Era de Aquário


ERA DE AQUÁRIO

Miguel Carqueija




(excerto do diário de um guarda-costas)


A operação “saída de casa” começou cedo naquele dia. O senador Valdo tinha uma conferência marcada numa universidade, e não podia dispensar o pagamento que lhe fora prometido. Assim, logo às seis da manhã eu já tratava de ligar os radares, as teleobjetivas e os cachorros mecânicos, que puseram-se a vasculhar as alamedas de proteção da propriedade. O senador ocupava-se com seu traje, que usava com aprumo, enquanto eu tomava o cálice do meu calmante. Maurício surgiu em meu posto para dizer que três assassinos profissionais estavam ocultos na Alameda Nordeste, falando entre si com aparelhos especiais em suas bocas e orelhas, o que nos impedia de escutar a conversa. A alameda certamente não era segura para três tipos a pé, mas nunca se sabe que plano essa gente tem. Assistindo ao noticiário televisivo da manhã, eu soube que somente três deputados e um governador haviam sido assassinados na véspera. Quando o locutor ia dar maiores detalhes ouviu-se uma explosão e a estação saiu do ar. Provavelmente, pensei, puseram uma bomba por lá.
Lúcia surgiu para dizer que estava pronta e que o senador estava impaciente. Coloquei meu gorro-capacete afivelando-o cuidadosamente, diante do pomo-de-Adão. Ergui-me penosamente, sentia-me tresnoitado e desliguei a tv.
- Você já sabe que não vamos pela Nordeste?
- Não sei. Eu disse ao senador que é melhor pegar os três.
- Ele não gosta disso. Diz que se pegarmos os primeiros, logo enviarão outros piores.
- Se ele gosta de dormir rodeado de gente que quer matá-lo...
É claro que não perdi meu tempo a discutir questões filosóficas. Dei a Maurício algumas instruções para vigiar os intrusos e fui até o salão, onde estava o senador com sua maleta. Ele tem o trejeito de remexer os bigodes, coisa problemática com o capacete, que só deixa livres os olhos, o nariz e os lábios. Olhou-me com a resignação típica de um homem que convive com certos tipos apenas por necessidade.
- Então, Cid? Tudo pronto?
- Sem dúvida, senador. Não se preocupe com os três gajos que localizamos, deve ser alguma missão suicida, mas não piscarão um olho sem que nós saibamos.
- Eu estou cansado de tudo isso, Cid. Na minha idade, viver tomando precauções para não ser assassinado é exasperante.
- - O senhor é um patriota, senador – respondei idiotamente. Sabia que aquilo não o consolaria, mas meu verbo é deficiente.
Apertei o comutador e a parede deslizou, revelando a entrada do túnel. Lúcia chegou e entramos os três no cilindromóvel, fechando em seguida todas as entradas. Eu ia bem ao lado do senador e Lúcia vigiava a retaguarda, onde estavam os periscópios e as viseiras. Havia lugar para mais guardas, porém o senador era rebelde às precauções completas. Alegava pretender conservar sua sanidade mental. No fundo eu também preferia assim; um bando ruidoso acabaria com meus nervos já em pandarecos.
O cilindromóvel começou a deslizar nos trilhos, enquanto eu me comunicava com Lopes, através do aparelho de rádio. O senador escolheu a alameda Sul.
Chegamos sem incidentes às barreiras da Tijuca e os sinalizadores deram-nos passagem livre prioritária. Quando sobrevoamos a Rua Conde de Bonfim, Lúcia localizou um Besouro que se destacava de uma nuvem de helicarros e aerônibus e vinha nitidamente em nossa perseguição. Isso só acontecia porque o senador Valdo não usava escolta. Resmunguei aborrecido. As instruções que eu tinha não eram muito animadoras, já se vê: se alguém disparasse uma bala na direção da cabeça do senador e eu pudesse salvá-lo pondo a minha na frente, deveria fazê-lo.
Lúcia alertou todos os mecanismos de defesa, pura rotina aliás: um carro só, que poderia fazer?
Perguntas idiotas merecem respostas cretinas. Missões suicidas são comuns, mas raramente incluem nisso os veículos: gente se arranja facilmente, mas um bom carro equipado para homicídio...
O fato é que o Besouro aumentou subitamente a velocidade. Julguei ser a fuga aos carros da polícia, que já vinham, o único motivo. Que nada! De repente lá vinha aquilo em cima de nós: nenhuma cobertura de ondas poderia impedir o choque com tamanha massa. Felizmente o Eurípides – como chamamos o cérebro eletrônico do cilindromóvel – estava bem lubrificado: manobrou com destreza escapando ao perigo uma, duas, três, quatro vezes. Então o carro atacante perdeu o fôlego e afastou-se, ainda perseguido pela polícia. Procurei a garrafa térmica do café, pois os sacolejões não foram brincadeira.
Chegamos enfim à Avenida Otávio Ribeiro da Cunha, à Nova Universidade. O reitor em pessoa lá estava, acompanhado de três moças, creio que para não dar impressão muito má. Ele ignorou solenemente a mim e a Lúcia:
- Seja bem-vindo, senador. Fez uma boa viagem?
O senador foi bastante hipócrita para responder que havia feito uma excelente viagem.
- Vamos então, senador, e fique tranquilo: aqui as medidas de segurança são excelentes.
Eu gostaria de acreditar nisso, mas o cabineiro do elevador que nos conduziu ao abrigo subterrâneo tinha um braço na tipóia...
O reitor conduziu-nos então à cantina e ofereceu-nos um café com bolinhos. Tiramos nossos analisadores e, após constatar a ausência de veneno, servimo-nos com prazer. O senador parecia um pouquinho menos desanimado que de costume.
- Haverá cerca de mil estudantes, mais ou menos – disse o reitor.
- Espero que alguns, ao menos, me olhem com simpatia.
- Ora, Senador Lafayette, o senhor não é figura impopular.
Era verdade. Em Brasília ele só havia sido alvejado umas cinco ou seis vezes, desde a última reeleição. No Rio, onde há mais gente e portanto mais inimigos, Valdo só ficava pouco tempo; mesmo assim, nem sempre a sua casa era espreitada. Portanto ele não chegava a ser impopular, como o Senador Monteiro, por exemplo. Esse mantinha um verdadeiro batalhão na sua fortaleza em Brasília e andava acompanhado por dois sósias. Em último caso, havia sempre a possibilidade de matarem o homem errado.
Quando chegou a hora da conferencia encaminhamo-nos para o salão, ocupando a cabine blindada no meio do palco. O número de policiais presentes, homens, mulheres e robôs, não era grande: uns trezentos se tanto. Afinal, aquela universidade gozava de boa reputação. Não nos atrasamos muito. Somente uns cento e cinquenta alunos, mais ou menos, apedrejaram o palco e atiraram tomates e ovos podres, que não nos podiam atingir. Depois de uns trinta minutos de pancadaria, todos os perturbadores foram retirados e o senador pôde dar início à sua palestra:

“Caros universitários,

estudantes desta ilustre casa, que tanta glória tem dado ao Brasil;

Neste momento, considerando os desafios do futuro, as conquistas do presente, as glórias do passado, não posso deixar de me entusiasmar, por tudo o quanto nas lides diversas da atividade humana, se oferece para nossa reflexão, neste século de tantos avanços e conhecimentos, em que nós vivemos.
Não somos saudosistas. Enfrentamos dificuldades que os emulam, mas sabemos que a humanidade caminha lenta, mas seguramente, para a resolução de todos os problemas. Basta fazer uma comparação: recuemos mil anos e fixemos nosso olhar nos tempos sombrios, tétricos, obscurantistas da Idade Média, a época mais terrível da História. Sabemos nós que a selvageria e a crueldade, naqueles tempos, felizmente já tão afastados de nós, andavam à solta...
Mas o que importa agora realmente, para todos nós, é saber que a nossa grande nação, voltada para o futuro, tudo espera do porvir, já que o Brasil, por uma indeclinável predestinação que todos nós sentimos em nosso âmago, é verdadeiramente o país do futuro... o grandioso futuro de paz, de prosperidade e de liderança no concerto das nações, esse futuro maravilhoso que já nos aguarda um pouco à nossa frente...”



imagem pixabay (Brasília)