A Semente do Mal


Trabalho como enfermeiro numa clínica para idosos. Na realidade, este é apenas um de meus vários empregos. Atuo em outras clínicas e hospitais. Entretanto, neste lugar é que há reconhecimento do meu trabalho. Chamam-me “doutor”, por mais que eu proteste dizendo que não sou médico.
Um paciente, em particular, chamou-me a atenção: Sr. Sales, com câncer terminal. Entrava e saia de hospitais, constantemente. Tinha dores terríveis, a metástase já havia ocorrido. Recebia altas doses de morfina. Num de seus momentos de lucidez pediu que o procurasse após o meu plantão, pois tinha algo muito importante para falar. Atendi o seu pedido e fiquei estarrecido com o que me foi relatado. Tento agora reproduzir:
O Sr. Sales, Antônio Sales, quando jovem, nos anos 1970, fora professor substituto de matemática, em uma pequena escola nos arredores da Represa Billings no ABC Paulista. Depois de certo tempo alugou uma casa e passou a morar por lá. A região era caracterizada por muitas casas de veraneio, somente frequentadas nas férias, feriados e finais de semana. População fixa era pequena. A vida seguia tranquila, até que Moraes, um colega da escola pediu que ele fosse até o banheiro e lá comunicou ser ligado a um movimento de esquerda e que estava ali para observar os donos de uma casa localizada em frente de onde Sales morava. Eram dois militares de alta patente que eram suspeitos de serem torturadores de presos políticos. Moraes informou que estava sob suspeita e teria de fugir. Pediu a Sales que passasse a observar os proprietários da referida casa e se notasse algo suspeito comunicasse a um companheiro no endereço que lhe passara. Moraes desapareceu desde então.
Durante certo tempo, Sales observou a casa e nada notou de suspeito. Seguiu a vida, o tempo passou, fez concurso público e tornou-se professor efetivo da mesma escola. Agora com vinte e cinco anos, pensava em casamento, até que algo muito estranho aconteceu. Tinha ido até a casa de Marina, sua namorada e voltava de bicicleta. Presenciou uma cena de sequestro. Uma camionete do tipo Veraneio, muito utilizada pela polícia e pelos órgãos de repressão, parara e abordara uma mulher jovem no ponto de ônibus, foi tudo muito rápido. Colocaram um capuz em sua cabeça e a jogaram dentro da viatura. Sales tentou segui-la, mas não conseguiu. Para sua surpresa a viatura encontrava-se estacionada em frente à casa dos militares. Era a mesma camionete, memorizara o número da placa. E agora o que fazer? Denunciar à polícia? Não adiantaria. Jamais acreditariam em sua história. Não abordariam duas altas patentes militares. Ficou desesperado, sem saber o que fazer.
No dia seguinte foi até o endereço que Moraes lhe passara anos atrás. A casa havia sido demolida e agora construíam um prédio. Comprou um binóculo e voltou para casa. Não conseguia ver nada. A casa estava fechada, não parecia ter ninguém. Viu alguém sair. Era o caseiro, conhecido por tomar altas doses de bebidas alcoólicas nos botecos da região. Estava sempre bêbado e dormia em qualquer lugar. Exceto nos finais de semana quando os donos casa ali estavam. Sales resolveu segui-lo. Pagou-lhe umas doses cachaça e apesar de também ter de tomar algumas para não levantar suspeitas, conseguiu perguntar sobre os patrões do caseiro. Ele afirmou que haviam saído cedo, levando um saco plástico. Ao perguntar do que se tratava, responderam não ser de sua conta. Em seguida o caseiro alcoólico apagou. Sales notou que as chaves que ele carregava estavam penduradas no lado de fora da calça. Foi até um chaveiro próximo e fez cópias, devolvendo em seguida as referidas chaves ao adormecido caseiro.
Após alguns dias, depois de certificar-se que o caseiro estava adormecido na praça, Sales entrou na casa dos militares. Levou uma lanterna e passou a examinar os cômodos. Aparentemente nada de suspeito estava sendo encontrado, até descer ao porão. Lá encontrou uma cama e cadeiras com amarras de couro, fios soltos e desencapados, instrumentos médicos e odontológicos. O pior ainda estava por vir: uma gaveta contendo uma máquina fotográfica do tipo Polaroid, daquelas que tiram fotos instantâneas e muitas fotos. Homens, não apenas os dois conhecidos, rindo em diversas fotos ao lado de pessoas que teriam sido torturadas. Imagens de mutilações, unhas e dentes arrancados e estupros. A maioria das fotos era de mulheres. Saiu o mais rápido que pode daquela câmara de horrores. Ficou noites sem dormir. As imagens registradas nas fotos não saíam de sua cabeça. Não sabia o que fazer, não podia falar a ninguém. Faltou vários dias ao trabalho.
Ao voltar, depois de uma licença médica por 'stress', ficou ainda mais horrorizado. Duas de suas alunas haviam desaparecido, sem deixar vestígios. Eram adolescentes. Não queria acreditar. Numa determinada noite tomou coragem e entrou novamente na casa vazia. Foi novamente ao porão. Quase desmaiou. Havia forte cheiro de água sanitária, sinal que o local fora limpo e, na gaveta, fotos recentes. As meninas foram barbaramente estupradas, torturadas e mortas. Estavam quase desfiguradas. Tudo documentado por fotos. O que acontecia extrapolava os porões da ditadura, era sadismo puro. Coisa de psicopatas. Sales saiu correndo e vomitou no terreno ao lado da casa. A partir deste dia tomou uma decisão: daria uma basta naquilo tudo.
Um dos envolvidos tinha uma amante numa casa próxima. Sempre que a visitava voltava a pé, tarde da noite, pelo mesmo caminho. Sales armou uma emboscada. Esperou o militar passar e o agrediu com um pedaço de cano. Chovia, noite escura. O homem caiu e a arma que trazia, ficou exposta. Sales pegou-a e disparou na cabeça do torturador. O sangue atingiu sua capa de chuva, escorrendo por ela. O dinheiro da carteira foi retirado, simulando assalto. Jogou a arma na represa. Perfeito.
A polícia registrou como latrocínio. Soldados do exército também apareceram, tomaram alguns depoimentos. Ninguém viu nada. Caso encerrado. Quem suspeitaria do pacato professor de matemática? Faltava o outro.
Nova invasão da casa. Desta vez de madrugada. Empunhando um punhal, Sales aproximou-se do torturador adormecido. Acordou o monstro,que assustado quis reagir. Era bem mais velho do que o invasor armado e não teve muito como reagir. Soube exatamente porque iria morrer. O punhal penetrou abaixo do osso esterno, onde fica o coração. A arma ao sair quase fechou o ferimento. A hemorragia foi interna. Em seguida a casa foi incendiada. Nada sobrou. Nova investigação. Notícias de jornal. Pareceu ser um acidente. Vestígios de velas foram encontrados. Como sempre havia falta de energia, era normal. Nada suspeito.
O caseiro, que talvez tivesse participado das atrocidades ou soubesse de alguma coisa, morreu de cirrose hepática, após alguns anos.
Depois de algum tempo, o professor exonerou-se e mudou para o interior do Paraná. Trabalhou no comércio, lavoura e outras coisas mais. Nunca mais exerceu sua profissão. Apesar dos pesadelos, estava tranquilo. Voltou ao ABC depois de doente. Sempre achou que fora contaminado pela maldade que descobrira.
- Eu precisava voltar e me certificar que destruíra a semente do mal. Então doutor, acredita na minha história?
Eu não respondi. Não sabia se era verdade ou delírio provocado pelo uso constante de morfina.
- Por favor, doutor, pegue aquela caixa em cima do armário.
Ele a abriu e entregou-me um envelope. Fiquei pálido, quase desmaiei. Eram algumas das fotos, quase apagadas, das meninas torturadas e mortas.
- Acredita agora? Eu tinha de fazer aquilo, queimar tudo. Lá estava a semente do mal. Eu sei que esta semente sempre volta a germinar. Mas, àquela eu destrui. Por favor, queime também estas fotos. As meninas talvez quisessem isto. Vamos preservar a dignidade das mortas. Quando eu ficava deprimido, pensava que elas estavam vingadas. O que eu fiz foi terrível, mas acredito que justificável. Na verdade, eram dois monstros. Eu vou morrer muito em breve, em paz? Não sei.
Demorei alguns dias para voltar ao trabalho na clínica. Nunca mais o vi com vida, mas jamais o esqueci.
Gerson Carvalho
Enviado por Gerson Carvalho em 01/09/2014
Reeditado em 21/07/2018
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