Olhos do mal

Vivi minha adolescência e parte da juventude na casa de meus pais.
Morávamos na zona norte de São Paulo, no bairro do Chora Menino.
Desde pequeno sempre gostei de cães e até hoje trago em minha lembrança os nomes de todos eles.
Os fatos que narro a seguir, referem-se especialmente a um desses amigos que tive, de nome Pasquim.
Por sinal, esse nome lhe foi dado em virtude de tê-lo ganho de presente ainda filhote, na época na qual era assíduo leitor desse jornal, exemplo histórico de resistência à ditadura que se instalou no país.
O Pasquim era na verdade um vira-lata, com toda a simplicidade e irreverência, de quem não tem qualquer pedigree e sendo assim era capaz de fazer coisas desconcertantes, como se fosse um cachorro de circo.
Tinha a cor branca, magro e estatura mediana, irrequieto me acompanhava por toda a parte.
Em nossa casa tínhamos um quintal enorme.
A casa ficava no alto de um terreno arborizado, com muitas plantas e flores.
A rua era típica de um bairro em formação nos meados do século passado, com poucas residências, muito mato e terrenos baldios.
Neste cenário ele crescia comigo.
Naquela noite, o dia ainda não havia amanhecido.
Dormia um sono leve, quando ouvi aquilo.
Vinha do quintal de casa , rompendo o silencio da noite.
Um, dois, três, vários ganidos de dor, era o Pasquim, estaria sendo espancado...pensei.
Num salto estava de pé, cruzando a escuridão do quarto e da copa. Chegando a porta que dava para a varanda, não hesitei nem por um segundo em abri-la rapidamente.
Ao fazê-la num único golpe, me vi diante de algo, que jamais esquecerei.
Bem diante de mim, como se estivesse ali a minha espera, um animal enorme de pele negra, maior que um cão, maior que um lobo...
Seus grandes dentes a mostra, seus olhos ameaçadores fitando-me, pareciam humanos e cheios de ódio.
Estava bem ali, há poucos centímetros de meu corpo.
Foi como se o tempo para-se. Nenhum som, nenhum pensamento nada existia além daquela cena.
Era como se ela estivesse congelada, suspensa da realidade.
O ataque era eminente e o seu olhar dominava a presa: eu.
Aquele silencio foi quebrado repentinamente pelos latidos de meu cão Pasquim, que subindo as escadas rapidamente, ganhou a varanda em nossa direção e saltou sobre aquela criatura.
Surpreendentemente aquele animal ou o que fosse, correu pela outra lateral da varanda e ganhou o quintal, descendo escada abaixo.
Pasquim partiu em seus encalço e eu os vi saltando a cerca que separava nosso quintal do terreno vizinho.
Percorreram o matagal e desceram rua abaixo.
Ainda tentando me refazer os vi desaparecer na névoa do amanhecer.
Fiquei ali entre o pavor, o susto e a preocupação com o Pasquim.
Aqueles minutos duraram uma eternidade e meu olhar estava fixo na rua.
Para minha alegria, passados alguns minutos, o Pasquim surgiu correndo rua acima, subiu pelas escadas e chegou a varanda.
Ao ver-me demonstrou alegria, deu duas voltas em torno do meu corpo e sentou calmamente ao meu lado direito.
Olhava-me como quem olha a um amigo.

Os anos se passaram e aquele acontecimento ficou suspenso, pendurado em algum lugar da minha memória.
Sabia que jamais iria esquecê-lo.
Nessa época estudava a noite, em ginásio escolar do bairro vizinho, Imirim.
Para economizar, voltava a pé para casa , chegando por volta das 23h.
Sempre a mesma rua escura e sinuosa, nesse horário, com poucas luzes acesas.
Nada se ouvia além dos grilos no mato e o ruído de meus passos no chão de terra batida.
Todas as noites o Pasquim ficava pela rua a espera da minha chegada. Esse recurso que os cães possuem de adotar um comportamento rotineiramente preciso.
Fazia uma festa ao ver-me, subia até o topo da rua, indo ao meu encontro e ao longo de mais de 500 metros de caminhada, me escoltava até nossa casa.
Era verão e aquela noite de dezembro estava especialmente quente.
Porém algo inesperado aconteceu.
Ao virar a esquina e começar a descer a rua, percebi surpreso, que o Pasquim não estava lá como de costume.
Imaginei que estivesse atrasado e que a qualquer momento surgiria pelo caminho.
Mas estava enganado, a cada passo, minha preocupação por sua ausência aumentava e a sensação que algo muito ruim estava por acontecer.
Após 100 metros de descida, percebi algo estranho, lá embaixo, bem no meio da rua, há uns 300 metros de distancia.
Um vulto negro, mais escuro do que a noite, parado, imóvel, como se estivesse a minha espera.
Continuei descendo e a medida que avançava percebia seus dois olhos como pequenas luzes acesas, brilhando na noite.
Certamente refletiam o luar e mais alguma coisa que até aquele instante eu não podia perceber.
Vi então, que aquilo se movimentava vindo vagarosamente na minha direção.
Estava sem fôlego, eu o reconheci, lembrei-me daquele encontro noturno, alguns anos atrás.
Percebia que era a mesma criatura, agora ali, novamente, a aproximadamente 100 metros rua abaixo.
O medo me invadiu e eu não conseguia raciocinar.
Diminui o passo, sabia que não teria como evitar o encontro. A situação era sem saída e desesperadora.
Repentinamente uma presença, não vista, porém sentida se fez ao meu lado.
Rapidamente fui instruído a erguer meu braço direito e colocar minha mão espalmada entre o meu olhar e o daquela criatura.
Não poderia alterar o passo e deveria manter a palma de minha mão como um escudo de luz.
Nossos passos estariam se cruzando dentro de segundos e eu sentia uma enorme força magnética naquele braço, muito além da minha, dando-me segurança.
Percebi sua aproximação, ouvia suas passadas e vi sua sombra refletida no chão, ao meu redor.
Aquilo durou uma eternidade e a força que dominava meu braço, movia-o com extrema precisão, de modo que não nos encaramos um ao outro.
Apenas senti a sua passagem.
Me foi dito para manter a caminhada, não alterar seu ritmo, nem deveria olhar para trás em hipótese alguma.
Cheguei a casa, atravessei as arvores do quintal, subi as escadas e nenhum sinal do Pasquim.
Ainda preocupado pelo seu sumiço, fiquei por cerca de uma hora acordado no alto da varanda, olhando a noite, pensando em tudo que aconteceu e me refazendo do susto.
Enquanto todos dormiam fiquei ali até que resolvi também ir para cama e procurá-lo no dia seguinte.
Despertei mais cedo, por volta das 6h e para minha alegria, lá estava ele, todo feliz na varanda, deitado bem junto a porta esperando por mim.
Com o passar do anos, tomei conhecimento que aquela criatura não era precisamente um animal. Daí ter imitado o ganido de meu cão, para levar-me a porta em nosso primeiro encontro em minha varanda e no segundo ter atraído meu cão para longe da casa.
Isso explicava também, porque fugiu de meu cão sendo muito maior e supostamente mais feroz que ele.
Soube também que não haveria um terceiro encontro.
Só não tive explicação para o desaparecimento do Pasquim anos mais tarde. Partiu sem se despedir.
Amigo, companheiro e protetor, que certamente deverá estar encantando com sua graça e alegria algum lar, entre os dois planos da vida.
Ficou a gratidão e a saudade.


 
Claudio Lima
Enviado por Claudio Lima em 25/01/2015
Reeditado em 02/11/2015
Código do texto: T5113854
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