REPULSA À CÃES

—Nathan Caligari, dia maravilhoso, não?—indaga a enfermeira enquanto caminham lentamente para um banco.

—Quem não tem intimidade comigo pode até achar que sou o cara mais feliz do mundo. Trabalho como clínico geral aqui, tenho uma filha linda e uma esposa maravilhosa. Parece tudo maravilhoso, não é? Infelizmente não é bem assim. — Caligari reflete se é prudente continuar. — Sofro de cinofobia, sabe o que é isso enfermeira? –Interrogou cinicamente enquanto perscrutava a enfermeira de cima a baixo como se avaliasse sua inteligência.

Os dois sentam com uma distância considerável entre eles.

—Ora Nathan, obviamente, é uma aversão a cães – retrucou a moça.

—Exatamente minha querida. Não importa o tamanho ou raça tenho um medo mórbido de todos eles. E por favor me chame de doutor Nathan, não somos amigos.

—Deve ser muito complicado viver com esse problema doutor — a enfermeira se esforça para parecer simpática, força um sorriso.

—Minha filha vivia me pedindo um cachorrinho. Um dia a Isabelle foi convidada ao aniversario da melhor amiga. Na volta para casa, eu segurava a mão dela quando atravessávamos a rua percebi que uma senhora fazia sua corrida noturna na companhia de um cachorro. Um abismo se formou debaixo dos meus pés, fiquei tonto. Com o pouco de lucidez que me restava voltei correndo pra dentro da casa da aniversariante, lá fiquei até o cão passar, minha filha percebeu aquilo com um misto de choque e vergonha nos olhos. Depois disso nunca mais me pediu um cachorro.

— Sinto muito — consolou a enfermeira.

—Eu sei que esse medo é totalmente irracional, mas apenas saber disso não diminui em nada o pavor. Já fiz vários anos de tratamento para amenizar o problema, mas ainda não consegui me livrar totalmente disso — confessou com a voz embargada — contudo continuo o tratamento e sei que logo poderei presentear Isabelle com um cachorrinho que lhe for aprazível — um sorriso se forma no rosto de Caligari— ela tinha dito que mesmo achando os cachorros muito fofos, ela nunca deixaria um chegar perto de mim, ela seria minha protetora para sempre. Mal posso esperar meu plantão acabar para encontra-la novamente, sentir seu cheiro, ouvir sua risada.

—Desculpe minha intromissão, você poderia me contar como essa fobia começou doutor Nathan?

—É uma história horrível, eu não era exatamente do tipo que era cheio de amigos na escola, sempre tive serias dificuldades de socialização — envergonhado Caligare olha para o nada enquanto fala — quando os professores passavam trabalhos em grupo eu era o último a ser escolhido. Num dia voltando para casa, uns meninos da minha sala me convidaram a fazer parte de um clube.

—Nossa! Maravilhoso.

—Foi o dia mais feliz da minha vida, eles disseram que eu teria que passar num teste de bravura antes de fazer parte da turma deles — Caligari começou a tremer, mas continuou — no dia seguinte fomos até a casa de um dos meninos, a casa dele ficava no meio do quintal, era cercada por uma grade. Caminhamos até a área dos fundos onde dava pra ver, depois da grade no quintal vizinho, um cachorro dormindo na casinha dele. Os meninos conversaram um pouco e decidiram qual seria o teste: matar aquele cachorro a pedradas.

—Meu Deus!Que horror! O que você fez?— espantou-se a enfermeira.

—Eu estava apavorado, aquela proposta era ridícula. Sem falar nada sai correndo dali, quando estava quase alcançando a rua parei. Pensei em todo o tempo que passei sozinho, todas as humilhações que sofria. Aquela poderia ser minha ultima oportunidade de ter amigos. Voltei e aceitei a proposta — secando as mãos suadas na calça continuou— tinha uma pilha de paralelepípedos quebrados perto da grade, queria fazer aquilo logo e apagar o mais rápido possível da minha mente. Meus novos amigos estavam lá atrás aguardando, enquanto eu perto da grade segurava uma pedra enorme. Eles começaram a sussurrar repetidamente “mata,mata, mata...” Atirei a primeira pedra no cachorro, ele soltou um gruído horrível. Mas não morreu, avançou em mim, bateu na grade. Continuei atirando pedras, o cachorro vociferava de dor e raiva, da boca dele saia espuma que se misturava com o sangue enquanto ele latia, eu continuava tacando pedras, o cachorro chegou a tombar umas vezes, sempre que isso acontecia eu rezava para continuar daquele jeito, mas ele voltava. Tudo que eu queria é que isso parasse de uma vez, queria que nunca tivesse começado, mas agora já era tarde. Os garotos começaram a gritar atrás de mim “mata! mata! mata!”, aqueles gritos se misturavam aos ladridos enfurecidos, aquilo ia aumentando, se tornando insuportável, pensei que ia enlouquecer, me virei e gritei para os moleques calarem a boca, todo mundo ficou quieto, mas não era por mim, o cachorro tinha dado um salto e estava quase conseguindo pular a grade. Atirei a pedra que tinha na mão para derruba-lo, foi inútil, corri, meu amigos correram na minha frente, íamos entrar na casa, quando já estava quase lá, bati de cara na porta, aqueles moleques fecharam a porta por medo, depois disso acordei no hospital. Minha vida mudou totalmente, fiquei marcado para sempre, meus machucados no corpo sumiram depois de um tempo, poucas cicatrizes sobraram, mas os danos que estão na minha alma foram irreparáveis, pelo menos...— Caligari é interrompido por um alarme que vinha do hospital.

—Doutor Nathan, a hora do passeio acabou, temos que voltar até o quarto.—alerta a enfermeira.

—Quarto? Que quarto? Tenho algum paciente urgente esperando?

A enfermeira chama o guarda do hospital que levou Caligari até o quarto. Minutos depois o guarda retorna e pergunta:

—Ele acha que é médico aqui?

—Sim ele acha, mas ele realmente foi médico há muito tempo atrás.

—Como ele ficou assim?

—Ele já sofria de cinofobia há muito tempo, mas os transtornos dissociativos começaram quando ele voltava para casa com a filha, um cachorro atacou os dois, ele travou, a filha sabia que ele tinha essa fobia então se contrapôs ao cachorro para proteger o pai, o cão estraçalhou a pobrezinha na frente dele.

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Leobalevski
Enviado por Leobalevski em 27/07/2014
Reeditado em 28/07/2014
Código do texto: T4899310
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