VIGÉSIMO PRIMEIRO ANDAR

Isolado, era só eu, terceiro andar de 21 para subir. Muito desconfortável subir o edifício da corporação às duas horas da manhã. Do elevador e do percurso soou todos os barulhos que sempre estiveram lá, mas durante o dia, o trabalho, a correria na cabeça e as pessoas passageiras impediam a sensibilidade ao som do elevador. Era tão físico o cabo de aço sobre minha cabeça, cabo nunca antes visto, nem antes nem por toda a minha vida, mas sabia, e agora sentia que ele estava lá. Existia um som de puxar metálico. Quinto andar. Era pra ser tão demorado assim? Só preciso dos meus papéis e voltar.

A essa hora tudo era tão sinistro, bizarro, medonho aqui dentro do prédio. Da avenida defronte, movimentada, luzes de restaurantes, carrocinhas de lanche, artistas de rua e até os perigosos seres de segundas intenções – ladrões e meretrizes, tudo isso parecia ser de outro universo (a noite nunca havia me pertencido), e algo em mim relutava em não querer entender o deste esta hora. Sombrio. Estava adorando isso. Fazia tempo que não sentia esse medo infantil, dês daquele trem fantasma com meus onze anos – hoje eu poderia sair rindo daquilo, tão artificial, mas naqueles dias pensamos que morreríamos se um daqueles monstros - máquinas e pessoas fantasiadas - chegassem mais perto do trem.

O que sentia era à vontade, um desejo, eu desejava mais medo, é isso! Fazia muito tempo que medo não era real para mim, porém, ainda não é real, quando será? Isso é só um elevador, e depois o vigésimo primeiro andar sem luz, achar o interruptor que nunca me perguntei onde ficava; quando eu chego às 7h30min da manhã tudo já estava ligado. Droga! Realidade não me amedronta - a perda de parentes próximos, o saber que poderia não sobreviver à operação no coração, a arma apontada para minha cabeça, nada disso me deu medo. O procurar o interruptor na escuridão não teria graça, o edifício não teria graça.

Só o primeiro andar havia alguém, um segurança, forte, mas quase de terceira idade. Era sabido que ele ficava de todo seu expediente fazendo rondas no mesmo andar, e o restante da noite averiguando suas telas com a imagem das câmeras de todo este lugar, monitorando dentro de toda a corporação. Será que ele teria o próprio medo tão inválido quanto o meu? A realidade já tomava tanta conta de sua vida? Só temendo pessoas e nada além disso, igual a mim?

Décimo sexto andar.

Lembro que no meio de minha adolescência todos os meus amores por livros e filmes de terror, histórias verídicas de horror, tudo isso que alimentava algo interior deixou de ter o seu sabor. O encontrar vídeos de morte na internet: acidentes e de ataques explícitos, deu uma sobrevida, alimentou por pouco tempo. Mas o meu lado de expectador do outro lado do monitor sempre despertava a agonia de não ter alcance aos momentos e lugares reais do vídeo; eu queria ter estado lá. Já sonhei que ao me defender de um invasor em minha casa, o matei com uma facada em seu olho, logo depois acordei em êxtase, disposto pra tudo no meu dia, mas lembro que o não saber a real textura de um globo ocular, e como o invasor poderia seguir agonizando suas dores, me trouxeram tremendas curiosidades que me arrancaram o bem que eu sentia. Lembro até em querer alugar uma fazenda e comprar uns porcos vivos, eu já tinha a faca... achei que estava exagerando! Entretanto uma coisa eu percebi em mim, o medo que eu daria aos porcos, o poder arrancar suas vidas, o sentir do golpe da faca dada em algo ou alguém fora do sonho, algo em mim ansiava tais novos alimentos... achei, e acho que ainda estou exagerando!

Algo se acumula em mim, estes desejos... vigésimo andar... como é a textura? A carne de alguém sendo apunhalada, rasgada? O sangue é quente em uma poça recém arquitetada? É salgado como dos bifes ou me engano com o tempero...

[Vigésimo primeiro andar!]

... qual será o sabor da carne humana??

[A porta do elevador se abre, no imenso andar de poucas paredes só o elevador e sua luz ilumina algo]

Uma faca na mesa mais próxima do elevador... destino?... Carne humana! Uma presa? O segurança! Terei tudo em uma madrugada só! Estou tão feliz!

Boa parte da vida estamos em piloto automático, essa noite, só mais um impulso! E os impulsos não pensam em moralidade, ética, leis, pensam no prazer!...

Por que tinha que ter uma faca na minha mão agora?

Por quê?

Por que eu não tinha que ter afeto à pessoa do primeiro andar? Por que tinha que lembrar a minha infância e meu jejum de sensações dês de então? Qual o porquê da faca? Por que da faca?

[Logo após foi tudo tão rápido. Em 15 segundos o interfone do vigésimo primeiro andar já roga a pessoa do primeiro com qualquer argumento de ajuda na iluminação do andar 21]

O que acabei de dizer pro segurança? Não me recordo, será que ele vem? Se ele vier?! Se ele vier? Se?

[um dos outros dois elevadores paralelos alega estar subindo]

Ele virá!

...

Vai demorar!

[A cada número que se ilumina no elevador três – “segundo andar”... ”terceiro andar”... “quarto andar” - lágrimas de felicidade]

Em pouco tempo! Êxtase, tu chegando de novo?

[O elevador um já tinha fechado, e o vigésimo primeiro andar só contêm uma pessoa, de frente para o elevador três, pessoa armada, parecia começar a babar. Havia perdido um pouco de sua sanidade, talvez sua humanidade, por uma idéia? (Ideia, esse parasita. Nascido por um impulso? Um desejo?)]

[Era belíssimo aquele andar sem luzes. Cubículos de paredes baixas. Tirando o lado do andar com os elevadores, todo o restante dos extremos eram vidraças, não tão perto se via as luzes de prédios vizinhos, e na sua maioria eram de outras empresas, de trabalhos que exigiam pernoites. No intervalo dos edifícios era difícil não encontrar a luz de algum avião comercial entre as luzes das estrelas, indo ou voltando para esta extremamente capital urbanizada]

[Na euforia, na adrenalina nos acostumamos rápido com a escuridão, com o que é sombrio, e o que é de trevas]

Na garganta, ou na cabeça? Na têmpora! Mas será que entra fácil?... Será garganta!

Golpe lateral, e puxarei para frente, serrilhando... hahaha que nem meu tio fez com aquela ovelha... Acho que o titio já deve achar a morte monótona. Inveja! Mas eu terei uma vida humana! haha

[Falava sozinho, e salivava demais, babando em si, não parecia ligar para isso. O sangue fervilhava. Se houvesse luz veríamos seu rosto e jugular fervendo trazendo um rubro vivo na pela clara]

Quase chegando, falta pouco, isso é som de avião? É sim! E do elevador, é claro! Também! Tem buzinas lá em baixo, estão gritando! Muitos estão gritando lá de baixo! Da rua? No primeiro andar? Será possível?! Estão gritando aqui também! Neste andar! Gritos... Gritos de apoio! Vocês aí querem ver eu arrancar sangue??? Querem??? Quero ouvir todos!!! Olhem!!! Décimo oitavo! Todos juntos!!!

- DÉÉÉCIIMOOO NOOOONO!!! [existiam vozes na cabeça]

Isso mesmo! Mais altoooo!!!

- VIIIIGÉÉÉÉÉÉÉSIIIMOOOOO!!!

Mais alto seus demônios!!! Vigésimo eeeee....!!!

- PRIIIIIIMEIROOO!!!

[No elevador a porta estava prestes a abrir, não se escutava nada de diferente antes, a não ser o próprio elevador, o seu percurso, e aquele entesar do cabo de aço. Mas o segurança jurou ter escutado um sussurro no vigésimo primeiro andar. Pensava: “Será que o trabalhador estava falando sozinho, ou no telefone? Mas parece que ele está invocando uma multidão como se... Ah deve ser o sono”]

[A porta do elevador começa a se abrir. A sua frente o que primeiro percebido foi o chão, gotas - algum líquido, café, ou água, saliva? (curiosidade focada e desatenção para o resto) Dois passos para frente e antes de se agachar para verificar, antes de clamar a presença de alguém, antes de algo começar. O fim!]

[Ao lado da porta do elevador, de uma escuridão absoluta para olhos desacostumados, alguém espertamente escondido, de furiosa rapidez atravessa com uma faca a frente da garganta da vitima]

Sem serrilhar, não foi perto do centro do pescoço, que sorte a minha. Prático. Interessante, tu não consegues gritar sufocando no sangue. Ei! Não olhe para mim com essa cara, se concentre na sua ida hahaha. Wow! Quanto sangue. Isso, deite.

Que linda poça, e é quente mesmo. O gosto, deixe me ver, me lembra... ferrugem, por mais que eu nunca tenha chegado tão perto de descobrir o gosto, mas, definitivamente ferrugem, deve ser assim o gosto dela.

É só isso? Assim? Droga! Me precipitei demais. Sem gritos, porque cada esforço para isso é mais fluir do vermelho. Sem momentos longos de pavor, pedido de clemência? Nenhum “misericórdia Senhor”!

Bom... lá fora existem mais porcos.