O estranho caso

Todos as manhãs eram a mesma cena. Ela despontava no parapeito da janela, recolhendo nos pulmões as primeiras impressões do dia. Exceto quando o dia era turvo e frio, preferia sentar-se no sofá grudando Rogério ao peito – O gato de estimação – e assistir desenhos antes de tomar café. Moravam somente os dois no segundo andar de uma pensão confortável pertencente à senhora Valmira, uma viúva idosa que quase sempre andava adoentada por causa dos brônquios ruins.

Mas quando as manhãs eram de sol, costumavam ir até a padaria logo que acordavam. A dona e seu bichinho não se apartavam, e iam juntos passando entre o apartamento 3 e 4 onde moravam: naquele um rapaz bonito tipo atlético, simpático e no outro um advogado quarentão mal sucedido na vida. Ambos eram suspeitos de deixar uma rosa na sacolinha de correspondência que ficava preso à porta da dona do apartamento 1, a mesma da qual estamos falando, e que conhecemos pelo nome de Márcia.

Uma mulher bonita, lindíssima, macia, cheirosa, gostosa e de olhos, estilo "esqueci-me neles". Talvez fosse verdade a suspeita, porque os dois já foram vistos por ela mesma espreitando atrás da porta deles, quando ela descia as escadas em direção a rua. Mas é do advogado que ela gostava mais.

De fato todos os dias uma rosa aparecia no mesmo lugar misteriosamente. Márcia ia sorrindo cautelosa para os conhecidos, cumprimentando um, averiguando a aparência de outro. E se recebia um gracejo, empinava o quadril, arrebitava o nariz esnobando-se orgulhosa, traquejando o corpo ainda mais. Márcia tinha por opção morar sozinha, a vizinhança masculina toda queria lhe cair nos braços, mas ela era dessas moças difíceis que sabiam ser bonitas e não se desprendia da vaidade e do cortejo de todos os homens, entretanto parecia que não tinha coração podendo dar se o direito de escolher quem quisesse, e podia. Normal. O que não era direito era o que ela fazia, fazia questão de humilhar sempre quem rastejasse a seus pés. O gato Rogério era o único que recebia toda a atenção da garota, que nessa época beirava os vinte e quatro anos de idade.

Certo, ah, isso era certo, porém sabe-se lá como bêbado reage às vezes. Salustiano, um moço de 30 anos, gostava de Márcia; só que ele vivia bêbado, jogado nas calçadas, dormindo. Quando ela passava pela manhã rebolando, Salustiano sempre estava no mesmo lugar – deitado sob a cobertura de um supermercado – ele levantava a cabeça mirava Márcia de longe e desabava outra vez para trás depois que ela passava. Quem em toda a cidade desconfiaria que ele, Salustiano boca torta, seria apaixonado pela princesa Márcia!

Incrível. A história de Salustiano era mais absurda e inacreditável, quem a contasse certamente seria apontado como mentiroso. Pois bem! Acreditem ou não, Salustiano Boca Torta dorme todos os dias nos lençóis de Márcia, abraçado ao corpo dela, cheirando seus cabelos entre braços frágeis dela. E a beija se quiser, se quiser, lhe dá carinho, faz dela sua esposa e lhe deseja sonhos maravilhosos.

Márcia realmente é sincera quando se desvia de Salustiano em seu caminho à padaria, é verdade, ela o odeia, e tem medo dele quando ele vem em direção a ela dizendo coisas engroladas. Ela realmente ignora que Salustiano durma com ela todas as noites e não tem nada a esconder do público. Ele sorrateiramente não fica bêbado à noite, mas mantém o mesmo aspecto sombrio, exceto por um banho, parece o mesmo bêbado das manhãs. Com um movimento esperto escala a tubulação de água e sobe até à janela de Márcia quando as luzes apagadas indicam que ela foi dormir, no apartamento dela, embevece um pano com éter e desmaia a moça, depois lhe força dois comprimidos de calmante para garantir que ela não acorde, em seguida tornar-se seu esposo no lado direito da cama. Nem em sonho Márcia desconfia. Pela madrugadinha quando o mar engole a lua e antes que os montes escarrem o sol Salustiano deixa-lhe a rosa e vai para a rua lamentar-se da sua condição submissa, pelo amor que lhe trava o peito e o desprezo que lhe apregoa Márcia. Por isso bebe e porque bebe Márcia lhe tem nojo. Comparando-o ao gato Rogério, dizemos: o gato era mais amado.

De manhã outra vez a história se repete e assim Rogério o gato fica com todas as carícias da bela Márcia. Ela própria andava angustiada querendo companhia melhor, cansara de ser sozinha e procurava um namorado. O advogado para ela era o cara mais ideal, tanto, que seus olhos brilhavam mais o verde quando o via. Samuel era o advogado que fogueava as faces quando via Márcia também constrangida em vê-lo: assim ficavam: um descontrole de trejeito quando um olhava o outro – exageradamente – que todo o povo percebia. Percebeu também Salustiano, mesmo bêbado, o enrabicho dos dois.

Um dia, lá vinha o advogado elogiando o gato Rogério, para agradar a dona dele, salustiano viu de longe, levantando a sobrancelha – que dificuldade meu Deus – o pobre diabo, foi se levantando como que ressuscitado, segurando nas paredes, nos postes, em tudo que as mãos alcançavam e encaminhou-se para o casal que vinha em sua direção, ciumento, grudou-se ao advogado querendo briga, ô coitado, foi uma confusão daquelas! Salustiano em frangalhos, magricela, com os ossos todos lhe furando a pele. O advogado sadio, cara corada, com reputação e sóbrio. Foi uma covardia. Salustiano apanhou tanto que permaneceu 10 dias deitado no chão da casa velha onde ele morava, sem receber nenhuma visita nem ver ninguém. Pior, Márcia pegou foi mais ódio dele, não o queria ver nem vestido de ouro, enquanto que o advogado foi ser curado na casa de Márcia a salmoura, curado a mão é claro de tanto que bateu em Salustiano!

Desse dia para cá salustiano não voltou a dormir na casa de Márcia às noites, preferiu, para não levantar suspeitas por causa de uns planos que ele tinha em mente. Sentia vergonha e ódio por isso resolveu raptar Márcia. Em seu plano, levaria ela para uma caverna, onde só ele poderia vê-la e tê-la como mulher. Seu coração estava negro com revolta, antes isso do que matar o advogado Samuel à traição.

A noite do plano era véspera de natal a felicidade estava em todas as famílias, por entre as ruas uma sombra deslizou sob as janelas. As árvores enfeitadas confundiam a luz com as trevas, aos pés delas, deitavam-se os presentes e quase igual em todas as casas, nas salas, uma mesa repleta de comida e próximo um presépio. Lá estava o menino Jesus entre os animais, contemplado pelos reis magos. Seria possível surtir efeito a fé? Salustiano sentiu-se tentado, se acreditasse talvez a fé o fizesse desistir de roubar Márcia que há essas horas já era entregue em sua casa, por Samuel que se fez seu namorado.

A intenção de salustiano era ruim. Porém como acusá-lo pelo bem ou pelo mal nesse caso, somente a natureza divina de uma noite de natal poderia restituir a seus lugares as coisas difíceis de se acertar. O amor de Salustiano não fazia retroceder e ao mesmo tempo um sentimento de vingança transbordava-lhe na mente. Amava Márcia e a odiava por sempre ser humilhado.

Quando chegou à janela dela as cortinas encobriam o interior da casa, não se ouvia nada no interior, as ruas estavam desertas e a noite carregava algo de magnífico e de pesado, como se nessa noite antagônica – lá fora em algum lugar – o bem e o mal ajustassem contas. As luzes da casa já estavam todas apagadas, as comemorações para a bela Márcia, especialmente nesta noite não eram tão importante e encerrava-se cedo, apenas um abajur permanecia aceso ao lado de sua cama. Ela estava deitada, acariciando a barriga do Gato Rogério com o nariz, brincando os dois:

– Vem cá meu bebê. Cadê o gatinho lindo da mamãe. Sussurrava Márcia, quando Salustiano aproximou-se por trás com um pano encharcado com duas vezes éter do que a que ele usava antes, Márcia ainda relutou um pouco, mas desfaleceu em seguida. O gato Rogério se assustou, enriçando o pêlo ergueu os olhos, e seus olhos encontraram-se com os olhos de Salustiano, por um momento o gato sentiu algo entrar em seu corpo que fluiu de Salustiano, soltando um solavanco, seus olhos mudaram de aspecto – mais enigmáticos – o pêlo se acalmou, Márcia caiu desacordada na cama e Rogério aconchegou-se no colo de seu seio.

No outro dia ela acordou com uma baita dor de cabeça, com a impressão que tivera uma noite horrível, tudo estava como antes, Rogério ronronava lhe o rosto, esticando o corpo e passando o Pêlo macio em seu braço. Parecia mais feliz, com gestos estranhos, procurando as mãos espontâneas de Márcia como se ele nunca as tivessem espontaneamente, trazia na boca uma rosa vermelha como a que salustiano deixava na sacolinha de correspondência. Não havia vestígio de éter, somente um pesaroso ar misterioso.

– Ô meu bebê você esta ai! Veio acordar a mamãe. Ah que lindo quem te deu essa rosinha!? Hein meu fofo?

Depois ela levantou-se foi ao parapeito da janela, o sol estava lindo e Rogério parado a olhava com um olhar curioso. Os dois saíram matinalmente para comprar pão, Rogério ia se exibindo aos transeuntes no colo da dona, antes ia quieto. Na padaria sem que se espantasse Márcia soube que havia sido achado o corpo de Salustiano boca torta, já há dez dias se decompondo na casa velha da rua oito onde ele residia. Salustiano morreu com as pancadas que recebera do advogado. E o gato Rogério agora agia estranho, quando olhava não era o mesmo olhar. Parecia mais feliz, mais ligado à dona que lhe aumentara a estimação sem desconfiar que Rogério estava estranhamente mais feliz.

Sérgio Caldeira
Enviado por Sérgio Caldeira em 21/12/2010
Código do texto: T2683939
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