BIOLOGIAS ESCALENAS

(tentativa humilde de reproduzir o estilo irreproduzível de Lovecraft)

Mais uma vez fui arrebatado do alto daquele píncaro ciclópico, mais uma vez desperto de minhas fantasias oníricas pouco antes de atingir meus objetivos, de vislumbrar lá embaixo as geometrias obscenas desafiando o contínuo do espaço-tempo, das estrelas pentagonais em torno daqueles abismos inonimáveis, do odor indefinível e insuportável da corrupção orgânica invadindo tudo ao redor. Estava claro que os Antigos não queriam que eu visse aquilo, e ficava surpreso comigo mesmo como fui capaz de enganá-los tantas vezes, de chegar tão perto repetitivamente... Mas não era ainda daquela vez que enfim descobriria o secreto caminho para Kadath, cidade sagrada dos Outros Deuses...

Percebi mais uma vez ter sido lançado para minha fétida carcaça do mundo material, indiferente a todos os meus esforços para tentar decair ao menos no nível na Terra Etérea, de onde o mundo onírico era mais facilmente alcançável. O cheiro da podridão carnal era insuportável. Algo que já esperava, dentro daquele caixão, enterrado por vários palmos de terra há alguns meses. Agora sabia, me jogaram de novo lá como castigo por minha ousadia, por mais uma vez ousar atingir sua sagrada cidade. Mas isto não me desanimou. Já havia feito isto várias vezes, e sabia como me desligar rápido do mundo pesado da matéria. Os ângulos tetradimensionais que deveria tomar já eram velhos conhecidos, e assim me desvencilhei logo daquelas carnes podres para acordar no templo de Azathoth, no planeta terra etéreo côncavo que já me era tão familiar.

- Eis você aqui de novo... - disse meu bom amigo feiticeiro quando abri meus olhos naquele mundo etéreo. - Quando vai desistir desta loucura? É Burrice!

O cheiro podre de meu antigo corpo material em decomposição não saia de minhas narinas etéreas, e implorei:

- Por favor, me dê uma cabaça daquele vinho da lua dos zogs, pra eu lavar este cheiro horrível que já me desce pela garganta!

Degluti todo o líquido agradecido, apagando aquela lembrança odorífica abominável.

- Vou voltar...

- Carter! Não! É loucura!

- Preciso!

Me levantei, observando de novo o estranho quarto de ângulos e faces que blasfemavam contra as milenares convenções euclideanas. Mesmo no plano etéreo, onde a geometria de espaços tetradimensionais era parcialmente compreendida e aceita, as arestas que partiam daqueles vértices ainda desafiavam nossos entendimentos. Talvez fossem conceitos inalcancáveis para o entendimento humano, por mais que transubstanciassem seus corpos para níveis de realidades cada vez mais sutis. Poderiam ser ideias inalcançáveis pela organização original em si, e por qualquer desdobramento dimensional possível delas. Como espaços tridimensionais inalcançáveis quando todo e qualquer elemento original fosse coplanar. Por mais que fossem combinados, nunca dariam o salto, nunca acrescentariam uma dimensão às suas naturezas...

Saí daquela atmosfera carregada, da nauseante luz violácea dos fungos que infestavam os cantos do quarto, para o ar livre. A lua cheia no alto do céu confirmava ser meia noite. A floresta raquítica, galhos desprovidos de folhagens, dominavam toda a cena em volta. Pareciam se mover. Não, se moviam de fato! Brilhavam! Exibiam de todas as partes aquela cor indescritível, doentia, impossível de ser descrita em palavras. E que nunca poderia existir... Mas existia! Estava lá!

- Volte, Carter! Não é seguro...

Seguro... O que era seguro? Permanecer naquele templo de Azathoth por toda a eternidade? Sem nunca evoluir? Por quanto tempo? E se os corpos etéreos fossem eternos? Permaneceriam eternamente estagnados? Não, isto não era nada aceitável para mim! Queria continuar tentando. Poderia me acabar tentando? Sim, poderia! Mas, de um jeito ou de outro, estaria tentando!

A embarcação mais uma vez se aproximava, no meio do rio-túnel que ligava a Terra à Lua cruzando o éter do espaço cósmico. Três fileiras de remos, impulsionadas por remadores invisíveis, surgiam de cada um dos três lados da embarcação tetradimensional, o esquerdo, o direito e o OUTRO LADO... Reconheci o capitão, com sua boca anormalmente grande e as duas protuberâncias visíveis por debaixo das faixas imundas de seu fétido turbante. Ele me convidou, e eu entrei de novo no barco. Tentaria outra vez chegar em Kadath...