Em trânsito

- Lá vem outro! - Exclamou Piero Monicelli, vendo um ponto luminoso surgir na borda do radar de longa distância.

Na ponte do cruzador do Corpo de Monitores comandado pelo capitão Oscar Espinoza, a tensão aumentava a cada instante. Estavam orbitando Moabe-6387-V, um exoplaneta de um sistema solar localizado pouco acima do plano da Galáxia, depois de receber um chamado de emergência dos nativos, colonos huganari. Os huganari, criaturas que lembravam grandes cactos saguaro semoventes, de cor azul-escura, haviam solicitado a presença do Corpo de Monitores, descrevendo o que seria uma invasão alienígena. Os invasores aparentemente eram extragaláticos, e não utilizavam Tradutores Universais, o que dificultava qualquer tentativa de contato.

- Entrando no visual em... 15 segundos - prosseguiu o navegador, desviando o olhar para a grande tela frontal.

A princípio, nada se via além da escuridão pontilhada de estrelas do espaço. E então subitamente, um pontinho prateado surgiu, num rumo que o levaria a passar exatamente em frente ao cruzador.

- Esse é um dos grandes... modelo "alicerce" - avaliou Irma Gabor, a Chefe de Operações.

O ponto na tela tornou-se um veículo metálico em forma de "U", medindo cerca de 600 m de comprimento. Ele desacelerou enquanto aproximava-se, e finalmente, entrou em órbita de Moabe-6387-V. Instantes depois, as duas "pernas" do U começaram a se desmanchar em grandes blocos cilíndricos, os quais desceram, espiralando, para a superfície do mundo abaixo. Em órbita, restou apenas a seção intermediária do objeto, um cilindro medindo cerca de 50 m de comprimento. O objeto começou então a afastar-se vagarosamente do planeta, tomando novamente o rumo do espaço exterior.

- Vamos segui-lo - determinou o capitão Espinoza.

Mantendo uma distância segura, o cruzador partiu no encalço do módulo fugitivo.

* * *

[Uma semana antes]

Moabe-6387-V era o quinto planeta de uma estrela branca, classe F. Fora colonizado à cerca de 40 anos-padrão pelos huganari, vegetais inteligentes que se comunicavam por gestos utilizando seus quatro braços. O uso do Tradutor Universal por não-nativos era, por conseguinte, absolutamente indispensável.

O cruzador do Corpo de Monitores havia pousado na grelha de aterrissagem junto à principal colônia huganari no planeta, um local que poderia facilmente ser confundido por terrestres com um parque arborizado: fora algumas pequenas estruturas cobertas, que abrigavam maquinários ou serviam de depósitos de materiais, não se via ali nenhum edifício ou residência permanente. Os huganari se distribuíam pelo campo, em meio à vegetação nativa que resplandecia em vários tons de azul, de forma aparentemente aleatória. Também não possuíam uma hierarquia ou interlocutor privilegiado, de modo que um problema que afetava a todos, podia ser endereçado à qualquer indivíduo. E, embora não constituíssem uma mente coletiva nem possuíssem capacidades telepáticas, conversas neste nível tornavam-se de conhecimento universal em poucos instantes.

Espinoza e sua tripulação - o navegador Piero Monicelli, a Chefe de Operações Irma Gabor, a médica de bordo, Nora Takahata, e o engenheiro de voo Hans Oberth - armaram acampamento próximo à grelha onde estava pousado o cruzador, imaginando que talvez tivessem que decolar rapidamente. O local escolhido fora um bosquete de plantas que lembravam enormes agaves rabos-de-raposa num tom de azul cerúleo, em torno de uma nascente de água cristalina. Mais adiante, a nascente tornava-se um riacho, no ponto onde as rabos-de-raposa rareavam até dar espaço para gramíneas altas e macias.

Como se fossem plantas decorativas, três huganari haviam se posicionado em frente às três barracas montadas pelos Monitores (dormitório, cozinha e banheiro), e aguardaram imóveis até que Espinoza lhes dirigisse a palavra.

- Eu sou o capitão Espinoza, do Corpo de Monitores - apresentou-se. - Sobrevoamos um dos locais indicados em sua queixa e vimos que há uma estrutura sendo construída, embora não saibamos a que se destina. Tampouco avistamos os construtores, ou máquinas de algum tipo, trabalhando no local. Quem quer que seja, parece não estar querendo chamar muito a atenção, ao menos por enquanto.

- Registramos cinco dessas estruturas em construção ao longo do equador deste planeta - explicou o huganari através do Tradutor Universal, enquanto seus braços moviam-se numa dança exótica. - Como observou, não provocaram ainda qualquer impacto sobre nossa colônia, mas como não sabemos o que desejam ou de onde vieram, é preciso que o Corpo de Monitores intervenha.

- O que espera que façamos?

- Que descubram se estas estruturas representam uma ameaça à nossa existência e tomem providências em caso afirmativo. Veja, há bastante espaço neste planeta para uma ou mais espécies inteligentes conviverem sem qualquer problema, mas estes construtores sequer tentaram fazer contato conosco, que nos estabelecemos aqui há décadas.

- Bastante razoável - ponderou Espinoza. - Vou deixar parte da minha equipe em terra e estabelecer um perímetro de vigilância em torno de Moabe-6387-V. Se pudermos interceptar uma das naves dos construtores antes que pouse, talvez consigamos descobrir o que planejam.

* * *

Nora Takahata e Hans Oberth desceram do pequeno veículo auxiliar de seis rodas, que os transportara da base até um dos sítios utilizados pelos construtores. O local ficava a cerca de 30 km da colônia huganari, num vale desértico cercado por montanhas. Este tipo de local inóspito parecia ser a escolha-padrão dos visitantes, fosse para causar o mínimo de impacto ao ecossistema local, fosse para não atrair a atenção de testemunhas indesejadas.

A tarde ia pelo meio. Vistas da parte alta do vale, à sombra das montanhas, as estruturas montadas lembravam grandes blocos cilíndricos num tom de grafite metálico, com cerca de 5 m de altura por 5 m de diâmetro, dispostos em duas fileiras e espaçados a intervalos de 4 m, ao longo de cerca de 500 m. Entre uma fileira e outra, havia uma faixa de terra livre, com cerca de 10 m de largura.

- O que lhe parece isso, Hans? - Indagou a médica.

- Olhando aqui de cima... bases de sustentação para alguma coisa que será colocada por cima das colunas.

Nora Takahata consultou o visor de um escâner remoto que trazia à tiracolo.

- Não emitem radiação... não há nenhuma fonte de energia em funcionamento. Parecem mesmo ser alicerces para alguma construção maior.

- O que pode indicar que mais naves dos construtores estão para chegar.

- Bem... vamos montar acampamento e passar aqui esta noite. Ver se acontece alguma coisa...

- Eu fico com o primeiro turno, então. Vou reportar à base.

- Certo.

* * *

Sonhou que estava mergulhando nos oceanos de Hanara-VII, um planeta integralmente coberto pelas águas, montada numa criatura nativa semi-inteligente, o gunadário. Tudo ia muito bem, até que subitamente o animal, espécie de enguia gigante de três metros de comprimento, começou a corcovear.

Acordou com Hans Oberth sacudindo-a.

- Nora... acorde! Está acontecendo alguma coisa lá fora...

Sentou-se, totalmente desperta, ainda dentro do saco de dormir.

- As colunas?

- Não, no céu. Venha ver.

Abriu o zíper do saco de dormir, calçou rapidamente as botas, e de short e camiseta, saiu para fora da barraca. Olhou para o alto. A madrugada ia pelo meio e o céu do deserto, como seria de esperar na periferia da Galáxia, era quase que totalmente negro, com raras estrelas aqui e ali. Algumas delas compunham uma estranha constelação...

- Aquilo não é uma constelação - disse por fim, boca aberta.

Cinco "estrelas", num pentagrama, quase no zênite.

- Liguei para o Espinoza, ele está em órbita - disse Oberth, parando ao lado dela. - São cinco naves dos construtores em forma de cubo, mantendo formação sobre este ponto do deserto faz uma meia hora.

- Algum contato com eles?

- Não respondem. Provavelmente, não são nem propriamente astronaves, mas blocos de construção.

- Bem provável... - assentiu a médica.

O intercomunicador do engenheiro deu sinal de vida.

- Oberth?

- Sim, capitão?

- Um dos cubos está se desmanchando... em cubos menores. Atenção, pois devem estar se dirigindo para aí. Mantenham-se afastados!

- Certo!

Aguardaram. Lá no alto, o vértice do pentagrama começou a piscar e desapareceu. Minutos depois, silenciosamente, dezenas de cubos de cerca de 20 m de aresta surgiram sobre o vale, brilhando numa pálida fosforescência prateada. Com uma impressionante regularidade, começaram a se posicionar sobre as colunas e a montar estruturas que pareciam saídas de uma exposição de arte conceitual.

- Mas o que será isso? - Murmurou Nora Takahata.

O pentagrama no céu, agora se tornara um quadrado.

* * *

[Uma semana depois]

O cruzador do Corpo de Monitores, transportando Espinoza, Irma Gabor e Piero Monicelli, estava no encalço do "rebocador" que transportara mais alicerces para Moabe-6387-V, a terceira remessa desde que haviam chegado ao planeta uma semana atrás. Os sítios de construção eram agora 15, todos localizados no equador planetário. Quando o veículo mergulhou no hiperespaço, mantiveram-se atrás dele à uma distância segura.

- Para onde está nos levando? - Indagou Espinoza ao navegador.

- Para fora da Galáxia - Monicelli mantinha os olhos fixados nas telas onde eram exibidas as leituras dos monitores de longo alcance e as cartas de navegação do espaço intergalático próximo.

- Alguma direção específica?

O navegador consultou suas cartas.

- Mantendo este rumo, direto para a Galáxia Anã do Cão Maior... cerca de 30 mil anos-luz distante.

- Não temos autonomia para tanto - retrucou Espinoza, intrigado. - Que tipo de propulsão esses caras usam?

- Creio que não será preciso ir tão longe... - calculou Monicelli. - Há uma outra formação nessa rota, bem mais próxima do que a Galáxia Anã: o Rabicho de Nawagar. Fica a cerca de 2500 anos-luz de nós... dentro da margem de segurança.

- Rabicho de Nawagar?

- É uma ponte de estrelas... um pequeno aglomerado estelar aberto, de cerca de 100 anos-luz de comprimento contendo algumas dezenas de estrelas. Provavelmente, tudo o que restou da colisão entre uma galáxia anã e a Via Láctea. É muito provável que os construtores sejam dali.

Do seu posto, Irma Gabor voltou-se para os outros dois, após consultar as telas de dados à sua frente.

- Não há nenhum registro em tempos históricos de qualquer atividade no Rabicho de Nawagar que possamos vincular ao que está acontecendo no sistema Moabe-6387.

- Vida inteligente?

- Nada registrado. O setor não foi considerado relevante o bastante sequer para receber um posto avançado de vigilância.

- Está desacelerando - anunciou o navegador triunfalmente. - O destino é mesmo algum ponto no Rabicho!

- Previsão de chegada?

- Cerca de 20 horas. Podemos ir comer alguma coisa... e dormir.

- Falou tudo - disse a Chefe de Operações, espreguiçando-se.

- Vão vocês - determinou o capitão. - Estamos com tripulação reduzida e alguém tem que ficar na ponte de comando.

- É o regulamento - assentiu Irma, gravemente.

E erguendo-se de sua poltrona:

- Não se preocupe, eu lhe trago alguma coisa quente do refeitório.

- Alguma coisa quente parece bom - agradeceu Espinoza, com um sorriso.

* * *

- Você vai querer almoçar agora? - Perguntou Hans Oberth, curvando-se sobre Nora Takahata, que sentada à uma mesa de campanha, atualizava um relatório em seu tablet subespacial. Ambos haviam retornado à base provisória, junto à grelha de aterrissagem da colônia huganari, após a partida dos três companheiros do Corpo de Monitores. O engenheiro acrescentou, piscando um olho:

- Espinoza nos deixou algumas garrafas daquele vinho de arroz de Merkari-IV.

A médica lançou-lhe um olhar agradecido.

- Boas falas, Hans. Os dois únicos DBDG num raio de vários parsec merecem pelo menos um pouco de conforto.

O engenheiro franziu a testa.

- Não me lembre essa parte de "os únicos", Nora. Me dá um frio na espinha...

Ela desligou o tablet e segurou-o pelo pulso esquerdo.

- Calma... o capitão avisou que iria manter silêncio no rádio, mas pelo tempo que partiu, já deve estar voltando; nós não vamos ficar aqui para sempre.

E aumentando a pressão no pulso dele:

- Até parece que você não está satisfeito em ter a sua Eva particular nesse paraíso huganari...

Oberth riu.

- Nora... só você pra me alegrar!

- Ah, sei disso - respondeu ela, olhando-o com ternura.

O colóquio foi interrompido pelo som dos jatos de manobra de uma nave espacial desacelerando ao entrar na atmosfera. Ergueram a cabeça e avistaram um cruzador do Corpo de Monitores posicionando-se verticalmente sobre a grelha. Os raios tratores foram acionados automaticamente, e delicadamente começaram a puxar o veículo para baixo.

- Eu não disse? - A médica soltou o pulso de Oberth e ergueu-se.

Com um último suspiro, os motores do cruzador foram desligados. Ele ficou imóvel sobre uma seção da grelha, e nada mais aconteceu.

- Onde estão eles? - Indagou Oberth, apreensivo. - Por que não descem?

- Bem... vamos lá ver - decidiu a médica.

Subiram pelo elevador principal até o nível da grelha, 60 m acima do solo. O cruzador estava bem à frente deles, sem nenhum dano aparente. Nora Takahata acionou a abertura remota de uma escotilha de serviço e entraram na nave. Tudo parecia normal, como constataram rapidamente; nenhuma falha no suporte de vida, iluminação interna ligada, instrumentos funcionando.

Mas não havia nenhum sinal dos outros três.

[Continua]

- [13-07-2017]