O olho de vidro

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Mãe! Mãe! – Grita o menino. – Meu olho caiu!

Sem entender o inesperado chamamento, D. Zica, assustada, dirige-se até a sala. A cena era grotesca: de pé, o jovem segurava o olho esquerdo com uma das mãos e, na ponta dos pés, dava saltos espaçados a cada novo pedido de auxílio:

– Meu olho, mãe! Ah, meu Deus! Espirrei e o olho esbugalhou. Por favor, mãe, ajude aqui! – Insistia Pedro, desolado.

– Calma, meu filho!

O adolescente, com a mão espalmada para cima, em forma de súplica, e segurando o olho que pendia fora da órbita, consumava outro estágio do sofrimento daquela família – desde o acidente na escola, quando um amigo o atingira fortemente o olho com uma castanhola, durante o intervalo entre as aulas, lutavam contra os prognósticos, na tentativa de livrá-lo da parcial invalidez. Aos poucos, entretanto, a mãe percebia o pequeno e franzino filho, o mais novo do casal, perdendo, gradualmente, a visão.

“O impacto da castanhola, senhora, afetou a câmara localizada na parte anterior do olho, alterando a pressão interior, manchando a córnea e reduzindo imediatamente a visão; a íris foi danificada e houve deslocamento do cristalino”.

D. Zica já reprisara, incontáveis vezes, a explicação que ouvira na emergência do hospital, no dia seguinte à lesão. Os médicos falaram que houve demora na condução do garoto até um especialista... Não bastasse o sofrimento decorrente da fatalidade, a pobre mãe ainda sentia dentro de si certo rancor e sentimento de culpa por ter demorado na busca de ajuda médica.

Voltando do transe, do temporário desligamento da realidade, e buscando forças para não desmoronar, o instinto de mãe percebia a gravidade do infortúnio: o filho perderia não apenas a visão, mas o olho também. Entre o desespero e a excessiva proteção, talvez tardia, a mãe, carinhosamente, protege o olho do filho com gaze e o leva ao hospital, na companhia do marido e do outro filho. A declaração do médico ainda persiste, renitente, atormentando aquela pobre e angustiada mãe: ‘a íris foi danificada...’.

No hospital, os médicos tentaram recompor as estruturas do globo ocular, mas o debilitado olho não resistiu, desfalecendo.

A gradual perda da visão, observada desde o dia do acidente, ensejou grave defeito físico. A cirurgia invasiva e traumática, apesar de esperada, era o fecho da expiação. A singularidade da lesão, além das naturais limitações, ainda proporcionou ao jovem a terrível alcunha de “Vesgo” – pecha que o acompanha desde o dia da confirmação da irreversibilidade da saudável acuidade visual que perdera, quando foi obrigado a usar um tapa olho. Naquele momento, imóvel e fulminando o teto do centro cirúrgico, Pedro aguarda a cirurgia – sabe que removerá a parte morta do corpo. Segurando a mão de D. Zica, busca forças para manter-se sereno e confiante.

O olho foi removido. No rosto de Pedro, um vazio; na mente, além de incertezas, a necessidade de enterrar o órgão removido.

A família se mobiliza – precisam sepultar o olho. Decidem enterrá-lo junto aos túmulos de outros entes queridos que partiram: o avô e a avó de Pedro, um tio e dois primos. Providenciam a limpeza do jazigo, quitam débitos, pintam as paredes do mausoléu, que se mistura a outros tons de amarelo, azul e branco das outras campas, e se dirigem, em cortejo, para o funeral.

No cemitério, o padre celebra e missa de corpo presente. Em seguida, abrem o jazigo da família. Limpam as covas dos parentes mortos e se preparam para o sepultamento. Aparece o féretro do patriarca; ao lado, dois outros caixões enfeitam a cova. Vesgo pega o olho que estava guardado dentro do bolso e o coloca no túmulo, em cima do caixão do avô. As avós ensaiam algumas ladainhas, Fabbio, amigo de escola de Pedro, faz o sinal da cruz por três vezes e D. Zica, confortada pelos braços do marido, comenta diante de todos:

– O sonho de ver meu filho se tornar oficial do Exército acabou!

Vários outros sonhos findavam ali. A cerimônia enterrava a matéria, mas a dualidade se complementa no incorpóreo.

Um a um todos desapareceram. Vesgo resolveu ficar. Dentro do sepulcro, agora protegido pela camada de concreto, o olho permanecia aberto, voltado para cima, divisando, na escuridão da morte, a plenitude da vida interrompida.

Até aquele instante, Vesgo não havia refletido sobre a vida. Entretanto, os momentos aflitivos pelos quais estava passando, e ainda passaria, decorrentes da fatalidade, fizeram-no esmorecer. Os dias, antes enxertados de encantamentos vários, pareciam inexpressivos, sem força. A alegria parecia-lhe distante – apesar da notoriedade causada pelo tampão ocular, tornando-o o ‘Pirata’ do bairro e da escola, ele ansiava pela prótese ocular que lhe restabeleceria minimamente a estética perdida.

A demora valeu a pena. Com prótese nos moldes atuais, num formato mais sutil, o resultado surpreendeu – quem desconhecesse a realidade do garoto teria dificuldade, numa visada menos investigativa, acerca da limitação física de Pedro. Entretanto, a vida, em seus mais imponderáveis dias de pontual perseguição, reservava novas surpresas para aquela família.

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Segunda-feira. Oito horas da manhã. Duas viaturas da Polícia Civil se aproximam da Rua Pupilas de Outono, numeral 33. D. Zica atende ao chamado da campainha:

– Bom dia, senhora! Por acaso isto aqui é do seu filho?

– Ah, meu Deus, que maravilha! É dele, sim! Estávamos angustiados desde sexta-feira. Obrigada! Meu filho retirou a prótese para tomar banho na escola, depois de jogar bola com alguns amigos; quando voltou, tinham levado o olho, por brincadeira.

– Sei – responde o policial, derrubando o mandado. Quermezé era um policial antigão, com muitos anos de estrada, mas, desde recruta, era atabalhoado, cheio de limitações. Desleixado, vivia complicando o que aparentava ser simples.

Alheia ao comentário do agente, D. Zica continua:

– Ligaram da escola avisando onde os amiguinhos dele tinham deixado a prótese. A diretora foi informada e me ligou em seguida. Fizeram ligação anônima. Fomos até a escola, reviramos tudo, mas não encontramos nada. Ele quase ficou louco de tristeza. Que bom que vocês encontraram.

– Lamentamos informar, senhora, mas, além do olho do seu queridinho filho, encontramos o corpo de uma garota no banheiro. O olho é a única pista que temos e precisamos levá-lo para depor.

– Não! Meu filho não matou ninguém!

– Ele é o principal suspeito, senhora. Temos um mandado e precisamos entrar.

– Ele ainda está dormindo. Por favor, não façam isso!

Os policiais entram e conduzem Vesgo até a delegacia. Os burburinhos nas imediações demonstram a felicidade estampada no semblante de desconhecidos e de alguns vizinhos. Amigos e familiares de Pedro mostraram-se surpresos e manifestamente indignados, pois acreditavam no bom caráter do rapaz. Pedro foi levado para depor, entre olhares curiosos, mas não estava sozinho – uma comitiva seguiu em direção ao Distrito Policial do bairro.

Na delegacia, iniciam-se os questionamentos:

– Isto realmente é seu, garoto?

– É!

– Por que você deixou a prótese na escola? É habitual fazer isso, largar seu olho de vidro por aí?

– Não deixei nem larguei por aí, senhor! Esconderam de mim. Devolva meu olho, por favor? Preciso usar minha prótese.

– Quem matou a garota? – indaga o policial, entregando a prótese ao interrogado.

Vesgo pega o olho. Volta o olhar para o policial e solicita autorização para ir ao banheiro lavar a prótese. O delegado, rispidamente, intervém:

– Lave aqui mesmo, garoto. Agente! – diz o delegado. – Traga um pouco de água numa bacia. Vamos ajudar o rapaz. Pode ser assim, meu camarada? – questiona o delegado, olhando para Pedro. O pequeno, sem pestanejar, fita o policial dentro dos olhos e responde:

– Pode, sim, doutor!

O agente se retira da sala. Minutos depois, o policial retorna, trazendo uma vasilha com água. Pedro, sem se importar com a presença do delegado e ignorando o policial que acabara de derramar parte da água em cima da mesa do chefe, retira um pano do bolso. Lava a prótese e a posiciona no vazio do globo ocular. Quando o encaixe se completa, todos se assustam: o olho se conecta de modo diferente, parecendo ter armazenado informações. Vesgo fecha o olho direito e, do globo ocular do lado esquerdo, emergindo da lente, surge, diante dele e dos policiais, projetada na parede, a cena do crime.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 20/04/2014
Código do texto: T4775831
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