A IGREJA DAS ALMAS PENADAS - PARTE 3

Foi difícil dormir naquela noite de sábado; por diversas vezes levantou da cama ao ouvir vozes próximas a sua janela. Todas às vezes, em que foi verificar, não encontrou ninguém! Bastava deitar na cama, o falatório recomeçava; inclusive pode jurar ter ouvido risos de crianças brincando.

Finalmente, conseguiu pegar no sono. Sonhou mais uma vez com Mariazinha o mesmo sonho, mas desta vez, ela se despedia dele dizendo que em breve eles estariam juntos novamente. No sonho, ele permanecia sentado debaixo do ipê roxo enquanto observava ela sumir dentro de uma nuvem branca densa e que aos poucos, se tornavam em um vermelho vivo que lembrou sangue! Despertou repentinamente sufocando e à procura de ar para respirar; passou a mão pelo nariz e ao verificar, viu o sangue que escorria por entre seus dedos.

Levantou-se de um único salto e correu para o banheiro para limpar o nariz. A cabeça estava pesada, sentiu-se zonzo e precisou deitar-se novamente na cama para não cair no chão; teve a sensação de ver o caseiro entrando em seu quarto e olhar para ele deitado na cama, pode sentir a respiração quente dele ao vê-lo encostar seu rosto e abrir seus olhos com os dedos. Tentou ergue-se, mas seu peito parecia ter três sacos de cimento sobre ele, ergueu a cabeça e tentou falar, viu quando o caseiro pegou um saco de pano e puxou algo de sob seu travesseiro e que não parava de sacolejar dentro dele, observou ele caminhar até a porta e falava com alguém que estava do lado de fora. Não podia ver quem era, mas ele não sabe como teve a plena certeza que era o tal do coronel Oliveira. O caseiro olhou para ele deitado na cama e falou:

- Ele está quase pronto, falta pouco! – Antônio pendeu a cabeça sobre o travesseiro, e apagou...

... Antônio foi abrindo os olhos devagar, olhou para a janela aberta do casebre, percebeu que já era noite. Sentou-se na beira da cama e surpreendeu-se: estava vestido com a sua batina!:

- O senhor voltou a dormir depois que eu o ajudei a vestir a roupa! – disse o caseiro em pé na entrada da porta;

- Me ajudou a vestir? Não estou entendendo???

- Eu vim te avisar que a igreja já estava pronta para a missa, e te encontrei deitado no chão!

- Deitado no chão? Como?

- Não sei; só sei que na hora que eu entrei, o senhor estava no chão! Te coloquei de volta na cama mas o senhor pegou a batina para vestir e foi nesta hora que eu o ajudei!

- Eu tive a sensação de ter visto você conversando com alguém na porta!

- Impressão sua! Vamos para a igreja? Já está quase na hora da missa! – Antônio pegou a bíblia sobre a pequena escrivaninha e saiu.

Durante o trajeto, esforçava-se para recordar o que realmente havia acontecido; nada! Lembrou que não havia comido nada até aquele momento, mais o que era mais incrível, era que não sentia um pingo de fome e nem sede. Entrou na igreja e realmente o único lugar que havia iluminação, era o pequeno altar! Não soube dizer se era por causa da pouca luminosidade, mas tivera a impressão que a igreja parecia ter acabada de ser construída!

Passou pelo altar e entrou no caritó, realmente o caseiro havia limpado e arrumado o lugar. Procurou pelos retratos, só encontrou o do coronel pendurado no mesmo lugar; estava limpo como se fosse novo! Sentou-se em um banquinho e abriu a bíblia em suas mãos, retirou o papel rascunhado e repassou o sermão. Olhou para o relógio em seu pulso; faltavam dez minutos para a meia-noite. Levantou-se e espiou pela porta, a igreja permanecia no mais absoluto silêncio e sem uma pessoa sequer! Voltou para o seu lugar apreensivo; será que ninguém virá para o meu primeiro sermão? A ideia lhe deixou mais aflito.

Voltou a olhar para o relógio e desta vez, os ponteiros se cruzavam sobre o número doze; meia noite em ponto! Padre Antônio se levantou e disse consigo:

- Independente de pessoas presentes ou não, vou realizar a missa mesmo assim! – abriu a porta do caritó e entrou determinado!

Para a sua surpresa, a igreja estava repleta de pessoas: casais de idosos, mães com seus filhos no colo, casais de mãos dadas, sentados lado a lado, e ainda havia pessoas em pé na porta da igreja, pois não havia mais lugar para elas sentarem nos bancos.

Ficou estupefato; não ouviu ninguém chegando! Quase não percebeu que as pessoas seguravam em suas mãos, uma vela branca de tamanho médio que iluminavam seus semblantes no meio daquela escuridão. Todos os olhares se voltaram para ele, assim que deu os primeiros passos em direção ao púlpito; sentiu-se despido por aqueles olhares que emitiam uma frieza enorme!

Parou na frente do pequeno altar deixando as imagens dos três santos por trás de si, e começou o sermão com um: “boa noite” que quase não lhe saiu da boca, por causa do nervosismo que sentia! Aos poucos foi relaxando e até conseguiu sorrir em meio ao sermão. Estava realizando a Agnus Dei para realizar a comunhão, quando parou a oração cantada repentinamente; uma mulher sentada na segunda fileira de bancos, lhe observava fixamente, esboçando uma vez e outra um sorriso que lhe trouxe à memória: MARIA!

Não... não podia ser Mariazinha sentada ali bem à sua frente! A dúvida martelou sua mente como picada de mil agulhas no meio da testa! Apesar da luz baixa emitida pela vela que ela segurava em suas mãos e que pouco lhe iluminava o rosto, aquele sorriso ele nunca esqueceria. Tentou retomar o controle dos pensamentos e voltar à missa, foi quase impossível! Na hora da comunhão, esperou que aquela mulher fosse participar e tomar a hóstia, então poderia vê-la de perto.

Aos poucos as pessoas foram se levantando, mas ela permaneceu no mesmo lugar. Padre Antônio esqueceu da mulher assim que contemplou o rosto do primeiro fiel a tomar a hóstia; Coronel Oliveira! Aqueles olhos negros sem brilho algum fez Antônio sentir-se submisso ao homem parado em sua frente! O Coronel sorriu pelo canto da boca e se retirou dando passagem para o próximo fiel. As pessoas chegavam, tomavam a hostil e voltavam para seus lugares em um compasso quase que mecânico.

Após o último fiel sentar, padre Antônio lembrou-se da mulher cujo sorriso lhe lembrou Mariazinha. Olhou para o banco, mas o lugar estava vazio. Terminou a missa e quando estava voltando para o caritó, o coronel Oliveira lhe dirigiu a palavra:

- Seja bem vindo a minha comunidade padre!

- Obrigado!

- Gostou da nossa igrejinha? – perguntou o coronel;

- Incrível como em menos de doze horas, vocês pintaram, ajeitaram os bancos, arrumaram o interior, reformaram as portas e janelas... ela parece ter sido construída agora! – disse ele tentando entender ainda como a igreja se transformara em tão pouco tempo;

- Não é uma grande igreja, como eu queria no início, mas dá pro gasto!

- Ela é simples, mas o que importa são os fieis! Isso ela tem e pelo visto até de sobra!

- Que bom que pensa assim, pelo menos o tempo que permanecerá conosco, lhe permitirá conhecer a minha comunidade!

- Não sei se terei tempo para conhecer todos, bem que também, o coronel me desculpe, não pretendo ficar por muito tempo!

- Felizmente, para esta cidade, o padre não tem outra opção... – o coronel lhe deu as costas e caminhou para a saída onde dois homens magros e altos vestidos com um palito preto e chapéu de abas largas na mesma cor, o esperava. Antes de sair, o coronel olhou para ele e falou:

- Permitirei que conheça a história da minha comunidade, e aceite o presente que lhe concedi! – o coronel passou a ponta dos dedos na bacorinha e sumiu na penumbra da madrugada lá fora.

Antônio ficou parado matutando nas palavras do coronel, e o que elas queriam dizer; entrou no caritó e quase cai para trás, quando viu aquela mulher em pé no canto escuro do recinto, com um vestido comprido preto e um capelo que lhe escondia a face. Antônio sentiu o coração disparar, teve o pressentimento de conhecer aquela mulher, permaneceu onde estava, até que a estranha falou:

- Sabia que um dia eu o veria novamente! – a respiração de Antônio ficou ofegante, deixou a Bíblia cair ao chão quando a mulher deu dois passos em sua direção e levantou o capelo;

- Ma...ria...zinha? – ela sorriu discretamente;

- Preciso lhe contar uma história;

- Deixe isso prá depois, eu só quero saber como você está! – disse ele, indo na sua direção, ela recuou os dois passos que dera antes e continuou:

- Você precisa escutar o que eu tenho para dizer, não tenho muito tempo para ficar, ao menos, por enquanto; - Antônio parou o trajeto e esperou que ela prosseguisse;

- Esta cidade antes tinha o nome de Lianápolis, e seu ilustre morador era o coronel Oliveira... – Antônio lembrou ter visto o nome sob a foto do coronel lá no caritó;

- ...O povo daqui sempre foram católicos fervorosos e então um dia, se reuniram e foram até o coronel e pediram que ele construísse uma igreja. O coronel prometera construir a igreja, mas impôs uma condição: que nenhum morador jamais saísse da cidade para ir em outra igreja e que todos os domingos nenhum deles faltassem à missa!

- Isso é o mesmo que por cabresto em touro louco! – disse Antônio;

- Mas o povo aceitou, mesmo porque naquela época Lianápolis era próspera e não havia outras opções. Só que com o passar do tempo, a população foi crescendo e as opções de trabalho eram escassas, os jovens começaram a querer ir embora e os mais velhos também.

- O que aconteceu? – perguntou ele pegando a Bíblia do chão;

- O coronel Oliveira ficou sabendo das pretensões do povo, então fechou a única saída da cidade deixando somente caminho pelo rio Paraguai. O povo não tinha como sair porque não possuíam meios para isso.

- É... do caminho eu sei que só através do rio. Eu mesmo tive que alugar um barquinho para chegar até aqui! – Antônio comentou interrompendo a narrativa dela;

- Se passou dois anos e então, em um domingo que todos comemoravam uma novena nesta igreja, os moradores se rebelaram contra o coronel; à meia noite cercaram o coronel e o arrastaram para dentro deste caritó, aqui (ela pôs a mão esquerda sobre uma pequena pedra de mármore), o esfaquearam até a morte...

- Você está maluca? Acabei de falar com o coronel agora mesmo! – disse ele sem acreditar no que a mulher falava;

- ...Ao sentir sua vida esvair pelo sangue que corria por todo o seu corpo, (continuou ela sem dar importância ao que Antônio acabara de falar), o coronel fez uma conjuração: “que nenhum morador jamais deixaria esta cidade em vida, e que mesmo na morte, suas almas voltariam a se reunir nesta igreja”.

- Impossível! – Antônio sentou-se na cadeira perto da mesinha;

- Ele pronunciou estas palavras no exato momento de sua “in articulo mortis!”, desde então, todos habitante desta cidade ao morrer, suas almas ficam penando esperando a hora da missa para se reunirem novamente!

- Eu devo estar sonhando!

- De certa forma, sim! Mas cabe a você querer permanecer ou não! – disse ela baixando o capelo;

- Do quê você está falando Mariazinha? – perguntou ele;

- Venha comigo! - Ela caminhou em direção a saída e pareceu para padre Antônio, que ela flutuava ao caminhar...

EMANNUEL ISAC

EMANNUEL ISAC
Enviado por EMANNUEL ISAC em 20/12/2014
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