REVOLUÇÃO: PRIMEIRAS AÇÕES

31 de julho de 2019 (data antártica 190731).

Alan foi chamado ao aviário dois dias depois, quando o prisioneiro finalmente cedera à engenhosa tortura, que o deixara quase louco:

–Me soltem! Quero ver! Quero ouvir! Quero farejar!

Runo e Xufu retornaram às suas ocupações habituais, mas convocaram amigos da resistência e agora já havia um pequeno grupo de rebeldes aquartelados no porão do aviário, que se ocuparam em forrar o mesmo para que os gritos do tigre não fossem ouvidos de fora. Mas, os clientes de Runo eram gente do interior deslumbrada pela cidade grande, e se algo ouvissem, não dariam importância.

Alan desceu ao porão escuro e tirou os tapumes dos ouvidos do tigre.

–Disseram-me que você queria falar comigo – disse em siriano.

–Quem é você? Como se atreveu a me sequestrar? Como fala minha língua?

–Meu nome não tem importância.

–Quero enxergar! Solte-me! – gritou o prisioneiro.

–Só depois de que você me conte algumas coisas que eu quero saber.

–Você vai morrer...!

–Sim, mas não hoje. Por me ameaçar vai ficar sem enxergar.

–O que você quer saber?

Alan fez um sinal para Iara ligar o gravador do pentacorder.

*******.

–Diga seu nome e cargo.

–Interventor Mestre de clã Svant Zik Tikal, Baharnum de Xawarek Amaru.

–Qual é a sua função neste planeta?

–Supervisor encarregado da produção de carne e cereal.

–O quê pretendem seus mestres alakranos neste planeta?

–Não sei.

–Sabe, sim. Vai ficar sem enxergar mais dois dias.

–Não! Eu digo!

–Então diga o quê pretendem seus mestres alakranos neste planeta!

–Usar Boral como ponto de apoio para atacar a Suprema Confederação.

–Como eles pretendem fazer isso?

–Produzindo e estocando armas no continente norte.

–Como fizeram para vir aqui sem ser detectados pela Suprema Confederação?

–Uma nave de cada vez, desde Xawarek Amaru.

–Os habitantes deste planeta são pacíficos e gentis. Por quê vocês os tratam como escravos nas minas e fábricas? Não há honra em escravizar os mais fracos.

–Eles serão exterminados, depois.

–Onde está a Honra Xawarek? Você vai ficar três dias sem enxergar.

O severo interrogatório durou quase todo o dia. Os tigres eram duros demais, mas o coronel Alan conhecia técnicas aprendidas com membros do Esquadrão Shock e alguns truques mentais aprendidos com seu protegido Lobsang. Além do mais, Alan conhecia bem os xawareks, tinha vivido com eles, conhecia seus costumes e dominava a língua, por isso tratou o tigre com dureza extrema, sabendo que eles prezam a força e a autoridade; até sua resistência ser abalada e quebrar-se. Alan precisava perguntar rapidamente, sem dar tempo ao prisioneiro para pensar.

*******.

Na última hora da tarde, o casal desceu da barca e encaminhou-se à pousada, embaixo da chuva que não dava sinais de querer amainar.

No beco onde sequestraram o tigre; havia grande agitação; a polícia nativa de duas viaturas conversava com dois tigres, perto do local onde Svant Zik desaparecera, dois dias atrás. Alan os reconheceu logo, eram os mesmos que se reuniam toda noite na pousada.

Pelo lado do beco havia uma residência, que o coronel supus corretamente que era a casa de Svant Zik. Uma fêmea tigresa parada na porta, imprecava com policiais humanos. Alan e Iara alcançaram a ouvir a conversa:

–Que polícia de tchirguan são vocês que não acham o Svant? Será que é tão difícil achar um xawarek misturado entre vocês? Espécie desgraçada!

–Mas senhora... – disse o infeliz policial – o interventor Svant Zik deve estar trabalhando em outro lugar. A senhora sabe que ele viaja muito...

–Há dois dias ele abriu a garagem a esses dois idiotas e depois sumiu!

–Nós pegamos o espaço-moto e fomos embora – protestou um dos tigres.

–Onde vocês o levaram? Vou ligar para Djekal! Vocês serão transferidos para a terra dos vulcões! Vão minerar diankrap até apodrecerem!

–O governador não! Por favor, dona Belan Zik! Svant Zik vai aparecer!

Mas a tigresa deu uma zarpada no focinho do tigre e entrou, fechando a porta. Alan reparou que encima da casa havia uma antena parabólica, que sem dúvida usavam para se comunicar com o continente norte. Era obvio que deveria haver pelo menos três satélites xawareks ou alakranos em órbita Clarke; que Alan não percebera na chegada porque sem dúvida estariam camuflados.

–Quer ver algo divertido, Iara? – disse Alan sacando a pistola laser.

–Não, Alan! Vão nos ver!

–A polícia e os tigres já foram. Está escuro e com esta chuva não há ninguém na rua. De todas maneiras dá uma olhada por aí enquanto aponto.

Alan disparou primeiro na caixa de circuitos, inutilizando-a; e depois na haste, fazendo a antena cair com estrépito encima da casa. Não ficaram para ver o resultado da travessura e correram para a pousada.

*******.

–O jantar está uma delicia – disse Iara, experimentando a sopa de peixe.

–Está, mas nossos amigos peludos não estão apreciando muito – disse Alan, pegando o último zhiris da tigela e banhando-o no vinagre.

–Podes ouvir a conversa? O pentacorder está ligado...

–Estão preocupados de que o governador Djekal os mande para as minas.

–Esse deve ser o tigre maior, não?

–Não, Iara, esse nome é alakrano – disse Alan, mastigando o crustáceo.

–Então esse deve ser o gafanhoto maior. Falando em gafanhotos, não sei como podes comer esses bichos vivos!

–É comida de tigre, querida, aprendi a comer khajs, que é similar, em Japeto, quando morei alguns meses com eles...

–Como foi a vida entre os tigres? Como eles eram? Como estes daqui?

–Cruéis; grosseiros e briguentos como estes, mas com honra. Os de Japeto são descendentes de uma tripulação naufragada há mais de dez mil anos. Estes daqui são diferentes, com pouca honra... Penso que muita coisa deve ter mudado no mundo deles em todos esses séculos. Pergunto-me o que encontrarão meus camaradas da nave Empreendimento NX...

–Você era muito ligado a eles?

–Muito. A propósito... Há uma coisa muito importante que acho que devo te contar agora que estamos há quatro dias... Agora que somos...

–Imagino – disse ela com olhar encantador – você tinha namorada em Saturno, talvez antes em Júpiter ou em Marte e sem dúvida antes na Terra... É isso?

–Espero que não seja ciumenta.

–Por quê seria? Sou adulta. Você é mais velho e tem uma experiência invejável; não perde para ninguém. Agradeço a todas as mulheres que você teve antes por mandá-lo para mim feito o melhor amante do sistema solar!

–Não é para tanto.

–Não seja modesto. Agora conte como eram elas; seus nomes... Eram boas de cama como eu penso que sou? E o mais importante: ainda ama alguma delas?

–As outras ficaram para trás. Não quero ter nossa primeira briga.

–Digamos que eu acredite, Alan, mas não vamos brigar, não sou uma dondoca histérica. Conte-me da primeira, o primeiro amor nunca se esquece. Quem era ela?

–Norah. Antes dela eram namoricos esparsos. Depois que me dispensou, casou com o capitão da nave mercante Arachânia.

–Sei, a nave foi torpedeada e ele morreu na Lua. Nunca mais a viu?

–Sim, quando voltava de Saturno. Ela mora em Nova Chile, Marte.

–Mulher burra. Não se dispensa um homem como você. E a seguinte?

–A seguinte e última era valente igual a você, camarada, amiga, companheira, parceira de lutas... Um dia nos apaixonamos, como você e eu, aqui, neste momento e lugar. Fiquei louco quando ela teve que partir. Ela foi a criatura mais pura, mais sincera, mais autêntica que já me amou. Não se ofenda querida; isso é passado.

–Não me ofendo. Entendo o que quer dizer... Por quê ela teve que partir?

–Ela não podia desobedecer a uma ordem direta do seu capitão.

–Era uma tripulante?

–Oficial táctica da Empreendimento. Está em rota para Sírio desde fevereiro.

–Ainda sente algo por ela, percebo.

–Claro que sinto! – disse ele com voz trêmula – Um vazio, uma saudade imensa! Ela significou muito... Os homens estamos muito sós lá fora...

Iara ficou imaginando como seria a vida dos homens solteiros no espaço

profundo; com sentimentos reprimidos... As lágrimas afloraram aos seus belos olhos claros e escorreram pelo seu rosto.

–Não chore, querida. Você agora é minha esposa; é você que eu amo, é seu corpo que procuro à noite. Nestes últimos dois meses lutei comigo mesmo para não te beijar; mas te desejei desde o primeiro dia...

–Choro por você, tão sozinho lá fora... Vou gostar daquela oficial, ela tem que ser uma mulher e tanto, porque te amou e te acompanhou lá, tão longe... Aliás, já gosto dela. Não me importará compartilhar-te quando ela voltar e te reclamar; porque ela vai voltar; não se abandona um homem como você. E você é bastante homem para dar conta de nós duas. Espero que ela não seja ciumenta e goste de mim.

–É muito nobre isso, Iara...

–Deve ser maravilhosa, deve ter feito por te merecer. Como é o nome dela?

–O nome é...

De repente entrou a polícia no restaurante da pousada. Oito policiais armados rodearam a mesa dos tigres, perante o espanto geral, já que a pousada estava lotada.

–Vocês estão presos!

*******.

Os tigres estavam incrédulos. A polícia nativa não podia prender os xawareks.

–Que história é essa? – disse um dos tigres.

–Você não tem autoridade para nos prender! – disse o outro.

–Dona Belan Zik tem autoridade superior. Ela acusou vocês dois de destruir sua antena para que não pudesse falar com o governador – disse o policial.

–Mas... Somos inocentes! – disse o tigre – Nós nem saímos daqui dentro!

–Explique isso para o centurião, lá no departamento. Vamos!

–Não vamos! Vocês não podem nos prender!

–Podemos – disse o policial, puxando uma pistola de balas.

–Mas quem é você, infeliz, para me apontar com esse brinquedo?

O primeiro tigre agarrou o policial, e o atirou por cima dos outros, que caíram ao chão como bonecos.

O segundo tigre pulou por cima da mesa, gritando à garçonete:

–Lin, queridinha...! Ponha na conta!

Como dois gatos os felinos sumiram na noite, perante os apavorados fregueses, enquanto os policiais tentavam se levantar do chão; humilhados.

Iara e Alan trocaram olhares de cumplicidade, procurando segurar o riso.

Quando a calma voltou à pousada, Alan chamou a garçonete.

–Sim, meu senhor...? – disse ela com o rosto iluminado pelos enormes olhos azuis; encantada pelo casal de terrestres com interesse beirando a adoração.

–Uma jarra de vinho de Auxor, por favor, Lin. Para levar para cima.

–Sim senhor – disse ela, sorrindo cúmplice – um vinho para o amor.

A moça trouxe a jarra e dois copos. Alan colocou duas moedas encima da mesa com o melhor dos seus sorrisos.

O casal, abraçado, subiu pela escada, e a moça ficou olhando-os longamente, como desejando subir e participar desse amor.

*******.

Primeiras ações.

8 de agosto de 2019 (190808).

Uma semana depois do sequestro; o movimento subterrâneo de resistência publicou seu primeiro informe oficial, um panfleto que circulava de mão em mão, no qual informava-se à população do país de Gren sobre o criminoso plano dos ocupantes alienígenas de exterminar a população do planeta quando seu objetivo fosse alcançado.

Revelou-se também que o interventor Svant Zik estava preso numa prisão clandestina da resistência e que seus dois ajudantes, fugitivos da polícia, passaram para o lado dos rebeldes, enojados pelo plano criminoso dos alakranos.

–Mas isso é mentira! – disse Xufu.

–Claro que é – disse Alan – isso garante que não serão usados contra nós.

–Entendo.

–Agora vamos incomodar um pouco. Vamos planejar nossas sabotagens.

–Que tipo de sabotagens? – perguntou Runo.

–Vamos colocar uma bomba na central de energia de uma fábrica, e ao mesmo tempo telefonamos para outra dizendo que há uma bomba. Depois queimamos um depósito de lã de wok e chamamos os bombeiros para outro bem distante, dizendo que está queimando. Depois chamamos a polícia e dizemos que há uma bomba em determinada fábrica, e colocamos uma em outra. Com isso paralisamos seis lugares por um dia ou mais. Xufu; escolha os lugares num mapa e reúna os homens. Arranjaram armas, explosivos e combustíveis nos lugares que indiquei?

–Meu pessoal já providenciou.

–Ótimo. Vamos organizar os grupos. Ninguém mais deve me conhecer, só vocês dois, além do pessoal do porão. Entendido?

–De acordo.

–Cada um de vocês, comanda um grupo de cinco chefes, e cada chefe comanda um grupo de combatentes não maior do que cinco homens. Estes homens recrutarão cinco homens cada um e não se conhecerão entre eles.

–Por quê?

–Cada grupo estará desligado dos outros. As decisões partirão daqui. Se algum deles for preso não terá muito a revelar no caso de ser torturado. E será! Os peludos e os alakranos são hábeis para tirar informação. Vocês viram o que eu fiz com o peludo que está no porão; ele revelou tudo o que sabia. Eles devem ter outro sujeito com o mesmo talento que eu para extrair informação. Se fizerem falar um de nós, ele poderá entregar apenas quatro ou cinco camaradas, que podem vir a ser presos, torturados e mortos. Mas não saberá do resto, que ficará livre e agindo. Entenderam?

–Entendemos.

–Outra coisa: não quero fanatismo estúpido nem palavrório, não admitam discussão com os chefes de grupo e destes com os integrantes. As ordens devem ser acatadas sob pena de morte. Eu dou as ordens a vocês, e vocês a seus grupos de chefes. Estes dão as ordens aos subordinados. Quem falhar ou se acovardar deve morrer para exemplo. Não estamos brincando. Estamos lutando pela liberdade de Boral e pela expulsão dos aliens, e o mais importante; a paz do quadrante.

–Quadrante?

–Sim, Runo. Lamento que vocês não possam ver o que há além das nuvens que cobrem o mundo. Há um universo maravilhoso, há mundos incríveis lá fora, e eu venho de um deles. Mas Svant Zik revelou que os alakranos pretendem fazer a guerra contra a Suprema Confederação, um império de muitos mundos lá fora, que é muito poderoso e que pode querer se vingar contra nós. Aí todos nós morremos.

–Você vem de outro mundo?

–Sim, de um mundo irmão deste. Eu sou igual a você, sou seu amigo. Os

alakranos e os xawareks não. São diferentes, são inimigos. Mas isso eu não preciso dizer a vocês. Mais adiante, quando pegar minha nave; vou passar a vocês uma copia da minha base de dados relativa à história destes mundos.

–Você tem uma nave? – disse Runo.

–Claro que ele tem – disse Xufu – senão como viria aqui?

–Quando menos gente souber, melhor. Esqueçam disso, entendido?

–Entendido. O que fazemos agora?

–Enquanto planejamos as ações, vamos ao mais urgente: Svant Zik já disse tudo o que sabia. Não há mais nada a extrair dele. Mandem espalhar o boato de que ele passou para nosso lado; insatisfeito com os alakranos que não respeitam os xawareks e os usam como carne de canhão. Também quero que espalhem que os xawareks estão ressentidos com os alakranos.

–Entendido – disse Xufu – vamos jogá-los uns contra outros.

–E isso mesmo que eu quero. Precisamos desestabilizar o inimigo. Até agora eles estavam tranquilos, escondidos neste planeta pela cortina de nuvens impenetráveis, confiantes que não seriam descobertos pela Suprema Confederação, até porquê o povo não tem idéia do que existe lá fora. Agora isso se acabou!

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10 de outubro de 2019 (191010).

No segundo mês de ação dos rebeldes, Tíber e algumas cidades vizinhas

estavam á beira do caos.

A produção baixou, o povo estava insatisfeito com os aumentos dos preços dos alimentos.

Os operários de algumas fábricas começaram a fazer greves, por causa do pouco que agora podiam comprar com as escassas moedas que recebiam. Os produtos do continente norte já não chegavam, porque Gren não tinha mais dinheiro para comprá-los, devido a pouca produção. Os agricultores não podiam comprar sementes e produtos para tratar a terra, e eram obrigados a abandonar as fazendas para ir a mendigar nas cidades.

–Estamos fazendo estragos – disse Xufu – agora o povo não tem mais medo de reclamar e sai em massa às ruas para protestar.

–Antes o povo não tinha nada para reclamar – disse Alan – os alakranos são espertos; mantiveram o povo com os bolsos e estômagos cheios por tempo demais; e o povo se acomodou como um rebanho de woks gordos e felizes, dando lã e leite; sem saber que ao final irão para o matadouro.

–Este era um povo amoroso e pacífico... – disse Xufu, desolado.

–Agora será um povo amoroso e guerreiro, Xufu. Vocês são humanos; e os humanos são uma raça amorosa e guerreira, como os peludos.

–Os peludos amorosos? Não acredito!

–Acredite, Xufu. Alguns deles à sua maneira, talvez ainda sejam.

*******.

Continua EM XEQUE MATE.

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O conto REVOLUÇÃO: PRIMEIRAS AÇÕES forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase II - Volume IV, Capítulo 31, páginas 73 a 78 e cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com

O volume 1 da saga pode ser comprado em:

clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 20/10/2016
Reeditado em 20/10/2016
Código do texto: T5797628
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