral da carta que o capitão Heitor Cláudio Guzmán enviou à sua esposa Norah Fernandes de Guzmán por mediação de um guarda carcerário da Prisão de Segurança Máxima das Montanhas Malditas, Face Oculta, Lua.

Montanhas Malditas, 21 de setembro de 2016.

Querida Norah:

Escrevo estas linhas com esperança de que cheguem às tuas mãos, depois de todo o que passei. Aqui, a 500 kms do último posto da Face Oculta, não chegam nem saem cartas, mas confio que esta chegue. Há mais de um ano que estou aqui. Tudo o que na Terra se diz sobre este lugar, hoje me faz rir.

Aqui não é um centro de reabilitação, aqui é um lugar de castigo.

Alguns guardas são sádicos com os presos comuns. Somos piores do que escravos. Trabalhamos na produção de alimentos no circuito ecológico fechado e na extração de minério. Meu trabalho é o de perfurador e com isso considero-me feliz; não carrego minério nos carros, nem limpo cascalho e nem faço coisas piores... Eu, que já fui o arrogante capitão do mais luxuoso navio de passageiros que jamais singrou o espaço!

Envergo um traje frágil, com quatro horas de ar, ao cabo das quais apresento-me com os outros ao veículo de mantimentos para renovar a carga quando trabalhamos no exterior. Dentro na mina estamos unidos com mangueiras à rede. Nos túneis pressurizados, não precisamos equipamento.

Após doze horas, retornamos às celas, das quais não há como escapar apesar de não terem grades. E nem é preciso. Há uma janela ao exterior de alumínio transparente. Do outro lado, o vácuo. Vi morrer um sujeito, um jovem forte, recém chegado. Trouxeram-no como a todos, no Aerocoester que liga a prisão com o astroporto a 100 kms de distância.

Quando o tubo acoplou-se na baia, os presos passaram para a triagem, mas este jovem permaneceu na baia até que o Aerocoester partiu. Vendo-se sozinho perante a janela, arrancou uma barra de segurança e bateu no alumínio transparente até amassá-lo.

Pobre ignorante! As juntas falharam e a pressão o fez voar até onde tomávamos uma dose de ar. Quando finalmente chegou ao chão já estava arrebentado, seus olhos tinham desaparecido e as vísceras apareciam na boca escancarada. Nunca esquecerei. Os guardas disseram: “isso é para vocês aprenderem”.

Casos como esse não são muitos; o medo nos lembra onde estamos e o que pode acontecer. Aqui há que se comportar bem e não desagradar os guardas. A comida não é ruim, até porque nós mesmos a produzimos, mas um pouco monótona. Nosso divertimento é trabalhar.

Quando estamos nas celas, estamos sozinhos. São individuais no meu setor. Nos outros setores há celas com dez ou vinte presos. Não se misturam conosco, ainda bem. Esses são os ruins, assassinos e bandidos incorrigíveis; gentes de alma tão negra como o espaço que vejo na janela enquanto escrevo. Nunca mais sairão daqui.

Sou vigiado pelo guarda enquanto escrevo. Assim que acabar, recolherá o lápis e o papel que sobrar. Na cela não posso ter objetos que não sejam fornecidos pela prisão, temos sabonete e papel higiênico. Nada com que possamos nos suicidar nem atirar contra a janela de alumínio transparente polarizado.

Minha cela tem uma cama de ferro soldada ao chão, uma mesa soldada na parede e um vaso sanitário que está como nascido no chão. Os homens e as mulheres têm que estar com a cabeça raspada para prevenir parasitas.

Não sei como podem pensar que aqui possa haver piolhos, nunca vi inseto nenhum!

Tanto elas como nós, vestimos calção e camiseta cinzentos. Tatuaram-nos no braço uns números de identificação. Não sei para quê, não podemos fugir para lugar nenhum. Quando saímos para trabalhar colocamos macacão de abrigo e o traje pressurizado, que não é de vitroplast.

Temos que ter cuidado de não rasgá-lo, isso significaria castigo por parte dos guardas que nos socorreriam antes que morrêssemos. Seria uma ótima oportunidade para matar-se, mas eles sabem que os escolhidos para trabalhar nas minas e na superfície nunca o fariam.

Nos classificaram muito bem. Somos os condenados a curtas penas, com esperança de sair algum dia. Apesar de tudo, sou bem tratado pelos guardas. Meu passado como capitão conta muito entre eles.

Por isso consigo escrever esta carta. Assassinos, traficantes, ladrões,

traidores, espiões da Nova Ordem Mundial e outros criminosos incorrigíveis, penam amargamente aqui dentro.

Os guardas lunares antes foram antárticos e não esquecem.

Os presos políticos de Antártica, onde não existem prisões, são trazidos para cá.

Como sabes, toda pena superior a dois anos em qualquer país aliado deve cumprir-se aqui, onde o pior da humanidade está reunido: inimigos do regime lunar e antártico, derrotistas; que aumentaram desde que a guerra esquentou com a possibilidade da intervenção de Marte, segundo boatos dos guardas.

Mas Marte ainda não entrou.

Talvez haja um local de torturas, ouço gritos nas noites, que parecem vir do mesmo lugar.

Para esses sujeitos a vida aqui é um inferno. Dos onze mil reclusos extremamente perigosos, vinte mil perigosos, vinte e oito mil medianamente perigosos e trinta e cinco mil não perigosos, eu devo ser o mais insignificante.

Maltrataram-me nos primeiros dias, quando não sabiam quem era. Depois me colocaram para trabalhar e me deixaram em paz.

Sou tratado com deferência pelos guardas e neste longo ano não tive maiores problemas, a prova está nesta carta. Meu consolo é saber que não sou como os outros que aqui estão. Tenho esperança de sobreviver os quatro anos que me faltam e acho que conseguirei ser libertado, se não me acontecer nenhum acidente.

Espero te ver a ti e aos meninos, que estarão grandes quando eu sair. Quando penso que estou aqui por causa de que minha nave foi torpedeada pelo inimigo; mais valeria ter morrido do que passar pelo que passei nos tribunais lunares. Pelo menos teria glória. Quando gritei a verdade na frente dos juízes, me mandaram calar.

Estou aqui por uma manobra dos almirantes.

Queriam que Marte entrasse na guerra porque estavam perdendo.

Mas até agora Marte não entrou.

Obrigaram-me a carregar contrabando de guerra, obrigaram-me a levar minha nave por uma rota perigosa com carga ilegal.

Estou pagando em nome da estratégia.

Que o digam os dois mil passageiros e tripulantes que morreram.

Falando em morrer, há um medo latente em todos nós, o de morrer

num acidente.

Se acontecesse, nunca mais te verei, nem às crianças. Sinto medo, o que não sentia no espaço quando era dono do meu destino.

Cada vez que entro na mina, não sei se voltarei vivo para minha cela. Ontem tiraram os pedaços do encarregado da dinamite.

Uma perna não foi achada.

O instalador de trilhos rasgou o traje com uma farpa de aço e o ar escapou. Morreu lentamente, já que o remendo de emergência era pequeno demais e os guardas demoraram.

Tenho esperança de sair, como já disse. Na pior das hipóteses, não tenhas muitas ilusões quanto a mim, para não sofrer. Será uma grande coisa se receberes esta carta que já é um livro, graças à misericórdia de um guarda bom que espera pacientemente.

Teria mais para dizer, mas está na hora que as luzes se apagam e não quero comprometer mais o guarda. Querida; faz de conta que eu morri; e nas noites de lua, se ainda se pode ver aí em Antártica, através da

fumaça da guerra, olha para cima com os meninos e pensa em mim.

Ama-te, Heitor.

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Nota:

Ao ser entregue esta carta à destinatária, em 9 de novembro de 2016, o remetente já tinha morrido num acidente na mina de urânio em que trabalhava como perfurador. Lamentamos profundamente o acidente ocorrido em 2 de novembro de 2016, pois o capitão Heitor Guzmán já tinha sido inocentado de todas suas acusações pelo governador de Ciudad Lunar, Max Guerreiro; e o mesmo dia de sua morte, chegou a ordem de liberdade à Prisão Lunar.

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Nota II:

Quatro meses depois, a senhora Norah Fernández de Guzmán entrevistou-se com sua Excelência, o Presidente da Nação Antártica, na cidade de Antártica, em Antártida, nova capital da América do Sul.

Após a entrevista, o Presidente determinou que os restos mortais do capitão Guzmán fossem levados para serem enterrados em sua cidade natal, Puerto Montt, Chile. Depois determinou a publicação da célebre carta do falecido na RTVV, para desmascarar o Primeiro Almirante Lunar Iglesias.

Depois foram apresentadas públicas desculpas à viúva e foi paga uma indenização em créditos de pesos ouro antárticos.

Foi solicitada a destituição e posterior entrega à justiça do diretor da Prisão Lunar, que permitiu que um prisioneiro da qualidade do capitão Guzmán participasse de trabalhos forçados.

A continuação; reproduzimos a nota enviada pelo Excelentíssimo Presidente da Antártica, ao Ministro de assuntos interplanetários:

Antártida, 03 de janeiro de 2017.

Sr. Ministro:

Por meio desta, solicito que se dirija à Prisão Lunar e releve do seu cargo o Comandante López, que substituía o diretor M. Ziguel, destituído em 07/12/2016.

Confirme como diretor o coronel Arno Fábio Santos López, quem estará à sua espera conforme minha carta de 25/12/2016.

Envie nota de protesto ao Governador e outra ao Primeiro Almirante, em relação com os acontecimentos de novembro de 2016.

Disponha que o novo diretor da Prisão faça uma rigorosa classificação dos 94.000 presos. Envie uma relação da produção de minério e alimentos concentrados.

Mantenha-me informado da sua gestão em todo momento e disponha o retorno do comandante López à capital. Sorte na sua gestão.

Marcos Santos

Presidente.

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Nota III:

Reproduzimos a carta enviada ao presidente antártico pelo novo diretor da prisão lunar:

Montanhas Malditas, 05 Janeiro de 2017.

Excelentíssimo Senhor Presidente: Agradeço a designação.

Recebi o pedido do Governo de Ocupação de Nova Argentina de mais alimentos e o pedido do Ministro de Guerra sobre remessas de urânio.

Meu plano para triplicar a produção de alimento e minério, está encaminhado desde antes da minha designação, em colaboração com o comandante López que retorna à Terra.

Coloquei 90 por cento da população masculina da prisão nas minas, em quatro turnos, com o que conseguimos mais eficiência do que os dois turnos de doze horas do diretor anterior.

Dou-lhe minha palavra de que não faltará urânio para a guerra.

Respeitosamente,

Coronel Arno F. Santos López.

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O conto CARTA A NORAH forma parte integrante da saga inédita

Mundos Paralelos ® – Fase 1, Volume 3, Capítulo 24, Página 93 e páginas 105 a 109, cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com

O volume 1 da saga pode ser comprado em:

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Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 05/10/2016
Código do texto: T5782440
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