Ainda pode piorar

Haviam lhe avisado que a situação abaixo estava bem ruim e ele se preparou a contento - ou assim imaginou. Só quando a rampa de descida da vedeta que o conduzira até a superfície se abriu, e viu-se envolvido num gélido turbilhão branco, é que percebeu o seu erro de cálculo. Ajustou os óculos de neve, subiu o zíper da jaqueta térmica e enrolou o cachecol em torno do nariz e da boca como uma máscara. Em seguida, valise em punho, arriscou-se a dar o primeiro passo na neve fresca que cobria o solo, com uma camada que deveria ter já meio metro de espessura. A visibilidade era péssima, atingindo talvez 400 metros, e seu hálito se condensava em nuvens de vapor a cada vez que respirava. Pelo menos, as luzes externas da base da Federação Galática em Aachen 6987-IIc estavam acesas, e lhe indicavam a direção correta. Um comitê de recepção avançou penosamente ao seu encontro, dois vultos escuros bem melhor preparados do que ele para a tempestade inclemente.

- Inspetor Hasselblad! - Ouviu uma voz feminina gritar. Ele acenou com o braço livre.

A dupla de tripulantes aproximou-se e houve uma rápida apresentação.

- Eu sou Upeksha Ranasinghe, comandante da base, e este é o meu oficial de ciências, Lahiru Perera! - Gritou a mulher, para se fazer ouvir acima do vento. - Vamos sair dessa tempestade!

Caminharam a favor do vento cerca de 100 metros até a entrada da base. Finalmente, entraram numa antessala e o frio e a neve ficaram para trás.

- Estamos na região subtropical do planeta? - Indagou Hasselblad assim que viu-se abrigado e com uma caneca de café quente nas mãos.

- Até quinze dias atrás, essa era a realidade, inspetor - disse Perera, um homem baixo, cor de cobre, cerca de 40 anos, cabelo preto e liso. - Quando a Anomalia Orbital n° 1 surgiu, as temperaturas começaram a cair e chegamos ao ponto em que estamos hoje.

- A queda na temperatura tem sido constante? - Indagou Hasselblad, enquanto fazia anotações numa sensitela que havia retirado de um bolso interno da jaqueta.

- Sim. Cerca de meio grau Centígrado a cada 22,6 horas da Terra.

- Notável! - Exclamou Hasselblad. - É o mesmo padrão verificado em Arapa-IV.

- Então podemos ter alguma esperança, inspetor? - Indagou aflita Ranasinghe, uma mulher miúda, cor de oliva, feições delicadas e olhos amendoados, pouco mais velha do que Perera.

- Se eu conseguir descobrir o que acionou o dispositivo... talvez. Em Arapa-IV, a tarefa foi relativamente fácil: o motivo fazia parte das tradições orais das melkis. Precisei apenas recriar a circunstância para ter certeza.

- Aqui, a situação já está em andamento e não sabemos o que a desencadeou. É como procurar uma agulha no palheiro, inspetor - comentou Perera.

- Estou ciente disso - admitiu com pesar Hasselblad. - Também sei que centenas de milhões de habitantes de Aachen 6987-IIb poderão morrer se não descobrirmos como parar o fenômeno. É uma situação dramática.

- Por sua experiência em Arapa-IV, crê que existe alguma similaridade com a situação no planeta vizinho, inspetor? - Indagou Perera.

- Segundo os relatórios que li na viagem até aqui, a classificação dos habitantes de Aachen 6987-IIb é similar à das melkis de Arapa-IV - recapitulou Hasselblad. - São insetóides sociais. As semelhanças param por aí. Diferentemente das melkis, eles dominam a tecnologia da viagem interestelar e não estão restritos a um único planeta. Mas ainda não tenho uma ideia precisa do que pode ter desencadeado o surgimento da primeira anomalia e nem mesmo sei se poderemos impedir um desfecho trágico...

- Este planeta é uma amostra do que Aachen 6987-IIb pode se tornar em breve - disse a comandante. - Só que aqui, a população é reduzida e poderemos evacuá-la caso as coisas piorem. É inviável fazer isso no mundo vizinho.

- Estou plenamente ciente da minha responsabilidade - atalhou Hasselblad. - Não teria aceito vir até aqui se não achasse que poderia fazer alguma diferença.

- Temos confiança no seu trabalho, inspetor - retrucou Ranasinghe. - Mas pedimos que descubra algo, rápido. A situação ainda pode piorar muito!

* * *

- Dois cruzadores do Corpo de Monitores formam uma armada? - Perguntou a capitã Marjani Nnamani em tom jocoso, para seu correspondente na nave vizinha. Ambos os veículos estavam entrando em órbita de Aachen 6987-IIa, o planeta mais interno daquele sistema, centralizado por uma estrela alaranjada K2.

- O que sei é que não somos uma frota de guerra - respondeu calmamente o capitão Oscar Espinoza, da ponte de comando de sua nave. - Nem esta é uma missão de combate, capitã.

Recostada em sua poltrona de comando, Nnamani brincava com as trancinhas do seu cabelo, enfeitadas por contas coloridas.

- É sempre bom lembrar que somos uma força de defesa civil, e não combatentes, Espinoza - aduziu. - Mas essa expedição talvez seja a coisa mais próxima de uma missão de combate que jamais veremos.

- Se for, o inimigo ainda não deu o ar de sua graça - respondeu Espinoza. - Mas se os cálculos do inspetor Hasselblad estiverem corretos... e pela minha experiência com ele imagino que estão... isso deverá ocorrer muito em breve.

- Estou pronta para cumprir a minha parte do plano, capitão. Em precisamente... 60 segundos.

- Mantendo posição - disse Espinoza.

Ambas as naves circulavam em paralelo o planeta, pouco maior do que Mercúrio, e igualmente sem atmosfera, numa órbita geoestacionária, mantendo uma separação entre uma e outra de 5 km. No tempo determinado, a nave de Nnamani lançou uma boia de sinalização no espaço entre os dois veículos, e ela posicionou-se exatamente a 2,5 km de distância entre uma nave e outra.

- A qualquer momento - disse Espinoza, olhos fixos num cronômetro digital no painel à sua frente.

- Temos contato, capitão - disse o navegador de sua posição, à frente da poltrona do comandante.

- Ponha na tela - ordenou Espinoza.

A boia espacial, vista com ampliação máxima, oscilou por um breve momento como que atingida por uma onda gravitacional, e depois foi literalmente despedaçada por algo que não podia ser visto, exceto pelo efeito provocado: ocultava as estrelas por trás dele. Quando ambas as naves sobrevoaram a face iluminada do planeta, a Anomalia Orbital revelou-se como uma sombra, eclipsando gradualmente a superfície do mundo abaixo.

- Qual é o diâmetro dessa coisa? - Questionou fascinado Oscar Espinoza.

- Seiscentos quilômetros... e continua se expandindo, capitão - comentou o navegador do seu posto. - Estranho... o disco parece sólido, mas não tem massa mensurável no gravímetro. É como se não houvesse nada lá fora!

- Aquela boia não foi destruída por "nada" - ponderou Espinoza. - E começo a duvidar que mesmo mísseis nucleares ou projetores de partículas possam causar algum dano à essa coisa. É bom que Hasselblad tire algum coelho da cartola, e rápido! O próximo círculo vai surgir em torno de um planeta densamente povoado.

* * *

- Inspetor... isso é suicídio! - Marjani Nnamani estava consternada.

- Eu diria que estou testando uma nova hipótese, já que a primeira falhou ao redor de Aachen 6987-IIa - respondeu Hasselblad, enquanto verificava se o traje espacial que vestia estava corretamente vedado. Finalmente, apanhou o capacete e encaixou-o.

A conversa transcorria numa das câmaras de descompressão do cruzador da capitã Marjani. Hasselblad pedira para ser lançado, num bote salva-vidas, exatamente nas mesmas coordenadas da boia que fora destruída no primeiro planeta - só que no ponto correspondente em órbita do segundo planeta, habitado por centenas de milhões de criaturas inteligentes.

- Eu estou pronto - disse Hasselblad. - E não creio que esteja cometendo suicídio. Pensei cuidadosamente numa solução para o problema, e essa me pareceu a mais factível.

- Espero que esteja certo, inspetor.

- Saberemos muito em breve - disse ele, abrindo a escotilha do salva-vidas e acomodando-se no espaço exíguo.

- Kila la kheri! - Exclamou a capitã. - É "boa sorte", em suaíli.

- Um pouco de sorte sempre é bem-vinda - disse Hasselblad. E fechou a escotilha sobre si.

* * *

- Ele não me contou essa parte do plano, ou eu o teria demovido - disse mortificado o capitão Espinoza ao saber das últimas notícias sobre Hasselblad.

- Provavelmente, foi por isso que ele me procurou, e não a você - analisou Marjani Nnamani. - Mas eu acredito que ele sabe exatamente o que está fazendo.

- Sim, ele sempre sabe - retrucou Espinoza. - Mas nós vimos o que aquela coisa fez à boia espacial. Acha que o inspetor terá alguma chance?

- Você deveria confiar mais no seu amigo, capitão - disse Nnamani, fitando o cronômetro digital em seu console.

A hora havia chegado.

* * *

Hasselblad nunca sentira uma solidão tão grande quanto aquela que agora experimentava, sozinho, flutuando em órbita de um planeta habitado, dentro de um minúsculo bote salva-vidas.

Se estivesse errado em suas premissas, sua vida acabaria de modo desagradável em poucos instantes.

Pedira para que não fizessem contato pelo rádio, a não ser que algo extraordinário acontecesse. E ali ficou, em silêncio, pensando em todas as coisas incomuns que vira ao longo de sua vida e em tudo que não tivera tempo de fazer, sempre correndo de um lado a outro da Galáxia, resolvendo problemas alheios.

Tanto por fazer, e tudo tão perto de acabar!

O rádio do traje espacial deu sinal de vida. Alguma coisa acontecera! Ouviu a voz de Espinoza em seus fones de ouvido:

- Inspetor! Estou em órbita de Aachen 6987-IIa! O círculo desapareceu!

E então, ele soube que estava certo.

Em seguida, a voz de Upeksha Ranasinghe:

- Inspetor Hasselblad... o nosso círculo também desapareceu!

Hasselblad sentiu uma onda de alegria e alívio invadi-lo. E também de amor, por todos aqueles milhões de seres abaixo dele, e que agora estavam salvos.

O rádio foi ativado pela terceira vez.

- Inspetor Hasselblad, fala a capitã Marjani Nnamani. Já se passaram trinta segundos além do tempo previsto, as Anomalias Orbitais desapareceram, então creio que é seguro ir buscá-lo.

E com emoção mal disfarçada:

- As bebidas esta noite, são por minha conta.

- [18-05-2017]