Sinistro e Insólito Encontro

Sinistro e Insólito Encontro

B. F. Silva Cordeiro

19 a 24/04/2016

Naquele “site” de relacionamento humano Frederico fora atraído pela formosa escultura de uma imagem feminina relativamente jovem. Tratava-se de Ângela. Assim, passaram a trocar mensagens de carinho e elogios de forma frenética mutuamente.

Havia dias que teclavam mensagens e iam, às vezes, até mesmo o sol raiar, parando somente ao prenúncio de um novo amanhecer, o qual prometia que novas trocas de mensagens iriam acontecer.

Por fim, Fred resolveu que logo iria conhecer pessoalmente aquela luminosa e fascinante mulher sem se importar com os quase 1500 km de distância que os separavam. Sabia que se realmente focasse nessa sua arrojada decisão, seriam apenas menos de três horas para concretizá-la, uma vez que iria de avião apesar de sentir fobia por alturas. Ainda assim, sem muito hesitar, partiu no primeiro voo que havia encontrado em sua pesquisa. Inicialmente pensara em se alojar em um pequeno e modesto hotel da cidade, uma vez que ele não tinha problema com a singeleza da vida, pois ele era um homem simples e não se importava com nada muito sofisticado. Não era do tipo de homem que se privilegiasse com coisas banais ou frívolas, nem tampouco era vaidoso. Procurava manter sua aparência física como era: nua, crua e real! Nem se preocupava com obstinações abrasadoras e insensatas. Era comedido e justo! Assim, fora convidado para se hospedar na casa de uma de suas primas. Mesmo relutando ao convite, fora vencido pelos insistentes apelos dela. Logo que pousara no aeroporto seguiu em direção a sua casa. Para surpresa de todos, não permaneceu por lá por mais de três dias, porque seguidamente recebia ligações telefônicas insistentes da mulher que havia conhecido virtualmente, assim que soube de sua estada na casa da prima.

Rápido, sem ver por que não vê-la imediatamente, Fred já se adiantara em conhecê-la partindo para o seu apartamento. Chegando lá, apertara a campainha e antes mesmo de terminar de soar o primeiro toque a mulher já estava à porta, abrindo-a, pois um dos porteiros daquele condomínio luxuoso já havia lhe interfonado. Fizeram os primeiros cumprimentos formais, normais de reconhecimento e, inesperadamente, Ângela disse para que Fred entrasse e, num tom meio que elevado de voz, ordenou: “tira os sapatos!”. De fato, Fred ficara meio desarticulado de início. Mas, era apenas o início...

Ângela era uma mulher de idade relativamente jovem, pois não devia passar muito dos cinquenta anos. Possuía uma personalidade bastante forte e não se intimidava em dizer o que pensava sobre determinada coisa, doesse a quem quer que fosse. Ela sempre mantinha um ar de absoluta decisão e não se importava para com o que pensavam de si. Era do tipo de mulher que estava à frente de qualquer problema. Nunca se deixava abater por nada. Mantinha seu corpo em perfeita forma física exercitando-se entre quatro e cinco vezes por semana, invariavelmente. Algumas tatuagens espalhadas pelo corpo a identificava pertencer a uma tribo excêntrica e mística. Havia tatuagens pelo peito do pé, canelas, cóccix, pescoço e um colossal desenho de ramas de rosas em suas costas, de ombro a ombro. Suas sobrancelhas arqueadas e desenhadas harmonizavam-se a sua figura ditatorial e aloucada.

Desconcertado, Fred tirou seus sapatos e pôs-se a entrar ao apartamento. De imediato, um balcão a sua frente lhe chamara a atenção: a cozinha era uma espécie de cozinha americana onde havia um pequeno balcão de um metro e vinte de altura, aproximadamente. Ele fazia separar a cozinha da sala. Em cima desse balcão havia uma quantidade enorme de espécies de medicamentos, como: natural dhea; tribulus terrestre; vitergyl; fenazopiridina; cloridrato de oxibutinina; citoneurin; domperidona e etodolaco. Podiam ser observados, ainda, diversos cremes para pele, como: peeling iluminador; loção tônica para pele; cremes de massagens; gelos de limpeza; sabonetes neutrogênicos, glicoativos e glicerina pura. Em meio a eles, ainda havia aparelhos de uso médico como estetoscópio, luvas cirúrgicas, macas e várias máquinas caríssimas, como: radiofrequência “spectra”, uma das mais caras do mercado; vaporizador de pele “versatile AF7”; eletrolipólise sculptor, avaliado aproximadamente a R$ 10.000; endermoterapia para gordura localizada e flacidez. Este, devia custar por volta de uns míseros R$ 20.000; aparelhos para ultrasson e fisioterapia pós-cirúrgico, de um e três megahertz. Os dois eram avaliados em torno de R$ 5.500; ultra derm spray - tone derm spray sculptor derm e carboxiderm S20-1C. Esse carboxiterapia estava por volta de R$ 20.000; iluminador led, R$ 2.500; cromoterapia, R$ 700,00; led com laser de radiofrequência, R$ 4.000 e sonopulse. Além de vários frascos de álcool, de valor 70 em gel, além de gel antisséptico-higiene para as mãos.

De fato, Ângela transformara seu apartamento em um verdadeiro mini-hospital. Fazia atendimento via domicílio, que vai desde a acupuntura até o aplique de Peeling de diamante. Além de bronzeamento artificial e drenagem linfática pós-cirúrgica e prestar consultoria a seus “pacientes”, clientes, indicando-lhes o tipo adequado de tratamento e medicamentos que devessem seguir. Na sala da mulher só se viam essas máquinas e alguns livros amontoados sobre um banco qualquer, cujos assuntos eram sobre prevenções médicas e outros itens relacionados à saúde, além de um dicionário da língua portuguesa e outros poucos livros de ficção literária.

Ângela não era apenas uma esteticista, farmacêutica e técnica em dermatologia normal. Ela era fissurada na saúde sua e na de todos que lhe cercavam! Tanto era fato esse relato que a mulher se tornara neurótica ao extremo, adquirindo, assim, a chamada ortorexia: doença do excesso de limpeza; uma doença de saúde relacionada à psique. Sua alimentação era comprada em lojas especializadas no ramo de saúde, caríssima. Tudo tinha de ser orgânico. Arroz orgânico ou integral, macarrão orgânico/integral; açúcar mascavo ou cristalizado; frutas e verduras orgânicas e por aí à fora... Refrigerantes eram literalmente verdadeiras “bombas” para a mulher. Frituras nem pensar. Os miúdos de ave, como peitos de frangos, por exemplo, deviam ser levados ao forno, assados ao forno. Sua alimentação era restrita a esses produtos, além de salmão, ovo cozido e pequenas porções de salada, especialmente colorida.

Estático e boquiaberto diante daquilo que observava a tudo em silêncio, Fred com prudência disse a mulher: “Nossa! Seu apartamento é um mini-hospital, Ângela! Aqui tem de quase tudo o que um hospital possui. Deus do céu!” – dizendo essas palavras de inquietação ele se virou para ela e levantou seus braços lentamente a fim de tocá-la em seus ombros. Porém, antes mesmo de chegar a tocá-los, a mulher soltou um grito imperativo, assustador, inesperadamente, fazendo o homem ficar assombrado, arregalando-se os olhos:

- Não! Não me toque.

Em seguida, imediatamente ordenou que ele devesse lavar suas mãos antes de tocá-la. Acreditava Ângela, que se assim ele não fizesse poderia contaminá-la, já que Fred viera da rua e devia estar com suas mãos repletas de bactérias.

Fred continuava a observar a tudo em sua volta de forma incompreensiva enquanto partia para lavar suas mãos. Assim que terminara, retornou a Ângela e ela, mais uma vez, o advertiu: “você não lavou as mãos direito. Você precisa lavar com sabão e não com apenas água”. Atônito e sem acreditar naquilo que ia ouvindo e que ia acontecendo - já que nunca tinha passado por aquilo anteriormente - retornara a lavar suas mãos. Contudo, agora com sabão! Acreditara ter aprendido a lição. Entretanto, ele iria saber que aquilo estava apenas começando...

Agora, sim, com as mãos lavadas com sabão, ele estava apto a abraçar Ângela. Cumprimentaram-se de forma carinhosa, beijaram-se e conversando mutuamente foram em direção ao quarto de Ângela. Assim que chegaram até ele, Fred, por descuido e mesmo sem saber, quase sentara em sua cama. Somente não o fez porque ligeiramente a mulher o ordenara que ele devesse trocar suas calças para poder sentar ali em sua cama e, devia também, aproveitar para tomar um banho. Com o susto que levara, o homem se desequilibrou e quase foi ao chão, mas conseguiu se apoiar a ela.

Assim, seguindo as ordens de Ângela, ele partiu para o banheiro a fim de trocar as calças que viera da rua e ... tomar um banho. Tudo era novo e demais assombroso para Fred. Não sabia mais o que devia fazer sem que fosse advertido pela mulher. Andava pelo apartamento pisando literalmente em ovos. Qualquer ação que fizesse, ele, agora, pensava muito antes de tomar. Estava realmente vivendo outro mundo. Um mundo que jamais passara que pudesse existir. Nesse mesmo dia, após sair do banheiro, Fred se esquecera de apagar a luz. A mulher gritava desesperada para ele dizendo-lhe que ele devia apagar a luz porque ela não era dona da companhia de energia elétrica.

Naquele mesmo dia, Fred, ainda desconcertado, estava escrevendo algo. Em seguida, descuidadamente fora pegar algo na cozinha. Ângela gritou para ele: “Não! Vai lavar aas mãos antes de ir para a cozinha!” – ela dizia a ele que suas mãos estavam sujas, com bactérias, porque ele havia pegado em uma caneta. Ainda nesse mesmo dia, o homem fora para fora de seu apartamento fumar, já que o odor do fumo deixava Ângela terrivelmente nauseada. Tinha pavor ao tabaco e condenava severamente a todos que eram favoráveis a ele. Ela era uma mulher da estética, da saúde, da higiene! Como poderia aceitar que fumassem ao seu lado?! Não! Nunca! Jamais aceitaria tal ultraje! Ao voltar para Ângela, ela se inflamou, gritando a ele: “Não chegue perto de mim! Você fumou. Vai lavar a sua boca. Você está fedido!”. – ainda não satisfeita, ordenou que ele devesse escovar os dentes e lavasse a boca com listerine.

A essa altura, já se podia ver que Fred se encontrava em estado de incomensurável e densa amargura. Inconformado, ainda assim pensava que pudesse melhorar aquela situação. Dessa forma, como já era fim de tarde, ingenuamente, pediu a mulher que o levasse à orla de alguma praia da proximidade de seu bairro. Ela logo se adiantou e foi logo alertando-o dizendo-lhe de forma grosseira que lá devesse pagar o estacionamento e que ela não tinha dinheiro para isso. Fred ficava boquiaberto em quase tudo o que a mulher lhe dizia. Não acreditava naquilo. Achava que estava vivendo um sonho e que logo as coisas iriam se ajustar na realidade. O homem estava inteiramente enganado! Era exatamente aquilo mesmo que estava lhe acontecendo e ele tinha de forçosamente aceitar aquilo tudo. Um dia, antes do almoço, em um restaurante, Ângela, sentindo-se a necessidade de ir ao banheiro, pediu a um dos garçons alguns sacos plásticos. Sem compreender, o garçom atendeu ao seu pedido e se chocara no que via. Pois, nunca em toda a sua vida presenciara uma cena daquela: a mulher calçara os sacos plásticos para poder entrar ao banheiro, a fim de não se sujar, não pegar nenhuma contaminação daquele recinto tão específico. Era inacreditável a tudo o que Fred presenciava! Até mesmo para jogar seu próprio lixo na lixeira de seu apartamento, ela tinha de abrir a pesada porta sem mesmo pegar na maçaneta, pois temia ser contaminada por algum germe qualquer. Muitas vezes, abria a porta com seu próprio cotovelo. Pois, ela nunca se arriscava, tomando seus excedidos cuidados peculiares.

Outro dia amanhecera. Era um dia de muito sol! Fazia um sol escaldante, abrasador. Devia fazer uns 40º graus. A cada passo que se dava, o cansaço físico ficava mais visível nas pessoas, além de manchas de suor pelas camisas e gotículas de suor oriundas da testa e rosto. As pessoas estavam exaustas, irrequietas e transtornadas devido à temperatura tão cáustica que fazia naquela cidade. O casal, ainda assim, encontrara disposição para fazer uma caminhada, lado a lado. Ou melhor, ela sempre à frente, a passos largos e ele em seu ritmo, lento e despreocupado. Queria somente lhe fazer companhia, ainda que ficasse a uma distância pouco afastada de Ângela. Num dado momento, ela entrou em uma academia de fitness para especular horários e preços. Apesar de em seu prédio haver uma sala de ginástica, gostaria de continuar sua prática de fitness em uma academia maior e que tivesse mais itens de opções. Junto à recepção, Fred a aguardava, enquanto ela fazia uma espécie de tour no novo recinto, na tentativa de conhecê-lo melhor. De repente, uma mulher, de faixa etária aproximada de cinquenta anos de idade aproximou-se e se dirigindo ao recepcionista perguntou-lhe:

- Que cheiro de cigarro é esse? E afirmou categoricamente:

- Alguém aqui fumou. – o recepcionista, educadamente, lhe disse que não sentia cheiro algum, olhando para Fred e para aquela mulher desaforada. Imediatamente, Fred achou que devesse lhe dizer a verdade e então precipitou em lhe responder, resoluto e impetuoso:

- Eu fumei, minha senhora! – A mulher, diante da repentina resposta de Fred passou a lhe aconselhar ríspido, apesar de aparentar pérfida delicadeza:

- Meu filho! Não faça isso! Estraga a sua saúde. Pare de fumar! – Fred ficou embasbacado! Não conhecia a mulher, além de ter sido a primeira vez que vira. Pensava consigo, “com que direito essa mulher tem pra me dirigir tais conselhos?” Não conseguia admitir tamanha ousadia! Segurou-se firme, respirou fundo e lhe respondeu civilizadamente:

- Olha aqui, minha senhora! Eu não te conheço e a senhora não tem o direito de me dar conselho algum. Por acaso, eu estou com o cigarro aceso perto da senhora?! - Dizendo-lhe essas palavras, a mulher imediatamente virou-se e passou a seguir seu caminho sem dizer absolutamente mais nada.

Realmente, Fred se sentia no direito de se defender. Sabia que não precisava de conselho de ninguém. Conhecia os males que o cigarro pudessem lhe causar. Já tinha mais de cinquenta anos de idade e mantinha a imagem de um homem maduro, sendo que qualquer um que o visse também podia avaliar sua idade. Já não era mais nenhuma criança que pudesse receber conselhos de alguém, muito menos de uma estranha.

O relógio batia doze e trinta. Já era hora de almoçar. No apartamento, após tomarem banho, foram para a cozinha cuidar da alimentação. A mulher fazia uma espécie de macarronada sem glúteo, evidentemente, e sem molho algum. Era uma macarronada do tipo “light” ou “diet”; Fred não entendia ao certo o que era aquilo. Como mistura havia um ou dois ovos cozidos repartidos, sem conter muito sal e nenhuma base de óleo. A salada, ora eram algumas ervilhas e vagens, ora eram repolho cortado aos pedaços grossos com tomate e cebola. Tudo sem sal. Havia apenas algumas gotas de azeite extravirgem e limão. Quando a mistura não era ovo, era alternada para salmão grelhado ou peito de frango. Após alguns protestos de Fred, a mulher passou a cozinhar arroz. Contudo, era um arroz integral e fora cozido em uma panela de pressão, ficando o mesmo igual a uma espécie de papinha de nenê. Por outro lado, até que aquele alimento dava para deglutir facilmente, talvez devido à fome, pois era enorme.

Contrariado com aquela situação inédita e exótica, diante de tamanha mudança de vida tanto social quanto alimentar Fred, com a anuência da mulher, resolveu comprar no mercado alguns alimentos para si, como: bolachas doces e recheadas; pães normais de sal; molhos para macarrão normal e até refrigerantes ele comprou. Assim ele resolveu então fazer, já que sabia que iria ter de passar mais alguns dias ali naquele incomum ambiente. Não comprara nada de alimentos diets ou lights. somente comprara alimentos que ele normalmente comia.

Havia se passado uma semana e Fred já se angustiava. Ainda teria de ficar por mais um dia ainda naquele lugar. Para não ser mal visto ou mal compreendido - apesar do comportamento nada trivial da mulher - ainda assim, sabia que precisava manter certo alinho, uma conduta mínima sociável, a fim de não deixar qualquer borrão de sua imagem daquele primeiro sinistro e insólito encontro. Mesmo sem se acostumar, após seis dias em tamanho desajuste social - ao seu modo de ver – já podia perceber a ligeira nostalgia que sentiria daquela mulher, à primeira vista, indigesta, hermética e de hábitos tão ímpares, tão grosseiros.

B F Silva
Enviado por B F Silva em 08/09/2017
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