FANTASMAS AO ANOITECER

Fantasmas não aparecem de dia, principalmente em dias claros de sol. Por quê? Seria porque durante a escuridão os nossos nervos se afloram ante o inesperado? Ou será porque só nós vemos os nossos fantasmas? Vemos e criamos!

Não tenho medo de fantasmas! Temo mais os políticos do que os fantasmas. Entretanto, para não dar trela ao azar eu abstenho-me de filmes de terror, principalmente sozinho e no escuro.

Se cada louco tem a sua mania, eu tenho várias e a mais interessante delas é pedalar ao longo da rodovia da morte, a BR 116, contando carros amarelos que passam por mim em uma competição mental entre a ida e a volta. Enquanto conto os carros que passam a minha mente flutua, até parece que ela desgruda de mim neste tempo.

Era uma tarde de inverno e o vento sul soprava frio e suave a cada passada dos veículos. Os que vinham do sul pareciam trazer a friagem no para-brisa. Nesta aventura eu procuro sempre andar na contra mão, pois, pelo menos assim eu posso ver o carro que vem na minha direção e, se der tempo, me desviar dele em um caso de acidente.

O sol já se punha no horizonte e a escuridão descia o seu manto negro sobre as paragens do vale. Iluminado pelos faróis dos carros eu fazia o meu percurso tranquilamente. Além de contar carros amarelos eu gosto de falar sozinho. Pode parecer loucura, mas, vez por outra eu preciso encontrar alguém inteligente com quem conversar. Nem tanto busco a inteligência, contenta-me a minha própria compreensão. Papo vai, papo vem, no lusco-fusco do anoitecer eu avisto logo à frente outro ciclista que pedala tranquilamente na mesma direção em que eu vou. Avizinhando-me dele, ao cumprimentá-lo com um grunhido, percebo que ele acelera a pedalada para acompanhar o meu ritmo.

Aquilo já me deixava irritado. Não sou muito de papo, ainda mais com estranhos à beira de uma rodovia perigosa como aquela.

Pedalamos por alguns poucos quilômetros juntos. Pelo teor da conversa percebi que ele me conhecia. Perguntou da minha família, do meu emprego. Até do meu time ele tirou uma casquinha. Devia ser corintiano, aquela praga!

Entre um farol e outro eu conseguia visualizá-lo, pois a lua, preguiçosamente, brincava de esconde-esconde entre as nuvens. Para dificultar o reconhecimento, ele estava de blusa moletom e o capuz enfiado na cabeça.

Nas descidas em alta velocidade o vento agitava os meus cabelos. Nas subidas, enquanto eu ofegava nas pedaladas, ele parecia deslizar suavemente por uma planície infinita. Por mais íngreme que fosse a estrada, ele parecia flutuar na bicicleta. E o papo continuava. Entre suspiros alongados e uns pigarros na garganta eu respondia economicamente, poupando palavras e pensamentos. Respostas curtas e sem se preocupar com a coerência do assunto.

Geralmente eram afirmativas as minhas respostas. Evitava prosseguimentos. Mas ele insistia na conversa.

Faltava pouco para completar a ida. Faria o retorno e, sempre na mão contrária, eu voltaria para casa. Fiquei contente porque assim eu me livraria daquela inesperada companhia.

Passávamos por uma curva perigosa onde aconteceram inúmeros acidentes fatais, principalmente por atropelamento. Ao lado da pista duas ou três cruzes fincadas no solo comprovavam a periculosidade do local. Em uma delas eu pude notar uma vela acesa protegida por um ramalhete de rosas brancas. A ausência de caminhões passando no momento e o bruxulear da chama davam ao local um aspecto sombrio. Minha adrenalina acelerou o coração. Eu sempre passara por aquele lugar, mesmo no escuro e em horas mais altas da noite e nada de anormal havia notado. Nem velas acesas, nem flores! Mas naquele instante senti um arrepio nas costas. Talvez o frio, talvez o medo!

De repente ele se despediu. Ficaria por ali. Olhei para o lado externo da pista e não vi nenhuma saída. Nenhuma estradinha que saísse da pista. Nada. Nenhum posto de gasolina, nenhuma estrada vicinal. Naquela curva o acostamento era margeado por um barranco enorme despido de vegetação e com algumas valas verticais revelando princípio de erosão.

“Onde será que mora este desgraçado?” questionei cá com os meus botões.

Ainda procurava uma saída para que justificasse o fim do caminho para ele quando um caminhão passou raspando por mim e o vento lançou-me de encontro ao solo.

Olhei para o lado em busca de auxílio e me vi só. Chamei por ele e nada. Pensei que o vento forte também o tivesse arremessado ao chão. Levantei-me trôpego e procurei por ele. Nada!

Fora da pista a vela tinha se apagado.

Era uma sexta-feira.

Montei na bicicleta, engatei a marcha pesada e, ainda com os joelhos esfolados, sai pedalando forte sem me sentar no selim. O vento espalhava os meus cabelos e fazia saco na camisa, como uma vela inflada em alto-mar. Afogueado cheguei em casa.

Na manhã seguinte, contando o caso ao borracheiro de um posto de gasolina às margens da rodovia, soube que naquele local, precisamente há um ano, um ciclista foi atropelado e morreu.

Ainda dou minhas pedaladas por aquele lugar. Menos ao anoitecer das sextas-feiras quando os fantasmas fazem aniversário!

Jonas De Antino
Enviado por Jonas De Antino em 14/07/2014
Reeditado em 25/03/2015
Código do texto: T4881422
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