As Marcas da Infância

Como fazia todos os dias, entrou no banheiro e olhou-se no espelho. Viu um rosto abatido pelo cansaço do longo dia que tivera. Respirou fundo. Finalmente estava em casa. Arrancou as roupas suadas e jogou no chão pisando por cima para livrar-se logo delas. Ergueu a cabeça e voltou a olhar no espelho e desta vez se perguntado em pensamento: “hoje tá estranho, mas o que é”?

Resolveu não pensar na sensação esquisita que arrepiava sua pele nua. Era só o silêncio de sua casa. No trabalho era uma algazarra o dia todo. “Como é bom ficar um pouco sozinha”!

Entregou-se ao chuveiro de olhos fechados e, de tão quente que estava a água, cobriu o banheiro de vapor não sendo possível mais enxergar nada.

Depois de longos cinco minutos debaixo d’água, abriu os olhos. “O que é isso?” Pensou ao ver um movimento rápido de algo com forma indefinida que fez um vento gelado em meio a todo aquele vapor.

Desligou o chuveiro apalpando as paredes em busca da toalha. Abriu a porta e parou diante dela na esperança do vapor sumir e não ter nada lá dentro. Nossa! Que susto! Era só uma corrente de ar frio que entrou pela janela.

Aliviada e achando-se neurótica, sorriu e ligou o aparelho de som, com um super rock in roll para relaxar. Ainda enrolada na toalha e cabelos molhados pingando água pelo chão, cantava e andava de um lado pro outro. Um barulho muito alto veio da cozinha. Parou de cantar. Baixou o volume e ficou quieta para entender o que era. Foi de passos leves para o quarto colocar roupa. Escutava seu próprio coração e tentava se acalmar.

Foi a sala e verificou que portas e janelas estavam trancadas, então ninguém teria entrado. “Mas o que foi aquele barulho”? Na cozinha olhou em baixo da mesa e nada havia ali. Suspirou levantando-se e quando armou um sorriso de alívio, sentiu um peso nos ombros. Não conseguia se mover nem para olhar o que era. Congelou. Seu coração havia subido do peito para os ouvidos e era só isso.

As lágrimas começaram a descer pelo rosto tenso de medo, dentes travados pela aflição e o nó na garganta a impedia de engolir saliva. Duas mãos enormes a segurava e pareciam apertar seus nervos dos ombros. “O que eu faço”? Pensava. Aos poucos conseguiu virar a cabeça e mover-se normalmente. Não havia nada lá. Mas o que a prendeu então? Pegou um copo e tremendo muito tomou água e sentou-se na cadeira debruçando-se na mesa.

Vieram as lembranças de quando era só uma menina. Tinha seus doze anos. Ela estava em casa sozinha, como de costume, porque seus pais trabalhavam o dia todo e ela chegava da escola e ficava em casa a tarde. Certa vez, ao chegar da escola, Anny empurrou a porta de sua casa e nem notou que já tava aberta. Entrou tão cansada que foi logo deitando no sofá.

Acordou sufocando com mãos enormes em seu pescoço. Ele era um homem alto, forte com cara de louco. Olhar marcante, impossível de esquecer. Quando Anny estava desfalecendo nas mãos dele, bateram palmas em sua casa. Ele a soltou e arregalou os olhos sem saber o que fazer. Ela pulou do sofá em direção a porta e saiu correndo para a rua.

Passavam muitos carros naquela rua, era perigoso. Anny abraçou o carteiro e pediu ajuda. O homem atormentado que tentou matá-la correu na mesma direção que ela, mas ao ver que ela não estava sozinha, tentou ir para o outro lado da rua, sendo violentamente atingido por um caminhão.

Agora, com 20 anos, mulher feita, ainda tem pesadelos com aquele desconhecido. Tinha medo de tornar a vê-lo mesmo sabendo que estava morto.

Passaram-se duas horas. Anny havia adormecido debruçada na mesa. Acordou assustada e quase caiu da cadeira. Só ouviu um chiado que vinha da sala. Então lembrou-se que não tinha desligado o som e a música tinha acabado. Foi para cama sonolenta lembrando do sonho ruim que teve ao cochilar na cozinha.

Dormiu tão profundamente que acordou na mesma posição que deitou. Já era de manhã e lembrou-se que estava de folga. Esticou o corpo todo até não poder mais, de tanta preguiça. Sentia-se muito bem disposta, apesar de uma dorzinha chata nos ombros! Vestiu um velho short jeans e uma blusa de organza com finas alças que escorregavam toda hora. Foi até o espelho do quarto olhar-se e seu rosto iluminado transformou-se em desespero. Seus ombros estavam com hematomas roxos e muito feios. “Marcas de dedos”! “Não foi um sonho, ele estava aqui”.

Michele Valverde
Enviado por Michele Valverde em 27/08/2014
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