Prisão obscura

Acordei ressabiado, com as pupilas dilatadas e a cabeça vagueando entre o sonho e realidade. A penumbra estonteava meus pensamentos e confundia meu cérebro, deixando-me absorto. Apoiei a mão gelada na parede de tijolos e pus-me de pé com certa dificuldade. Mal sabia eu os motivos que me levaram até ali, mas o fato é que eu já estava sem me alimentar por dois ou três dias, sabe-se lá por que.

Agarrei uma barra metálica da cela e apertei o metal frio contra o rosto, uma atitude que eu fazia há muitos dias a fio, pois ficara difícil acordar nos últimos tempos. Acordar e ver que ainda estava confinado ali. O sol nascera há pouco e já inundava o corredor à frente, com raios dourados gerando uma sombra maravilhosa no chão de pedras. Fiquei por alguns minutos contemplando o espetáculo da natureza, com insetos passeando no horizonte, livres – e gerando-me inveja – que causavam sombras enormes devido à sua passagem nas janelas abertas, postando-se entre os raios de sol e o chão.

Neste momento, passos apressados dissolveram a luz solar incidente e fecharam as janelas, deixando-nos em total escuridão. Contive um suspiro de espanto. Ouvi diversas vozes apressadas e um barulho que imaginei ser de metal rangendo, como se fechassem a prisão contra uma ameaça exterior. Pensei ter ouvido um canhão rasgando o ar, e depois um baque surdo, com um subsequente barulho de tijolos caindo. Uma onda de energia percorreu o chão, ao passo que eu e os outros seis prisioneiros começamos a nos agitar.

Olhei para Floriant, Flaubert, Marcuse, Wallace e Olivier companheiros de meses na cadeia. Flaubert era o único que chegara a uma semana. Floriant estava afagando a barba espessa, enquanto provavelmente filosofava mais sobre a vida ou sobre a morte, visto que já se consagrara como pensador. Flaubert era um pouco mais descontraído, gostava de satirizar nossa situação. Todavia, estava calado em seu canto, com a cabeça desnuda abaixada a contemplar o chão. Marcuse e Wallace, irmãos, foram presos nas ruas da capital, segundo eles de forma injusta. Os dois foram separados e o Wall estava na outra cela, à frente, junto a Olivier, o mais novo do grupo. Praticamente um garoto de apenas dezessete anos.

Na verdade, todos nós éramos cidadãos comuns antes de tudo isso, súditos do rei, apesar de nunca termos concordado com seu governo real. Fora este o motivo que nos motivara a sair às ruas; e curiosamente o mesmo que nos levara à prisão.

No entanto, tornamo-nos todos muito preocupados com o que poderia estar se sucedendo no exterior, e apertamos ainda mais os rostos contra a grade na tentativa de espiar a situação. Uma segunda bala de canhão silvou no ar, cortando o silêncio e salpicando ondas de energia em nossos corpos inertes. Uma rachadura fendeu a parede ao fim do corredor, obrigando as janelas a se reabrirem. O sol entrou com tudo, iluminando novamente nossas acomodações e dando-nos uma visão mais ampla sobre a prisão. Uma fumaça rapidamente também invadiu o corredor e logo tampou parte dos raios solares.

Gritos reverberaram em meus ouvidos, batendo nas paredes e saindo pela janela aberta. Tiros agitaram as bandeiras no horizonte lá fora, e fizeram perfurações profundas na pedra da prisão. Contudo, continuávamos alheios ao que se passava lá fora. Os passos se apressavam cada vez mais, e viraram borrões no chão frio e empoeirado.

Subitamente um homem apareceu ao fim do corredor, com um rosto raivoso, porém feliz em nos ver. Flaubert abriu um sorriso ao vê-lo, e abriu a boca em sinal de resposta. Corri os olhos por um pequeno grupo que chegava junto a ele, e abrandei a tensão sobre meus ombros ao ver meu primo, Gustave, se aproximando de mim com a bandeira azul, branca e vermelha tremulando em sua mão, suja do sangue do povo.

Uma jovem também deu as caras. Marianne, uma garota por quem eu me afeiçoara enquanto combatíamos o exército. Ouvimos sons quase iguais a trovões ribombando no ar, e senti que, desta vez, a tempestade teria gosto de liberdade.

Afastei-me enquanto os trovões continuavam a balançar o prédio, para deixar que quebrassem as barras de metal que me separavam do mundo lá fora. De Launay apareceu preso nas mãos de um homem careca que parecia ser o líder dos rebeldes. Abracei Gustave rapidamente, olhando com surpresa para Marianne e contemplando o carrasco sendo escoltado para fora do prédio.

Segurei na mão da moça com força, discretamente, como se nunca mais fosse soltar; e escutei a multidão feliz à minha volta.

Passar pelos corredores destruídos da prisão não foi muito difícil, mas foi gratificante ver que meu povo me aguardava com fervor, agitando as bandeiras em sinal de respeito. Crianças e mulheres pulavam nas ruas, os homens bebiam e cantavam músicas alegres. Do alto da torre de vigia, meu companheiro saudou aqueles que estavam lá embaixo, que pararam instantaneamente para ouvi-lo.

Primeiro ordenou uma saraivada de balas de mosquetões, que os próprios companheiros deram em direção ao céu. Ri quando uma pomba caiu morta no meio da multidão, que se abriu igual a um buraco de bala da carne grossa. Aclamaram Flaubert com intensidade, e pude ver sorrisos felizes em cada rosto para onde olhava. O povo merecia aquilo.

Uma fogueira estava sendo alimentada com restos de móveis da prisão-fortaleza, e parecia que cada vez mais chegavam de dentro das fortificações em que antes eu estava. Marianne desceu as escadas rapidamente, obrigando-me a segui-la e deixar Flaubert com seu discurso fervoroso patamares acima. Embalamos uma corrida por entre os degraus, nos agarrando com amor e deixando fluir os hormônios pelo sangue que corria em nossas veias.

Voltamos exatamente por onde havíamos entrado meses atrás, quando fomos presos, que substituíra os soldados azuis por homens esfarrapados e sujos de suor. Entretanto, estes respiravam os ares da revolução. Abraçamos nossos companheiros, compartilhando nosso ideal, e demos as caras às ruas; eu ainda com as roupas da prisão. Pegamos da mão de um deles uma bandeira surrada, que Marianne hasteou com orgulho, com os braços mesmo, e saiu em disparada rumo ao calor do povo que comemorava sob a luz do sol.

Nos enfurnamos junto à uma roda que tocava La Marseillaise, uma música envolvente, que me conquistara de primeiro. Viramos a atenção e os ouvidos para Flaubert, agora longe de nós, mas perto da multidão; e ouvimos em alto e bom tom ele gritar o que todos queriam ouvir:

-Hoje tomamos a Bastilha! – Sorriu. – Amanhã será a França! – Hasteou os braços ao céu. – Viva la France!