O Protocolo

O PROTOCOLO

B. F. SILVA CORDEIRO

De 03 a 07/05/2017

Quando Lúcia Medeiros passava enchiam de inquietantes pretensões os ávidos olhos curiosos de qualquer rapaz. Instantaneamente, como em um filme hollydiano, os mais impetuosos homens disparavam-se ao seu redor galanteantes, transbordando-se em ardentes veleidades luxuriosas. A jovem mulher, por sua vez, conhecedora de seu virtual e potencial ímã de atração humana esnobava todo aquele seu poder fazendo arrancar de quem quer que fosse - ardentes suspiros e inimagináveis juramentos de amor. Ela era uma mulher que jamais se limitava à imposta efêmera, modesta e ilusão passagem tão breve do ser. Verdadeiramente ela era aquilo que era. Um ser desnudo, desprovido da máscara cruel e hipócrita que força o ser humano a usá-la. Decididamente, ela parecia não estar disposta a tamanha desventura. Deveria ser o que realmente era; devia sempre estar pronta para ser vista como devesse ser de fato. Entretanto, ela não era a perfeição em pessoa – e como em todo ser humano - na verdade, - havia momentos em que Lúcia mantinha um quê de preocupação o qual a deixava em completo oceano de angústia e sofrimento. Achava, a mulher, que seu rosto não era lá tão belo quanto lhe diziam e que nem possuía tanto magnetismo, embora, mesmo assim, inevitavelmente permitia – ainda que involuntário – que o comportamento aparente negativo e natural do ser lhe dominasse. E essa suposta descoberta momentânea, às vezes, fazia-lhe cair em profunda e dolorosa inquietação, – fato esse, que também não fugiria do reino humanoide. Pois, todo ser é demais inquieto e preocupado a todo instante. Quer seja decorrente de alguma presumida descoberta, quer seja pela fértil intenção de ser apenas esnobe. De uma forma ou de outra, ele se infla e se revela a todo instante.

Aconteceu que, nesse dia, exatamente nesse momento dessas suas preocupações, diria até mesmo digressões, ela passou a se comportar de forma não muito ... poderia se dizer... compreendida: passou a ficar horas e horas defronte ao espelho se autoanalisando minuciosamente. Parecia que a mulher estivesse passando por uma crise depressiva qualquer, talvez dessas que a pessoa se isola e passa a temer a tudo e a todos. Tamanho fora esse seu estado melancólico que – caso alguém a visse naquele momento, podia-se até mesmo a jurar que a jovem mulher estivesse na mesma dimensão daqueles que somente sabem que estão vivos porque ainda respiram.

Ali, em frente ao espelho, ela passou suave a sua delicada e longilínea mão direita sobre uma das orelhas observando-a longamente. Em seguida, deslizou a esquerda sobre a outra orelha e fez repetir o mesmo movimento. Só que desta vez fez soltar, involuntário, uma interjeição sussurrada, solitária e quase incompreensível: “huum!”. O som, embora tivesse sido liberado fraco, parecia ecoar, preenchendo todo o pequeno e sombrio quarto onde ela se encontrava. Ele era iluminado apenas por uma luz tênue, quase opaca, refletindo em sua face uma leve sombra de um quadro antigo pendurado e suavemente desnivelado na parede, gasto pelo tempo, quase não dando para distinguir as duas pessoas que nele se apresentavam. A identificação se restringia apenas a um deslumbrado beijo mútuo do casal o qual era a única imagem ainda estar quase conservada, ao olhá-lo com mais cuidado; fora essa observada admiração estonteante, tudo o que se encontrava em sua volta não possuía a nitidez necessária para que pudesse contemplar ou fazer distinções. Ainda assim, poderia se afirmar que a atmosfera do quarto parecia se harmonizar com a igual intenção discordante das qualidades que eram atribuídas à mulher, embora ela não sentisse dasagrado ou incômodo algum diante daquele arrepiante e sinistro aposento, não fosse esse seu estado emocional abalado e confuso.

Em seguida, passou abruptamente a fitar pelo espelho sua testa com os olhos enormes, terrivelmente abertos e sobressaltados. Com esse movimento as dobras da pele sobressaíam-se em excesso formando algumas linhas franzidas, irregulares. Segundos depois, mais uma vez soltou aquele mesmo huum que havia soltado momentos antes, com a mesma ausência de intensidade, fazendo o mesmo eco. Seguindo o mesmo ritual, agora ela passava suas mãos sobre seus enormes, lisos e pretos cabelos que lhe caíam até quase a sua cintura, fina como a obra de arte intencional da escultura de um belo violão muito bem afinado. Por conseguinte, ela ia passando uma de suas mãos agora sobre seu pescoço. Agora, ela parecia ter mais cautela e ia passando sua mão vagarosamente, com a desconfiança de se certificar de que não fosse lhe escapar qualquer detalhe. Olhava-o de frente e de ambos lados numa breve e duvidosa pausa entre as passagens, mas dessa vez não emitia qualquer som. Subitamente, algo lhe fez retornar a fazer mais uma vez aquele mesmo processo. Agora, o encarava de forma mais desconfiada ainda, assim como o mesmo olhar enigmático, misterioso da Monalisa, parecendo estar procurando por algo de errado. No entanto, deu sequência àquilo que se prontificara a fazer sem maiores dúvidas. Deprimida, chegou a vez de observar seu nariz. Mas, ainda assim iria analisá-lo, desconsiderando seu estado emocional. O exame não demorara muito nesse órgão e partiu rápido para a sua boca. Ainda afligida com aquela situação que ela mesma havia espontaneamente impetrada, estava determinada e com pressa de terminar de uma vez aquele extraordinário e penoso drama.

Todos os lugares que a mulher tocava e analisava cuidadosamente pareciam ter sido aprovados. Podia até mesmo ver Lúcia momentaneamente se sentindo pouco mais radiante e mais jovial diante daquela sua autoaprovação, pelo menos até aquele momento. E, ele talvez se prolongasse por muito mais tempo caso não estivesse, todavia, ciente de que lhe restava fazer ainda uma última análise. Agora, ela devia sorrir escandalosamente. Pois, lembrara-se de alguém ter-lhe dito certa vez que “a saúde do corpo depende do estado de saúde dos dentes”. Assim, ligeiramente passou a rir, emitindo sons altos e arrepiantes, assim como D. Quixote fazia em seus momentos alucinógenos. Acredita ela que, se assim fizesse, poderia perceber qualquer defeito neles e, além disso, descobriria portanto como realmente as pessoas olhavam para si. Passou, então, a examiná-los com a cautela inequívoca da mesma avaliação de um especialista doutor-cirurgião dentista. E, momentos depois, para sua própria infeliz e ingrata surpresa, - caindo em terrível e doloroso desalento - ela reprovara seus dentes, apesar de serem tão brancos quanto a virgem neve branca que caia e transbordava nos Alpes europeus.

Tempos atrás, embora Lúcia já houvesse achado que seus dentes não estivessem tão ajustados o quanto ela gostaria de acreditar que devessem estar, além de sentir certa sensibilidade incômoda. Mas, ela não dera muita atenção ao caso. E, agora, diante daquela autoanálise mais profusa e consistente ela passou a crer verdadeiramente nessa austera conclusão. Além do mais, ela vinha sentindo a mesma incomodação chata de antigamente e, dessa vez, somente havia alguns meses. Assim - pensava Lúcia - talvez isso estivesse prejudicando ou alterando o alinhamento deles. E, na época, como não achava ser algo muito sério, não procurara um profissional da área.

Aquela incomum tarefa de Lúcia continuou a seguir natural seu curso como antes, parecendo que nada pudesse interferir em seu andamento. Contudo, essa situação audaciosa de Lúcia a colocara numa posição de respeitável autoridade, paradoxalmente. Pois, se aquela inevitável circunstância da qual ela se encontrava, partindo desde a discórdia sobre sua imagem e encanto, até se autoanalisando e fossem somadas a mais essa sensação, a mais esse sentimento de desconforto e de insensibilidade em seus dentes – talvez fizesse com que ela chegasse a uma condição amalucada, talvez insana mesmo. E, como todas as consequências da vida parecem ser um aglomerado de atitudes, opiniões, decisões e, de certa forma, de um punhado também de loucura, tal desastrosa situação poderia fazer com que ela disparasse de imediato para o socorro de um cirurgião-dentista. Não pensara muito e assim fizera, lembrando-se da indicação que uma de suas colegas lhe havia feito, já que lhe havia contado anteriormente sobre aquela ligeira tortura que tinha sobre seus dentes.

Já no consultório, o doutor passou a examinar seus dentes pedindo-lhe que abrisse aquela enorme e sedutora boca, cujos lábios eram carnudos e voluptuosos. Ela a abriu largamente conforme lhe fora solicitado e já estava preparada para receber as primeiras penetrações preliminares dos instrumentos odontológicos. Ora era um objeto longo e fino com uma espécie de cabeçote largo e rijo de cor avermelhada em sua extremidade; ora, era um pequeno, mas grosso e também resistente utensílio. Tais aparelhos revezavam-se entre si. Entravam e saíam em seu largo orifício grosseiramente aberto o qual improvisava um insinuativo vaivém harmonioso como no ato sexual, marcando o mesmo compasso carnal dos casais amantes. Nesse mesmo inquietante e atrevido procedimento o doutor não se detinha e alheio ao comparativo, de forma mecânica continuava a fazer o deliberado exame, completamente insensível àquele malicioso procedimento o qual fazia de forma frenética. Passaram-se mais de duas horas e só então o doutor estava com os últimos laudos tomográficos, fazendo uma densa e severa vistoria bucal daqueles desenhos – para um leigo - escuros e desprovidos de qualquer clareza. Contudo, ele era o doutor e devia saber exatamente o que eles significavam.

Pelo sombrio ar no semblante do doutor já se podia saber finalmente que ele chegara a algum resultado. Ele passou então a dizer resoluto, protegido de qualquer sentimento mais ardente, humano que seja. Suas palavras correspondiam com a mesma posição de autoridade incontestável a que seu ofício determinava naquele instante. Sujeição essa que se assemelhava a mesma rigidez fria dos enormes e assustadores “icebergs”, além de estar em plena consonância com o ar pesado e pavoroso daquele consultório odontológico, por mais que tentassem abrandá-lo. Pois, por vezes, utilizam cores neutras, brancas em suas paredes e fixam grandes e imponentes peças de pisos cerâmicos ao chão, assim como as paredes e pisos de hospitais. Tal estratégia tem como finalidade única de oferecer a seus pacientes a ilusória aparência de desafetação e aconchego àqueles inóspitos recintos. Isso sem falar na presença de um televisor que quase sempre se encontra pendurado no alto da parede e que, muitas vezes, parece possuir apenas um canal de transmissão. E, com o mesmo objetivo único, ou seja, a de sempre tentar subtrair a atenção real dos pacientes que ali esperam o imperativo, mas indispensável atendimento médico. Por fim, chegada a hora, as palavras do doutor foram cortantes e afiadas como a do cutelo de uma dolorosa e perfurante navalha:

- Decididamente minha cara, senhora! Embora seus dentes

estejam com o aspecto saudável e sejam muito bonitos, essa aparência não deixa de ser apenas o seu exterior. Pois, segundo os laudos observados e minuciosamente estudados eles apresentam sérias e lentas infiltrações pelas gengivas que vão se expandindo paulatinamente. E elas parecem ser malignas...

Numa pausa sepulcral e temerosa o doutor deu uma respirada profunda como quem estivesse sufocado, mas retomou, numa espécie de alívio, de imediato suas falas. Enquanto isso Lúcia o ouvia atônita, temerosa diante de sua postura austera e de discutível boa companhia.

- Sendo assim, senhora Lúcia, tudo o que posso oferecer são

apenas duas míseras opções que a senhora poderá escolher!

Diante daquela flagelante notícia a mulher ficou paralisada, perplexa. “Duas míseras opções”, frase essa que soou violento em seu cérebro, assim como marteladas firmes e contínuas na lâmina de ferro desferidas pelo mais rude dos construtores. Absolutamente, não esperava por aquilo. Uma vez que em nenhum momento ela se queixara de seus dentes, ou melhor, exceto uma vez por uma obturação simples e um tratamento de canal que tivera de fazer. Mas, já fazia muitos anos. E, além disso, houve um comentário que fizera a uma de suas colegas sobre a preocupação que ela estava tendo com seus dentes. Nada que fosse demais incomum. Foi meramente uma observação banal que fizera de seus dentes a uma colega e já fazia algum tempo considerado. Entretanto, ela estava ali naquele consultório odontológico para passar, a princípio, por um procedimento eventual e que fosse algo simples – pensava Lúcia. Jamais imaginaria que fosse lhe causar tamanha aflição tal consulta.

Diante do intervalo de fala do doutor, ela ficara completamente desolada e abatida. E, ele, sem muita demora, logo ia se preparando para lhe proferir a derradeira sentença. Nesse mesmo instante, Lúcia fazia voltar a sua memória alguns episódios degradantes que tivera o desprazer de presenciar, mas que achava importante lembrá-los naquele momento. Contudo, não conseguia se lembrar de muita coisa não. O fato real era que repentinamente começaram a vir-lhe à mente, de forma involuntária, visões de algumas pessoas de toda sorte de idade que sorriam largamente, ora para si, ora para outros que conversavam entre eles mesmos, parecendo desprovidas de qualquer vaidade humana, já que eram completamente desdentadas; algumas possuíam apenas um ou dois dentes frontais, enquanto outras - quando não eram os dentes superiores que lhes faltavam, eram os inferiores. Pobres, criaturas! – Lúcia ainda conseguia refletir naquelas lembranças forçadas que aprisionavam sua mente, ao mesmo tempo em que ia se formando, agora, algumas outras personagens exclusivamente vivenciadas por ela carregando consigo as mesmas mazelas das “pobres criaturas” de Lúcia e, ainda, também esquecidas e incógnitas pelo Sistema. A partir de então começou a estabelecer uma espécie de paradigma com aquelas pessoas desdentadas ora surgidas. Sua mente parecia estar funcionando bem e a aparente confusão mental - imaginada antes - agora parecia dar lugar à sobriedade e à consciência apta. Ela pensava o quão difícil era para eles suas vidas. De fato, ela os via como infelizes criaturas que depositavam inutilmente seus votos nas urnas, achando que aquele ou este candidato fosse cumprir verdadeiramente com as promessas que deveras fazia em suas campanhas eleitorais. Mas, não! Na verdade, eles nunca cumpriam com nada daquilo que era prometido. Pelo contrário, somente pensavam em seus próprios benefícios. E, assim iam perpetuando suas mentiras através de geração em geração, por séculos e séculos, entre si. São pessoas essas enganadas e condicionadas por agentes criminosos de seu ‘próprio’ povo. Pensava Lúcia como se quisesse aproveitar mais um pouco ainda daquele interstício que seu dentista lhe ofertara, ainda que involuntariamente. Sim, são pobres e infelizes criaturas porque são pessoas que se satisfaziam com o pouco que lhes era ofertado sem entenderem que era de seu próprio direito. Pois, o mínimo que eles, os líderes poderiam fazer, a fim de tentar compensar o direito que lhes fora outorgado, seria a de pelo menos olhar para essas desprotegidas pessoas com um olhar mais humano e não subjugá-las à condição mais ínfima e deteriorante do ser. No entanto, nada disso era feito. Daí, a consequência atroz da vida de um povo desdentado que se deixa, ou que simplesmente é vencido pela própria ignomínia forjada por eles, pelo poder dos poucos que lidera esse sofrido povo através de sua truculência, cujo caráter é fraudulento, bestial.

Lúcia, em meio a suas divagações, entretanto, parecia ter a consciência de seu estado real naquele momento, já esperando pelo decreto final de seu algoz, uma vez que ela já começava a se sentir completamente indefesa diante daquela nefasta situação. Entretanto, - ainda que remotamente - ela desejava confiar que podia existir dentro de si uma força da qual nunca houvesse despertado em si antes, mas que ainda assim, pudesse fazê-la ressuscitar. Dessa maneira, estando ela certa, talvez pudesse encarar tal problema que estava atravessando de forma menos combativa e mais tolerável. Por outro lado, ela sentia que tal incerteza pudesse prevalecer, porque levava consigo ainda alguma convicção natural da intolerância diante daquele calamitoso problema, porque jamais aceitaria tal condição de tamanha desumanidade, prevendo o que estava porvir com as declarações finais do doutor. E, de repente, assim como um raio que transpassa desalmado e que corta ao meio até mesmo o tronco mais forte da madeira diospyros ebenum, o doutor passou a elencar as opções que Lúcia teria de escolher:

- A primeira opção, dona Lúcia, é a seguinte: a senhora poderá

simplesmente sair dessa consulta e voltar a fazer suas atividades normais do dia a dia como se nada tivesse lhe ocorrido. Porém, ficaria o alerta de que num futuro próximo, bem próximo - dado a gravidade do problema – a senhora sofrerá demasiadamente com seus dentes, uma vez retardado seu tratamento.

Em seguida, como que quisesse acabar logo com aquilo, o doutor de imediato passou para a segunda opção da mulher.

- A segunda opção é: como as bases gengivais estão

comprometidas, elas terão de passar por várias intervenções cirúrgicas e a senhora terá de aguardar por algum tempo, de um a dois anos, talvez, a fim de se fazer uma nova avaliação e intervenção. E, conforme for o resultado, teremos que...

E, novamente o doutor insiste em repetir aquela lúgubre e ameaçadora pausa. Talvez o sentimento humano que lhe restasse o obrigasse a ponderar, pois oferecia a Lúcia, a menor que fosse - segundo suas próprias conclusões - oportunidade de se autoeducar, ou talvez, – pensava ainda o doutor – Lúcia teria o tempo, talvez, necessário para que ela pensasse e repensasse em suas opções, a fim de que ela fizesse a escolha certa, diante da grave situação que se encontrava. Do contrário, ela poderia sofrer um oscilação emocional incomensurável. Era o que o doutor pensava. Além disso, ele achava, ainda, que aquela atitude que tivera de retardar propositalmente enquanto proferia as opções de escolha de Lúcia, fosse de fato amenizar a angústia da infeliz criatura, ajudando-a, também, em sua escolha. De qualquer forma, com tais pensamentos arraigados, ele estava convicto de que poderia ficar isento de qualquer responsabilidade, caso algum mal caísse sobre ela, dali para frente. Sem dúvida, sua consciência estaria leve, imaculada. Era, na verdade, o que o doutor-cirurgião dentista imaginava, mas de qualquer forma, só em saber que tentara ajudá-la em algo, esse pensamento já o deixava em mais tranquilidade. Assim, rapidamente ele retoma suas falas, porém, agora ele as proferiam de forma rápida, quase não pausando nem mesmo diante da tomada de fôlego que a vírgula e o ponto final de parágrafo exigem do leitor. Assim, num fôlego só, disparou:

- Teremos de extrair todos os seus dentes. Daí, sobreporíamos nas gengivas superior e inferior duas finas tiras de ferro fundido, altamente desenvolvidas para esse fim. Elas seriam parafusadas nos ossos das gengivas. Os dentes postiços de poliéster seriam parafusados e rosqueados em cápsulas na armação do ferro fundido. Mais claramente seria dessa maneira: usaríamos uns oito ou dez pequenos pinos, o suficiente para se chegar e penetrar nos ossos, perfurando as gengivas superior e inferior. As cápsulas seriam instaladas na própria armação das finas tiras de ferro, onde seriam acoplados os pinos, funcionando como se fossem as próprias dentaduras. Por fim, encaixariam as armações de ferro, superior e inferior, aos pinos. - O doutor lhe explicava todo o procedimento, enquanto Lúcia simplesmente o ouvia, silenciosa, mas sua expressão facial tentava dizer não estar ali naquele recinto. Apesar de, ainda assim, de algum modo, dar a entender ter compreendido toda a explicação didática do seu dentista. Mas, ela estava mesmo era entontecida e confusa. Estava em estado de profusa embriaguez diante daquela espalhafatosa e temerosa manobra cirúrgica.

O doutor continuava lhe dizendo, de modo a explicar sobre aquele procedimento, pois segundo ele, era o que se tinha de última geração na área odontológica. Não existia outro igual ou superior método. Aquele era “top”! Ou seja, era a tecnologia mais moderna e avançada do momento. Era o chamado Protocolo de Branemark. Fazendo esse procedimento, o doutor garantia a Lúcia que ela jamais voltaria a ter qualquer problema em sua boca, exceto de ano em ano ela ter de visitá-lo, a fim de se fazer a limpeza total, já que somente ele, o doutor, era quem possuía as condições técnicas de fazer a remoção e consequentemente a limpeza no tal protocolo.

Ao receber tais opções, pávida, encolerizada, transtornada, incapaz de compreender aquela ultrajada situação, num ato intrépido, insano, a mulher levantou-se da cadeira da qual ainda estava sentada, de forma brusca, ligeira e perfeitamente convicta do que pretendia, contrariando as teses do doutor, partiu alucinada, desordenada em direção a uma janela que estava entreaberta e atirou-se daquele oitavo andar. O sentimento que tivera segundos antes, - o de acreditar possuir aquela força interior idealizada e obscura - por um só momento a iludira. Era provável que ela mesma pudesse ter evitado aquele movimento drástico, letal e imponderado, caso não estivesse naquele estado letárgico e ao mesmo tempo perturbado, que talvez a tivessem feito crer que a dualidade intrínseca presente, entre o real e o ilusório havia se distanciado. Mas, não! A verdade era que ela se deixara ser conduzida demais pelo ser desnudo e demais natural, talvez. Dessa forma, Lúcia Medeiros, a jovem-mulher, linda e demasiadamente atraente, cortejada e cobiçada por todos que a vissem despencou-se daquela altitude e foi caindo como chumbo sobre a calçada fria, indiferente, igual ao consultório dentário. Estatelara-se ao chão. Um enorme e espesso rastro vermelho ia saindo de seu crâneo. Ia escorrendo por volta de um dos lados de seu corpo inerte e de uma aparência terrivelmente assustadora com as costas voltadas para cima. Um dos braços permanecera dobrado por baixo do corpo, enquanto que parte do outro fora parar a uns dois metros, pois havia se enroscado em uma das pontiagudas e finas barras de ferro que ficavam fora da varanda de um dos andares inferiores. O crâneo estava afundado em um dos lados, quase que desfacelado, irreconhecível. Somente se sabia que aquele corpo imóvel ao chão parcialmente desfigurado pertencera a Lúcia Medeiros, quando se podia ver o outro lado do crâneo, aquele outro que não fora atingido totalmente, embora estivesse também danificado.

Por muito tempo permanecerá na mente de todos - que presenciaram aquele cadáver - aquela cena inesquecível e extraordinariamente assustadora!

B. F. Silva Cordeiro

de 03/05 a 07/05/2017

COMENTÁRIOS:

Ricardo Cattaruzzi Martins - Implantodontista

para Bereferreira@terra.com.br

Bom dia ,Berenaldo! Muito interessante seu conto. Sensualizou um procedimento tão técnico quanto frio de uma consulta, dramatizou, de uma maneira espetacular, um diagnóstico de Protocolo e "matou" a mocinha num suicídio como num drama de Nelson Rodrigues! Parabéns, você é ótimo! Se me permite, vou repassar esse conto para uns colegas, implantodontistas tambem!

Só uma colocação pra dar um pouco de ironia nesse meu comentário: Lúcia teria se jogado do oitavo andar depois de ter recebido o orçamento! Rsrsrss, abraços!

Enviado em 12/05/2017, do meu iPad

B F Silva
Enviado por B F Silva em 08/09/2017
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