7. SOLUÇÃO DIFÍCIL

Este texto é sequência do texto 6. A MATEMÁTICA INCERTA.

Havia mais de um mês e meio que eu tinha saído da casa de meu pai, em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, há mais de cem quilômetros de casa, eu completara quinze anos de idade no dia dezessete de dezembro, e aí também passara o Natal do mesmo ano de 1980, bem como o Ano Novo, trabalhando de vendedor de cachorro quente num carrinho, na esquina da avenida Júlio de Castilhos com Coronel Flores, em frente ao Bazar Naír, para um empregador com certa disposição apara a violência e que vinha dissolvendo meu salário através de uma matemática financeira opressora, que resultava em falta de féria a cada acerto. Na casa desse homem, onde também morava e comia, fiz amizade com um garoto da minha idade, que o patrão trouxera de Pelotas quando teve que desaparecer da cidade por ter esfaqueado um bêbado em frente a um bar. Meu amigo também sofria da síndrome da falta de féria, que seus cálculos não conseguiam dissolver. Quanto a mim, além das facadas que vi serem desferidas no gordo bêbado, já assistira a outras demonstrações da pressa em agredir do patrão, sendo que outro dia me levou para a polícia pelo braço, pois eu caíra na conversa de uns larápios passadores de cheques roubados. Por último, juntamente, eu e o amigo de Pelotas, fomos denunciados a polícia, quando desistimos de esperar o patrão que demorara a nos pegar nos pontos de trabalho, quando passava da meia noite e fomos para casa a pé. Não nos achando nos respectivos pontos, ele nos denunciou e desferiu palavras bem violentas, seguidas de agressões verbais, quando chegamos em casa logo após ele, pois aguardamo-lo no bar da frente.

De fato, não dava mais para suportar. Meu amigo estava ficando assustado pelas atitudes agressivas do patrão, prestes a fazer uma bobagem, que deixaria o homem prevenido para a atitude que eu teria que tomar mais adiante, como me livraria de sua exploração. Se fosse para fazer algo radical, carecia que fizéssemos juntos. Era o que eu pleiteava incutir na mente do meu amigo, para que não se precipitasse antes que eu elaborasse um plano. Entretanto, não sabíamos o que fazer, embora pensássemos em fugir, o que se mostrava mais e mais a única alternativa, apesar que relutávamos para admiti-la.

Todavia, a situação ainda haveria de piorar para o meu lado, pois por conta de minha ingenuidade ainda aprontaria mais uma para pôr o patrão em ponto de bala.

Ao fim de uma tarde muito chuvosa, um rapaz, freguês de cachorro quente, que trabalhava na JH Santos, na esquina da Coronel Flores com a Sinimbú, ao sul da esquina da Júlio, pediu que lhe emprestasse dinheiro para o taxi, pois comprara um aparelho de televisão na empresa em que trabalhava e que teria que levar de taxi por causa da chuva torrencial. Era pouco dinheiro, sendo que morava há poucas quadras. Argumentei que não tinha dinheiro meu e não poderia pegar do caixa. Mas ele me ofereceu seu relógio como garantia de que pagaria em dois ou três dias. Pensei que o patrão não tinha porque se zangar, sendo que o rapaz era conhecido e o relógio valia infinitamente mais que o valor emprestado. Entretanto, além que me insultou veementemente enquanto produzia outra danosa falta de féria, me fez assinar outro vale, incluindo neste o valor emprestado pelo relógio.

Pensativo, durante a noite decidi que teria que enfrentar um medo ainda maior que o que já enfrentara, senão jamais sairia de tal armadilha. Não podíamos seguir nos sujeitando a tanta violência psicológica, sendo que o dia do pagamento já passara eu já tinha calculado que devia mais de um mês de salário ao patrão. Com tal emprego não tínhamos futuro e este era o limite intransigível.

Quando saímos no dia seguinte para a caminhada normal, expus um plano assustador ao amigo. Faríamos uma falta de féria completa e simultânea, para que tivéssemos algum dinheiro para a fuga, única via restante. Teríamos que preparar o espírito para a pior das carraspanas na noite dessa falta de féria, pois o patrão viraria um bicho, com toda certeza. Era certo que perderia o controle, podendo até nos bater, mas carecia ficarmos firmes, pois de outra forma jamais seríamos livres de sua opressão, ou fugiríamos sem dinheiro até para um lanche. Na verdade eu temia que o homem usasse a faca ou o revólver contra nós, mas nem comentei ao amigo, haja vista que não via outra saída e não ser arriscar tudo.

A falta de féria de um dia não resolveria muito, mas ao menos não deixaríamos tudo para ele e teríamos com que comer por algum tempo.

Sendo que o patrão dormiria satisfeito por causa dos vales que assinaríamos, na manhã do dia seguinte, como de costume, sairíamos às sete horas, após pegar um saco de pão de cachorro quente novo cada, sem deixar suspeita para a doméstica, pois sempre saíamos sedo e não levaríamos sacolas, deixando nossos pertences, sendo que eu não tinha quase nada e o amigo chegara com uma sacola de mão. Ao meio-dia, quando não aparecêssemos para o almoço, seria isto ainda visto como normal, pois muitas vezes não aparecíamos. Somente sentiriam nossa falta por volta das quinze e trinta, quando aparecíamos, às vezes, meio atrasados para abrir os carrinhos nos pontos de vendas, sendo que havia tolerância quanto ao horário de início do trabalho. Até esse horário estaríamos bem distantes, mesmo sem a sorte de pegar carona na BR 116, por onde eu pretendia ir até São Paulo, seguindo depois ao Rio de Janeiro.

Entendendo que teríamos fugido, o patrão avaliaria as possibilidades de para onde teríamos ido. Como éramos meninos e medrosos, ele presumiria que teríamos voltado para casa, indo, talvez, nos procurar pela BR em direção ao sul, quando estaríamos indo para o norte. Jamais pensaria nessa hipótese, mas se pensasse já estaríamos distantes.

O amigo ficou em pânico quanto ao plano, mas sabia que não tínhamos alternativa. Ponderou, porém, que não estava certo de me seguir a São Paulo, pois desejava voltar para casa, de onde não fugira, como eu, portanto não tinha porque temer regressar. Concordamos que teríamos que sair nos próximos três dias, tempo que esperaríamos por uma boa féria, enquanto tomaríamos coragem.

Desse dia em diante sofri muito medo e por várias vezes estive a ponto de desistir, ponderando, porém, que não havia futuro em trabalhar por casa e comida apenas, sem poder nem pedir demissão, por não ter como acertar as contas com o patrão. Teria que propor-lhe pagar a dívida em prestações a perder de vista. Todavia, o maior dos medos que me afligiram nesses dias foi a possibilidade de o amigo recuar na última hora, o que me faria desistir, pois, pressionado, ele poderia denunciar meu rumo e o patrão poderia me encontrar.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 13/03/2007
Reeditado em 14/03/2007
Código do texto: T410883