O pomar

A vovó acordou bem cedo naquele dia, fez um belo café da manhã e me esperou à mesa. Quando eu cheguei à cozinha o cheiro estava impregnado em tudo que era lugar. Estava muito bom.

– Hoje quero que você me ajude com a colheita das frutas, tudo bem?

– Como? – Larguei o pão sobre a mesa.

– Você pode me ajudar com as frutas?

– Claro...– Concordei mas eu não soube o porquê. A vovó nunca me deixou ir ao pomar. Ela dizia que havia algo muito difícil de se entender ali.

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Desde os quatro anos eu moro com a minha avó. Depois do acontecido que seria bom não ter acontecido, eu tive que me mudar para o sítio. Claro, fora um sonho que se realizou de uma forma trágica. Entretanto, eu era muito criança e não sabia grandes coisas, claro. E nem entendia também. Hoje, quando escrevo, tenho quinze anos, e sei um pouco mais que antes. Pouco, ainda.

Não me recordo de nada do passado. Não me lembro da minha antiga casa e nem da minha infância. O que sei é fruto das minhas idas à cidade, por sinal, bem distante do sítio, acompanhando a vovó. A cidade é tão longe e de despesas grandes que vamos até ela apenas uma vez por mês. E, se quer saber, não há nada de luxuoso na viagem. Não passeamos, apenas vamos até lá, compramos o que o sítio não nos oferece e simplesmente voltamos. Até porque, a cidade é lugar de gente má.

Um dia minha avó disse: “Não há ninguém que viva aqui que seja boa gente.”. Fora uma informação jogada tão rápida que não tive tempo de procurar alguém em específico. “Vamos voltar e ficar lá, no sítio. É um lugar bom e seguro para nós.”.

Num outro dia, minha avó apontou o dedo a uma casa e disse que era nela que eu vivia mais minha mãe, quando eu era bem pequena, “Antes... Bem, você não tem que saber como isso termina”, disse ela, já mudando o rumo da conversa.

A vovó era sempre muito evasiva quanto ao que acontecera à mamãe. Toda vez que, por um descuido dela, ela acabava por entrar no assunto, simplesmente desviava dele e inventava algo para fazer ou uma história diferente para contar. E eu assistia e aceitava tudo calada, afinal, eu era apenas uma criança que não sabia a diferença entre partir e chegar.

Certa vez, entretanto, quando eu já era um tanto maior, questionei-a sobre o caso com mais seriedade, e foi quando ela surgiu com algo novo: “Entenda, minha filha, apenas como o acontecido que seria bom não ter acontecido.”. E, então, eu perguntei o que isso significava e ela apenas repetiu o mistério.

Sempre fora assim.

Até que naquela manhã calma e clara ela pediu para que eu a acompanhasse até ao pomar.

– Mas, por que só hoje a senhora deixou eu vir aqui? – Perguntei.

– Para eu te contar uma história.

– Mas, aqui?

– Não, sobre aqui. Sobre este lugar. Sobre sua mãe.

– Então?!...

Ao nosso redor havia tudo que um pomar poderia ter. Era uma área grande e as frutas coloriam a paisagem. Era muito bonito.

– Há onze anos uma bruxa foi descoberta na cidade. Mais precisamente na floresta, enquanto preparava...bem, fazia suas bruxarias. O homem que a encontrou só teve tempo de correr e gritar por socorro, porque morreu minutos depois. Mas, seus gritos surtiram efeito e aqueles que estavam por perto correram ao encontro do homem. Encontraram-no já caído, morto. Contudo, a bruxa foi pega e detida. Quando questionada, ela confessou. O dilema, então, foi: o que fazer com ela? Porque já vivíamos em novos tempos, em tempos que já não se matava alguém por bruxaria. Entretanto, um qualquer se levantou e expôs um fato. “E o homem que ela matou?”. Pronto, estava feito. A bruxa, então, foi condenada à morte pelo suposto assassinato do homem que correu pedindo ajuda. Suposto porque nunca foi descoberta a causa de sua morte.

– Mas, onde a mãe...

– Antes de morrer, entretanto, a bruxa amaldiçoou a cidade. Em palavras simples, disse que tudo que fosse plantado jamais nasceria; e tudo que já estivesse na terra, morreria logo em seguida. E que, por isso, a fome mataria tudo e todos na cidade. Claro, ninguém acreditou. Contudo, assim como dito, assim aconteceu. E o povo começou a morrer; e os animais também. Pessoas vendiam tudo que tinham por um mísero pedaço de pão. Ou por uma pequena espiga de milho. Estavam todos contaminados pela fome. Foi quando, então, surgiu uma ideia numa mente insana, louca e delinquente. “Plantemos na carne”.

– Em que?

– Na carne. O homem da mente insana havia acabado de ver seu filho nascer. Era bonito e vistoso. Mas colocou de lado a aparência, e também a saúde da criança, e, ao invés de deixá-la se alimentar do leite da mãe, deu a ela grãos de feijão e arroz para comer. Enfiou goela abaixo. E, claro, a criança morreu. Mas, acreditando ou não, antes da pobre ser enterrada, um ramo rasgou aquela pequena e pálida barriguinha e brotou como mágica. O homem se alegrou. E, então, apareceu a saída: plantar na carne era possível. Mas, não em crianças, porque são mais fracas. Escolheram mulheres. E apontavam a elas como se fosse a coisa mais normal. Como se não fossem selvagens.

– Isso é verdade, vó?

– E, então, num dia triste, num dia ruim, um dedo foi apontado para sua mãe. Ela era jovem, bonita... Tentou resistir. Por sua causa tentou resistir. Mas, eles a levaram e eu não a vi mais. “Cuide dela, por favor”, pediu. E você veio para cá. Num dia, entretanto, depois de muito tempo, ela apareceu. Estava cambaleando. Viera fugida da cidade até aqui. Até aqui, onde estamos agora. E neste exato pedaço de terra ela caiu. Você não se lembra, ainda bem que não. Fora triste. Ela sangrava por todo lugar. Quase nem falava. Balbuciava algumas palavras mas reclamava de dor. Quando caiu, não se ergueu mais. Cavei uma cova e aqui a enterrei.

– Mas, e esse pomar? Não quer dizer que...

– Eu não quero dizer nada. A única coisa que eu quis foi te contar o acontecido que seria bom não ter acontecido. E te dizer que eu não plantei uma árvore, uma única árvore sequer, deste pomar.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 28/01/2015
Reeditado em 28/01/2015
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